31
Out 11


Tempo em branco




A criadita mais a sua filha querem assassinar-me. Tenho a certeza de que esperam ver-me cair morto. Em todas as refeições elas metem veneno no meu prato. Não quero comer o que elas me dão. Se não me dão o que exijo, levo a refeição para o quarto. Peço para me ligarem a televisão. Não sei como se faz. Espero que saiam, fecho a porta e despejo tudo pela janela. Resisto. Só recebo alimento do meu anjo, da minha Lucília. Das mãos dela recebo o amor e nas suas mãos mora a honestidade e a confiança. Quando ela não vem, como sempre o mesmo, seja a que refeição for. Recuso tudo o que elas me dão além disso. Insistem e insistem, mas não me derrotam. Peço ao meu anjo que traga três latas de atum, três batatas grandes e três garrafas de vinho, de 25cl, por cada dia em que ela não está. Fico de pé a observar a destreza das mãos da criadita e da sua filha para ter a certeza de que não me metem nada na comida. A água a ferver faz um barulho nervoso e a lata a abrir provoca-me um calafrio. Será assim que abrem os mortos?
Quase interrompo o silêncio para perguntar que peça é aquela que abre a lata, ou a outra que puxa a rolha da garrafa. Mas não encontro as palavras.
Não me deixam cozinhar desde que a cozinha ardeu parcialmente. Dizem que me esqueci de apagar o lume do fogão. Não acredito. Tenho a certeza de que foi a criadita que deixou tudo arder só para trazer a sua filha.
Malditas sejam. Querem que eu engula vários comprimidos, mas eu sou mais esperto do que elas. Deixo-os ficar debaixo da língua, engulo a água e, quando se vão embora, cuspo para a sanita a pasta multicolor que se formou na minha boca. Fico diante do espelho a observar o meu rosto enrugado. Estico a língua e observo o padrão escorregadio a descer até pingar para o lavatório.
Há muitos tempos brancos, vazios, na minha cabeça. Tento preenchê-los, mas eles reaparecem maiores e em sítios diferentes. Fico furioso porque sei que a culpa é delas. Algum veneno desmancha o meu cérebro e provoca esta confusão. Perco a paciência, mas tenho razão para isso. Elas roubam-me o que sei. O veneno come devagarinho as minhas memórias. Tenho a minha estratégia, claro. Três é um número sagrado. Três latas de atum, três batatas, três garrafas de vinho, três maços de cigarros e três isqueiros na terceira gaveta. Três são os cigarros que fumo de manhã e também três são os que fumo à tarde. São três os dias em que o meu anjo branco não vem. Por muito que insistam, esta é a organização do universo e não a conseguirão desmantelar. Se o tentam e percebo, então eu bato com toda a força que tenho.
Percebo que ela não vem quando a criadita tem de me dar banho. Acho que foi ontem, ou noutro dia, que ela despiu-me, tirou-me a fralda e sentou-me dentro da banheira. Não estou habituado aos seus movimentos. Meteu as mãos entre as minhas pernas e eu dei-lhe uma bofetada. Caiu desamparada no chão e com sangue na boca. O choro incomodava-me e mandei-a calar. Só Lucília pode mexer aqui e a criadita sabe disso. A filha veio ajudá-la. Ficaram as duas no chão, a chorar, enquanto eu arrefecia na pouca água dentro da banheira. “Mas ninguém me ajuda?”
Elas olharam para mim e lembro-me de a criadita dizer “Estupor! Eu sou a tua mulher!» e apontou para a aliança. Eu também tinha uma aliança no meu dedo. A partir desse momento nada mais conseguiu surpreender-me. Como é possível as pessoas tentarem enganar um velho como eu? Não há moral neste mundo?
Fiz alguma força para conseguir tirar o anel. Assim que saiu, meti-o na boca e engoli-o.
“Tu não és minha mulher”
A filha ajudou-a a levantar-se.
“Vou casar-me com a Lucília”
Elas saíram e deixaram-me sentado ao frio. Fiquei zangado por me terem sujado o chão com sangue. A filha veio, limpou-o e enrolou-me numa toalha. Tive de gritar com ela. Queria derramar sobre ela todas as ofensas que conhecia, mas estranhamente não saiu nenhuma palavra da minha boca. Grunhi e tentei mordê-la. Ela não fugiu, só chorava e chorava até conseguir vestir-me e pôr-me na cama. Fiquei algum tempo sozinho. Despi as calças com alguma dificuldade, arranquei a fralda suja e atirei-a pela janela. 
Não as vi a fazer a comida. Deitei tudo fora. Não comi durante algum tempo.
A campainha tocou uma, duas, três vezes. O homem dos correios toca uma vez e o zumbido é longo e único. A Lucília toca três vezes... ou serão quatro… não…três é o número do universo.
Não me fala desde que soube da bofetada. Só depois de conversar com a criadita é que veio ter comigo, limpou-me, despiu-me o pijama e vestiu-me. Já passaram alguns dias e ela ainda não me fala. Quero estar sozinho, no meu quarto, agarrado à almofada. Apaguei a luz, baixei os estores, encolhi-me na cama e aqui estou, no escuro, com a boca cheia de silêncio e o corpo sem alimento nem fome. Recuso a comida, a água e o banho. O quarto cheira a merda e a urina. Não deixo que me mudem a fralda.
Ela não podia continuar calada. Fico ansioso por ouvi-la abrir a porta, puxar os estores, devagar, até pequenas linhas rasgarem a penumbra.
«Fez uma grande asneira»
«Não quero saber»
«Aquilo não se faz a ninguém, muito menos à sua esposa»
«Ela não é minha esposa! Não a conheço. Eu vou casar-me contigo»
«Engoliu a sua aliança? Recupero-a na próxima fralda»
A minha cara está muito quente. Devo estar corado. A aliança não me interessa. «Lucília, conta-me a história daquela família, por favor»
«Quer que a conte, novamente?»
Os olhos dela são tão bonitos…
«Deixa dar-lhe banho? Não quero que aquilo aconteça outra vez.»
«Sim, claro». O banho é um momento de jovialidade. Quando ela passa as mãos por mim, sinto-me novo.
 «Pelo que vejo, está mais “animado”.»
 Eu gosto da vida a crescer no meu corpo.
«Nunca lhe faria isso»
«O quê?»
«Magoá-la.»
Concentra-se em lavar o meu corpo.
«Conta-me uma história»
«Sim…eu conto-lhe uma história antiga que, provavelmente, já se esqueceu. Vai gostar»





Há uma mancha branca que destrói o tempo. Acordei sozinho e limpo. Espero pela luz da manhã. Sei pedaços de uma história que talvez seja a minha, talvez seja a da menina que me afaga o cabelo todas as manhãs, talvez seja a da senhora que me traz a comida ao quarto. Uma história bonita que se apaga.
Tenho menos palavras e por isso sou cada menos… Não sei onde estou. Ouço um, dois, três toques na campainha. Não sei quem é. Sinto a transpiração a escorregar pelo meu rosto. O meu peito só acalma quando a menina me passa a mão pela cara e me ajeita o cabelo. É muito bom…quero acordar muitas vezes para poder sentir as suas mãos no meu cabelo.


publicado por oplanetalivro às 08:40
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