03
Jan 14

“Apologia do Espanto”, rubrica iniciada hoje, tem como objectivo a defesa do assombro e da surpresa. A dúvida, seja consciente ou inconsciente, está na essência do alumbramento. É sintoma inconformismo. Perguntar é pôr em causa o adquirido. Sejamos interrogados. É condição essencial ao espanto.

O CRÍTICO LITERÁRIO É UM VENDEDOR?
Há características interessantes numa elite; uma é a de estar dependente da maioria, de que tanto escarnece.
A elite não existe sem a maioria de onde se destaca. A maioria, no entanto, mantém a sua existência, mesmo não havendo nenhum grupo destacável.
A adaptação da forma e do conteúdo de um texto crítico tem vindo a acontecer segundo alguns critérios exógenos à fruição estética do próprio texto. O crítico literário, adaptando-se à cultura mercantilista, abriu o corpus lexical à maioria dos leitores/consumidores de suplementos, jornais e revistas com espaços dedicados à literatura.
A elite adaptou-se à maioria, pela força da quantidade; foi forçada a negociar a forma, e sempre dependerá – numa relação mútua – da negociação do sentido.
A literatura é uma metáfora; é a luta do ser humano contra a impossibilidade da palavra em ser o objecto. Nessa impossibilidade reside a imperativa negociação entre quem escreve e quem lê.
Ao adoptar o critério “o maior número” não estará o crítico a submeter-se, como parte mais fraca, nessa negociação? – “Sem leitores, não publico; sem consumidores, não vendo; sem vender, não tenho trabalho”.
Assim, o crítico literário é um vendedor?
Torna-se um, quando cede a sua perspectiva literária a algo (ou alguém) além da construção Estética do seu texto.
O compromisso de quem escreve é com o texto. Se só está com o texto, então oscila. A obrigação de escrever crítica literária pode ter efeitos tão perversos como a obrigação de escrever, sistematicamente, obras literárias. Aplica-se o mesmo princípio: “se preciso de comer, preciso de escrever”.
A escrita não está dependente nem do conteúdo nem da forma, ou seja não está obrigatoriamente vinculada à edificação do sentido estético do texto; está, isso sim, ligada à criação de um produto vendável.
É certo que vender não é antónimo de qualidade, mas a obrigação de criar para vender pode ser prejudicial. A pressão – em última instância vem da maioria (consumidores/Leitores) - assenta nos ombros de quem escreve. Se influencia a qualidade do texto, ou não, cabe ao leitor decidir. E esta característica é essencial para quem adapta o texto ao leitor: - a avaliação do elemento pertencente à maioria.
24/12/2013, Seixal

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=677640


publicado por oplanetalivro às 15:42

05
Mai 13


"(...)
A propaganda e as campanhas publicitárias são a alavanca para chegar ao “estado canónico”. A originalidade e o conceito de beleza não são considerados.
A facilitação é uma realidade social, não somente literária. A sobrevivência passa pela venda, a venda passa por ir ao encontro do consumidor e este não quer ser importunado (excepto uma minoria). Criam-se e aplicam-se receitas, vendem-se livros. Se são canónicos ou não, é irrelevante; vendem-se como sabonetes. O consumidor sai limpinho, sem qualquer “nódoa negra”, sem qualquer marca do conflito que o texto, esse que desafia, nos deixa. Não há transformação, não há estranhamento. Há consumo.
O trabalho de percepção artística, que é complexo e difícil, não atrai toda a gente.
A actividade mental da percepção artística é substituída pela passividade do processo de percepção atalhado e reduzido. O receptor rejeita a novidade e quer o reconhecimento de algo em que possa sentir a projecção das suas atitudes e valores.
A cultura de massas, industrial, baseia-se neste princípio de “plug-and-play”. Acontece a tendência para sublinhar os aspectos recreativos da arte transformando-a em objecto com valor elevado de mercado, excluindo toda a espécie de esforço mental.
A educação adaptou-se; se ela visasse o desenvolvimento pessoal tornava-se antagónica a esta cultura comercial."

Mário Rufino







publicado por oplanetalivro às 13:42

21
Abr 13


António Guerreiro, ex-jornalista do Expresso/Actual, é o mais recente colaborador do Público/Ípsilon.
Na edição de 19 de Abril de 2013, o autor escreve sobre “O que é um escritor?”.

Quando li (e reli) o artigo, surgiram-me várias interrogações:

1 Qual a razão de não haver mais textos com estas características?

Ao analisar a revista LER de Abril, duas edições do Ípsilon de Abril e uma do Actual também de Abril, pude confirmar que há uma forma de apresentação de textos críticos que se mantém na estrutura Biografia-Sinopse- abordagem do texto literário. A última parte, “abordagem do texto literário”, é constantemente subvalorizada, em profundidade analítica, quando comparada com as duas partes que a antecedem. A leitura do livro é, para a construção deste tipo de texto, secundária.
Há uma corrente de pensamento que passa por entregar ao leitor um texto pronto a digerir. Não tenho nada contra isso. Há muita qualidade nos textos de alguns críticos.
O pensamento vigente (avesso a uma abordagem mais académica) implica uma crescente uniformização da abordagem ao texto literário. Acresce a essa formatação da crítica o facto de haver uma grande concentração de artigos em alguns críticos literários. Nestas 3 publicações, podem existir, mensalmente, entre 6 a 10 artigos escritos por um só autor.
O que me leva a interrogar-me, adaptando uma ideia do texto de António Guerreiro, sobre a qualidade literária das críticas quando estas são sujeitas à lógica da profissão e da necessidade de publicação (semanal, quinzenal, mensal).
O (re) surgimento do pensamento menos impressionista e que apela ao “gosto pela dificuldade” depara-se com o monopólio do que é imediatamente consumível.
Há espaço para as duas correntes. Uma não anula a outra. Aliás, polemizar é fulcral para qualquer tese.



2- Que substância tem o artigo de António Guerreiro?

Numa pequena coluna de 1500 (?) ou 2000 (?) caracteres, António Guerreiro levanta algumas questões que, maioritariamente, não são apresentadas neste tipo de publicações:

- (directamente) O que é um escritor?

- O escritor deve contribuir, nessa condição, para os “desígnios da sociedade civil?”
“É claro que o escritor autêntico, que não escreve por medíocres ou inconfessáveis razões, não pode, sem cair na superficialidade, fazer da sua obra uma contribuição para os desígnios da sociedade útil. [Georges Bataille] “

- O escritor deve estar vinculado às expectativas do leitor/mercado? Ou deve encontrar motivação no enriquecimento da Literatura? Estarão as duas vertentes desvinculadas?
“A figura de José Luís Peixoto neste cartaz publicitário deve chamar-nos a atenção para uma transformação da instituição literária, por acção destes escritores que se dirigem prioritariamente a um “público” e respondem fundamentalmente a exigências externas, o que os coloca na dependência da sanção anónima do mercado”
AG

- A morte do autor. A divulgação da imagem do escritor denuncia a menor qualidade do texto literário?
“ (…) esta boa consciência no tráfico da figura pública do escritor faz com que o Peixoto e todos os seus companheiros (ansiosos por se verem também em mupis de rua) nada tenha que ver com o que dantes se chamava “escritor”, para quem a escrita começa quando o Autor entra no seu desaparecimento, na sua própria morte”
AG

- A relação entre “Autor Maior” e “Autor Menor”. A ansiedade da influência.

Não me vou repetir, pois tenho falado sobre estes aspectos ao longo do tempo (poderão ler em oplanetalivro.blogspot.pt *)

Sublinho o mais importante de “O que é um escritor?”
António Guerreiro, num espaço muito curto, fomenta a discussão.
Não é só de José Luís Peixoto que ele fala. Aliás, Peixoto nem é o mais importante na discussão. O que interessa, realmente, são as perguntas semeadas por António Guerreiro.
Ele polemiza.
O Ípsilon tem ainda mais qualidade e pluralidade. O leitor ganha muito com isso.

Mário Rufino
*

A Morte do Autor: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2013/02/ensaio-sobre-morte-do-autor-para-pnet.html
Estética, Literatura e Ensino: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2012/10/estetica-literatura-e-ensino.html
publicado por oplanetalivro às 13:32

19
Fev 13

Ensaio sobre "A MORTE DO AUTOR" para a Pnet Literatura







ENSAIOS SOBRE LITERATURA

1.      Morte do Autor

Não é objectivo deste texto apresentar uma (re) definição do conceito de autor.
A “morte do autor” é uma proclamação, não é um facto e, como tal, mantém-se no aspecto teórico.
A necessidade de analisar a real importância do autor na produção de um texto literário é um assunto que não nasce com a polémica derridiana da morte do autor.
Segundo Vítor Aguiar e Silva (1990), Leo Spitzer[1]demonstrou que desde a idade média o “eu” do texto poético não é necessariamente o “eu” empírico. O autor dá o exemplo de os trovadores galego-portugueses que escreviam cantigas de amigo em que o sujeito de enunciação era uma mulher.
Recentemente, tanto a teoria como a crítica literária fundamentaram uma distinção entre autor empírico, autor textual e narrador.
O emissor mantém similitude com o autor empírico apesar de ser uma entidade ficcional. Não se trata de uma relação em que um exclui o outro, mas antes uma relação de implicação.
Não tomando como exemplo a existência de autores duais ou colectivos, podemos verificar que a escrita do texto literário é elaborada também por um indivíduo que existe histórica e empiricamente. No entanto, o “eu” que se manifesta no texto pode não se identificar com esse indivíduo.
As designações atribuídas a estas duas entidades divergem, por vezes, de autor para autor.
Wayne Booth[2]propõe os termos autor implícito ou autor implicado em contraste com autor real, ou seja autor como entidade concreta.
A designação não é, todavia, consensual. Vítor Aguiar e Silva afirma que outros teorizadores preferem a designação de autor abstracto (autor implícito/implicado) e autor concreto(autor real).
A designação mais adequada, segundo o autor, é a de autor textual.
“O autor textual tem de ser considerado a instância da qual dependem as vozes que concretamente falam nos textos literários: o narrador nos textos narrativos, o sujeito lírico ou o falante lírico nos textos líricos.” (SILVA: 90, pp.86)

Os códigos dos géneros literários funcionam para o autor textual, segundo Aguiar e Silva, como modelos interpretativos da realidade do mundo tanto no plano temático como no plano formal.
“Impõem, aconselham ou sugerem a adopção de certos personagens, de certos motivos, de certos temas, de certo registo linguístico, de certos estilemas, de certos esquemas métricos, de certas macroestruturas da forma de expressão. Em relação ao leitor/receptor, criam um horizonte de expectativas, que se identifica com um programa de leitura, predispondo o receptor para uma determinada forma da expressão e uma determinada forma do conteúdo, guiando-o na percepção e na compreensão da coesão e da coerência do texto, orientando-o na construção dos significados, etc.” (SILVA: 90, pp.62)

Por sua vez, Carlos Reis (2001), ao abordar o estatuto do autor numa perspectiva histórica, afirma que após a revolução da linguagem poética, mais precisamente a valorização da escrita como elemento estruturador do sujeito, a figura de autor teve de ser reestruturada. A partir desta afirmação, o autor segue uma linha de pensamento que vai dar à morte do autor e ao evidente desconstrucionismo de Derrida e Foucault.
Foucault (1995) aponta a dissociação entre o nome próprio e a função de autor, demonstrando que a relação entre texto-autor-nome é ainda mais complexa. A relação do nome próprio com o indivíduo nomeado e a relação do autor com o que nomeia não são relações com o mesmo funcionamento.
Vejamos este exemplo: Se um determinado individuo chamado Alberto José mudar de emprego, não existe alteração nas propriedades inerentes ao seu nome. Aquilo que produz muda, mas o seu nome não está de tal modo ligado a essa produção que venha a alterar a sua identificação. O mesmo não acontece com o nome de um autor. Dizer que Homero não escreveu “Odisseia”, ou Shakespeare não escreveu “Hamlet” altera significativamente a identificação do autor. Seguindo o exemplo dado por Foucault, dizer-se que Shakespeare é o autor das obras de Bacon porque a mesma pessoa que escreveu as de um escreveu as obras de outro é considerar um terceiro ângulo sobre esta problemática. É que, desta forma, o nome próprio de um autor não tem as mesmas características que os outros nomes próprios.
“Estas diferenças talvez se devam ao seguinte facto: um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si;” (FOUCAULT: 1992; pp.44,45)

No entanto, Foucault ao tentar definir a que tipo de discurso se refere, não é objectivo. Afirma que o discurso de um autor não é quotidiano, indiferente, passageiro e flutuante; deve ser recebido de certa forma e receber um certo estatuto dentro da sociedade e da correspondente cultura. O nome do autor não está, assim, situada no estado civil dos homens nem na ficção da obra. Há, inevitavelmente, discursos que são desprovidos da função de autor.
Para Foucault, uma carta tem um signatário, mas não tem um autor; um contrato pode ter um fiador, mas não um autor; um texto anónimo na rua tem um redactor, mas não um autor. Em conclusão, a função de autor é uma característica de um modo de existência, circulação e funcionamento de alguns discursos dentro de uma sociedade. O autor não transita do interior de um texto, mas antes o delimita.
Foucault aponta quatro características diferentes a um discurso portador da função de autor:
- Trata-se de um objecto de apropriação. A sua forma de propriedade é particular e está codificada há muito tempo.
- A função de autor não se executa de forma universal e constante em todos os discursos.
- A função de autor é o resultado de uma operação complexa que constrói a entidade a que chamamos de autor. Não é um discurso espontâneo de um discurso de um indivíduo.
Segundo o autor, podemos encontrar algumas invariáveis, quando analisamos da evolução cronológica, nas regras de construção do autor.
“ (…) o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz do indivíduo um autor) é apenas a projecção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efectuamos. Todas estas operações variam consoante as épocas e os tipos de discurso” ;” (FOUCAULT: 1992; pp.51)
- A função de autor imane de um conjunto de signos, dentro de um texto, reenviados para o autor.
Esses signos consistem em pronomes pessoais, advérbios de tempo e lugar, e conjugação verbal. Os signos não têm o mesmo comportamento nos discursos em que existe a função de autor e naqueles em que não existe a função de autor. No último caso, segundo Foucault, esses signos reenviam para o locutor real e para o espaço e o tempo do seu discurso (com possíveis alterações no discurso quando na primeira pessoa).
O primeiro caso é mais complexo e variável:
“Sabemos que num romance que se apresenta como uma narrativa de um narrador o pronome de primeira pessoa, o presente do indicativo, os signos de localização nunca reenviam exactamente para o escritor, nem para o momento em que ele escreve, nem para o gesto da sua escrita; mas para um “alter-ego” cuja distância relativamente ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo da própria obra. Seria tão falso procurar o autor no escritor real como no escritor fictício; a função autor efectua-se na própria cisão – nessa divisão e nessa distância”
(FOUCAULT: 1992; pp.51)

Assim sendo, os discursos em que existe a função de autor têm uma pluralidade de “eus”


Criar e Morrer são verbos intrínsecos à produção literária. O texto é uma batalha contra o esquecimento, um sintoma da luta existencial do Homem, uma demonstração intelectual de rebeldia do ser humano perante o vazio. O nome do autor, que pode coincidir fonética e morfologicamente com o nome do escritor, aparece com o objectivo de adiar ou derrotar a morte. O nome do autor permite unificar, delimitar e referenciar um campo literário. Esse espaço unificado é referenciado pela assinatura do autor.
O escritor reage à sua própria decadência, ao vislumbramento do fim; o autor reúne, referencia e almeja a imortalidade. É ele que exerce a função de autor. Ele não é o agente da escrita.
O escritor é anterior à obra. O autor não é anterior à obra. O nome do autor identifica, autentica e dota o texto de autoridade.
As perguntas são inevitáveis e apontam para a existência do escritor e do autor, respectivamente: Quem escreveu? De quem é?
A obra remete ao autor e não a um indivíduo (O caso da heteronímia é evidente; ou até mesmo da utilização de um pseudónimo)

(continua na próxima publicação)




[1] Leo Spitzer, «Note on the petic and the empirical “I” in medieval authors», in Traditio, 4 (1946)
[2] Wayne Booth, in The rhetoric of fiction (1961)
publicado por oplanetalivro às 11:40

10
Nov 12

A Literatura não tem qualquer utilidade.
Porque insistem em ler?

1-A leitura é quase uma experiência religiosa. Abrimos o livro e ficamos quase imóveis, entregues ao silêncio, perscrutando a nossa consciência. Há uma voz que nos aborda, uma entidade que nos conta algo que aconteceu. E o leitor entrega-se, com maior ou menor interesse, a essa entidade. Tem um desejo, somente: Anseia que o narrador o faça acreditar no que está a acontecer.

2-No que é que a Literatura é útil? Em nada. Procurar uma função na Literatura é um erro do leitor e não da Literatura, em si. O texto literário não quer mais do que aquilo que tem, não reclama uma função, nem tem intenção de melhorar seja quem for. Ler não serve para se ser uma pessoa melhor, uma pessoa bondosa. Stalin e Hitler eram leitores vorazes. Tinham bibliotecas recheadas de livros. Einstein criou os fundamentos que levaram à Bomba Atómica. Eles leram muito.

3-Nós sabemos de cor muitas coisas. Sabemos de cor muitos episódios da nossa História. Guardamos na memória os momentos de coragem do nosso povo. Está nos livros, fica nos livros, não aprendemos nada com a informação que retemos. Nada.

4- “Cor”- significa, em Latim, Coração. Por extensão de sentido, saber-de-cor, é algo que sabemos e sentimos, algo que vem do coração e sai sem esforço. Em inglês, por exemplo, diz-se “To know by heart” – saber pelo coração.
Coragem- do Latim “Coraticum”, derivado de “Cor”…que significa coração. Poderá ter vindo, também, da palavra francesa “Coeur”.É no coração que, em muitas culturas, habitam a inteligência, a sabedoria, o ânimo, a rectidão. “Ele/Ela tem bom coração”, dizemos muitas vezes. Um dos sinónimos é constância.
  
5- Novamente: Afinal…porque é que lemos? Não sei. Mas posso, se me permitem, aconselhar a procura de outras características na Literatura. Se há algo que a Literatura pode fazer por nós, então é ensinar-nos a fazer perguntas. Quando começarmos, como povo, a fazer perguntas diferentes podemos aceder a respostas diferentes. Procurai perguntas. Provavelmente, começarão a interrogar-se sobre a qualidade de quem nos pede para ter coragem perante tanto sacrifício, de quem nos fala ao coração, quando, afinal, são o antagonismo das características mencionadas. Onde estão a rectidão e a constância de quem nos pede coragem?

MR


publicado por oplanetalivro às 10:38

23
Out 12

Estética, Literatura e Ensino



Estética, Literatura e Ensino

De uma forma consensual, é reconhecido a Baumgarten (1750) o estabelecimento dos fundamentos de pensar e escrever sobre o estudo que diz respeito à beleza, às artes, ao receptor e ao artista.
Falamos da «Estética» de Baumgarten definida como ciência da cognição sensível, que atribui grande importância aos sentidos como fundamentação dos juízos, considerados, até então, pertencentes ao domínio inferior do conhecimento.
Este autor foi decisivamente influenciado por Wolff, conhecido como o autor do termo «consciência».
No que à literatura diz respeito, a mesma não se deixa aprisionar numa definição. Como podemos definir algo que se baseia em conceitos como beleza, estranhamento, originalidade? Não podemos; e vislumbramos a literatura como um conceito mutável e infiel ao tempo.
Apesar da tentativa de apreendê-la num conjunto de obras ou autores denominados de cânone, a verdade é que a literatura não se limita a esse conjunto. Deixa, isso sim, ser representada pelos mesmos para, algum tempo depois, aparecer representada noutras formas de diferente beleza mas continuamente estranha e original.
A palavra literatura deriva do latim, de littera,ae, e significa o ensino das primeiras letras. Ao longo do tempo, modificou-se o sentido para arte das belas letras, ou arte literária.
Levanta-se imediatamente alguns problemas: “arte”; “belas” (que não poderemos discutir aqui) e a percepção imediata da subordinação da literatura à letra, subestimando a chamada (agora) literatura oral (o som não veio antes do símbolo?). Falamos de literatura, principalmente, quando nos referimos a documentos escritos ou impressos. Pensemos que se Pessanha continuasse a ler os seus poemas sem os escrever não poderíamos considerar Clepsidra como uma obra marcante da literatura portuguesa.
Quando falamos em obra literária pensamos em objecto palpável e não numa sequência sonora. É curioso pensar que a poesia só se completa quando lida em voz alta...
A civilização toma consciência de si própria através da escrita projectando a mensagem através do diferimento da leitura da mesma.
Para Massaud Moisés, por exemplo, a ideia de uma literatura oral, popular, é simplesmente folclore e só tem status literário quando é escrita. (A hierarquização, a competitividade é uma constante na criação literária e na análise literária como iremos ver neste ensaio.)
No entanto, Alfonso Reyes não partilha da mesma opinião, pois, em rigor, a literatura é oral por essência devido à anterioridade do som ao carácter gráfico. O adiamento da apreensão do sentido acontece por limitações de memória e de transmissão às novas gerações. Tentamos enganar o tempo. É uma fatalidade histórica.
Hoje temos, obviamente, novos recursos que nos permitem arquivar informação com clara influência na ampliação do conceito de texto. No entanto, nem todo o texto escrito é classificado como literário. Apesar de todo o texto se destinar à leitura, não se categoriza todo o texto como literário. E confrontamo-nos com a questão: o que é literatura?
Por mais esforços que façamos o problema não se resolve porque falamos em conceito e não em definição de literatura.
O conceito de algo caracteriza-o como acidental ou particular e decorre de impressões subjectivas. Quando falamos em beleza notamos a incapacidade de tornar o conceito em definição, ou seja, de reunir características que sejam universalmente aceites.
Alfonso Reyes afirmou que, das três formas principais de actividade produtiva do espírito, a filosofia ocupa-se do ser, a história e a ciência do suceder real e a literatura do suceder imaginário, composto por elementos reais mas construído num outro plano de existência.
Uma situação é certa e real: a linguagem não se limita a ser um meio de comunicação.
Literatura implica vontade de ser diferente, vontade de se estar noutro lugar.
A diferença entre a linguagem literária e a comum reside no cultivo deliberado, por parte da primeira, da forma que organiza, aperfeiçoa com um propósito artístico.
Não aprofundaremos este assunto porque é demasiado vasto e não é o leit-motiv deste ensaio. É um assunto não para um simples ensaio mas para uma (ou várias) tese de doutoramento (provavelmente condenadas ao fracasso se o objectivo for conseguir definir a literatura).

A literatura ensina-se?

Consegue-se ensinar algo que não conseguimos definir?
Da mesma forma que o Amor e a Fé, a Literatura pode ser conhecida de forma parcial mas, na sua essência, não se aprende, frui-se; é individual e intransmissível.
É possível conhecer o que é, por exemplo, um género literário, o que a História Literária diz acerca disso, quais são as circunstâncias socioculturais das produções literárias. Esta aprendizagem é possível e ajuda a contextualizar a parte principal, aquela que pertence ao foro íntimo e que não é possível descrever de forma sistemática.
Quando abordamos o ensino da Estética é difícil sabermos o que ensinar. Deixamos de falar da história e da teoria que se aprende como qualquer outra disciplina.
O contacto com uma obra de arte é um processo intuitivo de desenvolvimento pessoal e de personalidade.
Para José Gil (1999) as fases de percepção artística, e inerente natureza, são as seguintes:
- Começa-se por olhar um objecto considerado uma obra de arte e tem-se uma percepção trivial. Depois do olhar ultrapassar as formas triviais vê-se estruturas e materiais diferentes que não são imediatamente visíveis.
Algo se desloca no quadro que faz com que o olhar descubra outras relações. O olhar passa das formas triviais (uma casa ou uma natureza morta) para as relações de textura, de espaço.
Ainda não é o espaço da forma estética.
“ De certo modo, estas estruturas espaciais que descubro estão separadas das formas triviais, aparecem por contraste e, ao mesmo tempo, por aderência. Vão aderindo, por que são estruturas espaciais dessas formas triviais”
Numa fase distinta, obtém-se a percepção estética, a que José Gil chama de percepção de forças. Quando se diz que um quadro é triste e melancólico estamos a caracterizar um conjunto de forças que dão uma linha, uma forma de todas elas.
“ A percepção estética final é a percepção da forma de uma força”
As forças aparecem devido a uma deslocação da relação entre as formas triviais e espaços encobertos, abrindo uma ruptura na percepção do quadro.
Através da entrada no quadro e consequente viagem no mesmo, o espectador estabelece uma conexão ou comunicação indispensável para a percepção estética.
Em relação à interpretação, o espectador caminha pelo percurso imaginativo do artista. Ao imaginar-se percorrendo o quadro existe um movimento de qualquer coisa que não é um corpo próprio dentro de um espaço topológico; José Gil denomina esta situação de ponto-corpo ou ponto-material.
“Toco (se for um quadro com características hápticas) com o olhar, como se fosse o meu dedo a sentir a rugosidade ou o liso da textura.
Há como que uma pele que ali se passeia, mas que não é de um corpo. É também um ponto abstracto, porque posso entrar num abstracto. É um ponto-corpo, porque é um ponto que é um corpo e que pode deixar de o ser, pode aderir a uma superfície, a uma cor, pode reduzir-se, pode quebrar-se em mil fragmentos. Segue o movimento da imaginação, que é o movimento dessas forças que vimos aparecerem debaixo das estruturas triviais, nas frinchas entre as formas triviais e os espaços”
A imaginação molda e transforma o corpo. É o espectador que completa o quadro. (O pensamento de Merleau-Ponty em “O olho e o espírito” é uma excelente leitura sobre esta matéria.)

Abraham Maslow insistiu na criação de um modelo educativo que assentasse na educação estética pois, actualmente, o ensino resume-se a um conteúdo profissional. O objectivo seria a auto-realização dos alunos e o seu desenvolvimento pessoal.
O problema é saber em que consiste a arte e a estética daí imanente...
A literatura como objecto estético não é ensinável.
O que pode ser transmissível são as características particulares, os cenários históricos específicos. Esta base factual que serve para os exames e análises qualitativas/quantitativas da sabedoria.
Este ensino de tipo institucional, abrangendo matéria e modo de ensinar, obedece sempre a opções políticas determinadas. As obras/autores ensinadas/os inserem-se numa política de senso comum com origem em grupos ou classes que defendem os seus interesses. É aquilo a que chamamos de “sistema” quando não conhecemos a face ou o nome de quem promove o caminho denominado de normal.
Qualquer tipo de educação é uma prática profissional que tem o objectivo de fornecer às pessoas determinadas vertentes da experiência social que são partilhadas no interior de dada sociedade. Exemplos desta situação são o conhecimento do universo, normas sociais, crenças, ideologias, aptidões e práticas do quotidiano, etc.
O processo de socialização passa pela apropriação e assimilação desta experiência pelos indivíduos. O sistema de ensino é um pilar fundamental da sustentabilidade deste processo.

Não se ensina literatura da mesma forma que não se ensina a amar, a ter fé, a ser bom (bondade); pode-se influenciar através do nosso sentimento, do nosso entusiasmo, como professores, e de uma imersão cultural que valorize a leitura. O que se pode ensinar é a atitude dialógica com a arte, a capacidade de ver além do mundo significativo e, também, de nos relacionarmos pessoalmente com este mundo com total abertura e enriquecimento com os significados descobertos.
O principal é a transmissão do usufruto pessoal, da estranheza, do incómodo que determinado texto, determinado autor nos causa. Apesar de, como Ricoeur afirmou, a transmissão exacta do que eu sinto seja impossível; na recepção da mensagem ela é adaptada a quem sente.

Mário Rufino
08/2006

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Bibliografia

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! PEREIRA, Miguel Serras (1999) “Átrio”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 9-10
! PEREIRA,Miguel Serras (1999) Exercícios de Cidadania, Lisboa, Fim de Século
! REIS, António (1999) “História: A Memória do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 121-125
! RICOEUR, Paul (1996) Teoria da Interpretação, Lisboa, Edições 70
! SCHOLES, Robert (1991) Protocolos de Leitura, Lisboa, Edições 70
! STEINER, George (2002) Depois de Babel -aspectos da linguagem e comunicação, Lisboa, Relógio d` água
! TAMEN, Pedro (1999) “Um Copo é um Copo é um Copo”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 229-231
! TITIEV, Mischa (1991) Introdução à Antropologia Cultural, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
! TODOROV, Tzvetan (1993) Poética, Lisboa, Teorema
publicado por oplanetalivro às 08:26

29
Fev 12

A Cultura e as Comunidades de Leitura

“aspira a contagiar a los demás ara que sean felices cada cual a su perspectiva” 
Ortega y Gasset en El Espectador

“Para o linguista, a comunicação é um facto e mesmo até o facto mais óbvio. As pessoas, efectivamente, falam umas com as outras. Mas, para uma investigação existencial, a comunicação é um enigma e até mesmo um milagre. Porquê? Porque o estar junto, enquanto condição existencial da possibilidade de qualquer estrutura dialógica do discurso, surge como numa multidão, ou de vivermos e morrermos sós, mas, num sentido mais radical, de que o que é experienciado por uma pessoa não se pode transferir totalmente como tal e tal experiência para mais ninguém. A minha experiência não pode tornar-se directamente a vossa experiência. Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode transferir-se com tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação. Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se pública. A comunicação é, deste modo, a superação da radical não comunicabilidade da experiência vivida enquanto vivida. 

RICOEUR:1996, pp27-28


TEXTO INTEGRAL EM  Revista Letras et Cetera (Brasil)

http://nanquin.blogspot.com/2012/02/cultura-e-as-comunidades-de-leitura.html
publicado por oplanetalivro às 22:20

06
Fev 12
Estética, Literatura e Ensino


http://nanquin.blogspot.com/2012/02/estetica-literatura-e-ensino.html

De uma forma consensual, é reconhecido a Baumgarten (1750) o estabelecimento dos fundamentos de pensar e escrever sobre o estudo que diz respeito à beleza, às artes, ao receptor e ao artista.
Falamos da «Estética» de Baumgarten definida como ciência da cognição sensível, que atribui grande importância aos sentidos como fundamentação dos juízos, considerados, até então, pertencentes ao domínio inferior do conhecimento.
Este autor foi decisivamente influenciado por Wolff, conhecido como o autor do termo «consciência».
No que à literatura diz respeito, a mesma não se deixa aprisionar numa definição. Como podemos definir algo que se baseia em conceitos como beleza, estranhamento, originalidade? Não podemos; e vislumbramos a literatura como um conceito mutável e infiel ao tempo.
Apesar da tentativa de apreendê-la num conjunto de obras ou autores denominados de cânone, a verdade é que a literatura não se limita a esse conjunto. Deixa, isso sim, ser representada pelos mesmos para, algum tempo depois, aparecer representada noutras formas de diferente beleza mas continuamente estranha e original.
A palavra literatura deriva do latim, de littera,ae, e significa o ensino das primeiras letras. Ao longo do tempo, modificou-se o sentido para arte das belas letras, ou arte literária.
Levanta-se imediatamente alguns problemas: “arte”; “belas” (que não poderemos discutir aqui) e a percepção imediata da subordinação da literatura à letra, subestimando a chamada (agora) literatura oral (o som não veio antes do símbolo?). Falamos de literatura, principalmente, quando nos referimos a documentos escritos ou impressos. Pensemos que se Pessanha continuasse a ler os seus poemas sem os escrever não poderíamos considerar Clepsidra como uma obra marcante da literatura portuguesa.
Quando falamos em obra literária pensamos em objecto palpável e não numa sequência sonora. É curioso pensar que a poesia só se completa quando lida em voz alta...
A civilização toma consciência de si própria através da escrita projectando a mensagem através do diferimento da leitura da mesma.
Para Massaud Moisés, por exemplo, a ideia de uma literatura oral, popular, é simplesmente folclore e só tem status literário quando é escrita. (A hierarquização, a competitividade é uma constante na criação literária e na análise literária como iremos ver neste ensaio.)
No entanto, Alfonso Reyes não partilha da mesma opinião, pois, em rigor, a literatura é oral por essência devido à anterioridade do som ao carácter gráfico. O adiamento da apreensão do sentido acontece por limitações de memória e de transmissão às novas gerações. Tentamos enganar o tempo. É uma fatalidade histórica.
Hoje temos, obviamente, novos recursos que nos permitem arquivar informação com clara influência na ampliação do conceito de texto. No entanto, nem todo o texto escrito é classificado como literário. Apesar de todo o texto se destinar à leitura, não se categoriza todo o texto como literário. E confrontamo-nos com a questão: o que é literatura?
Por mais esforços que façamos o problema não se resolve porque falamos em conceito e não em definição de literatura.
O conceito de algo caracteriza-o como acidental ou particular e decorre de impressões subjectivas. Quando falamos em beleza notamos a incapacidade de tornar o conceito em definição, ou seja, de reunir características que sejam universalmente aceites.
Alfonso Reyes afirmou que, das três formas principais de actividade produtiva do espírito, a filosofia ocupa-se do ser, a história e a ciência do suceder real e a literatura do suceder imaginário, composto por elementos reais mas construído num outro plano de existência.
Uma situação é certa e real: a linguagem não se limita a ser um meio de comunicação.
Literatura implica vontade de ser diferente, vontade de se estar noutro lugar.
A diferença entre a linguagem literária e a comum reside no cultivo deliberado, por parte da primeira, da forma que organiza, aperfeiçoa com um propósito artístico.
Não aprofundaremos este assunto porque é demasiado vasto e não é o leit-motiv deste ensaio. É um assunto não para um simples ensaio mas para uma (ou várias) tese de doutoramento (provavelmente condenadas ao fracasso se o objectivo for conseguir definir a literatura).

A literatura ensina-se?

Consegue-se ensinar algo que não conseguimos definir?
Da mesma forma que o Amor e a Fé, a Literatura pode ser conhecida de forma parcial mas, na sua essência, não se aprende, frui-se; é individual e intransmissível.
É possível conhecer o que é, por exemplo, um género literário, o que a História Literária diz acerca disso, quais são as circunstâncias socioculturais das produções literárias. Esta aprendizagem é possível e ajuda a contextualizar a parte principal, aquela que pertence ao foro íntimo e que não é possível descrever de forma sistemática.
Quando abordamos o ensino da Estética é difícil sabermos o que ensinar. Deixamos de falar da história e da teoria que se aprende como qualquer outra disciplina.
O contacto com uma obra de arte é um processo intuitivo de desenvolvimento pessoal e de personalidade.
Para José Gil (1999) as fases de percepção artística, e inerente natureza, são as seguintes:
- Começa-se por olhar um objecto considerado uma obra de arte e tem-se uma percepção trivial. Depois do olhar ultrapassar as formas triviais vê-se estruturas e materiais diferentes que não são imediatamente visíveis.
Algo se desloca no quadro que faz com que o olhar descubra outras relações. O olhar passa das formas triviais (uma casa ou uma natureza morta) para as relações de textura, de espaço.
Ainda não é o espaço da forma estética.
“ De certo modo, estas estruturas espaciais que descubro estão separadas das formas triviais, aparecem por contraste e, ao mesmo tempo, por aderência. Vão aderindo, por que são estruturas espaciais dessas formas triviais”
Numa fase distinta, obtém-se a percepção estética, a que José Gil chama de percepção de forças. Quando se diz que um quadro é triste e melancólico estamos a caracterizar um conjunto de forças que dão uma linha, uma forma de todas elas.
“ A percepção estética final é a percepção da forma de uma força”
As forças aparecem devido a uma deslocação da relação entre as formas triviais e espaços encobertos, abrindo uma ruptura na percepção do quadro.
Através da entrada no quadro e consequente viagem no mesmo, o espectador estabelece uma conexão ou comunicação indispensável para a percepção estética.
Em relação à interpretação, o espectador caminha pelo percurso imaginativo do artista. Ao imaginar-se percorrendo o quadro existe um movimento de qualquer coisa que não é um corpo próprio dentro de um espaço topológico; José Gil denomina esta situação de ponto-corpo ou ponto-material.
“Toco (se for um quadro com características hápticas) com o olhar, como se fosse o meu dedo a sentir a rugosidade ou o liso da textura.
Há como que uma pele que ali se passeia, mas que não é de um corpo. É também um ponto abstracto, porque posso entrar num abstracto. É um ponto-corpo, porque é um ponto que é um corpo e que pode deixar de o ser, pode aderir a uma superfície, a uma cor, pode reduzir-se, pode quebrar-se em mil fragmentos. Segue o movimento da imaginação, que é o movimento dessas forças que vimos aparecerem debaixo das estruturas triviais, nas frinchas entre as formas triviais e os espaços”
A imaginação molda e transforma o corpo. É o espectador que completa o quadro. (O pensamento de Merleau-Ponty em “O olho e o espírito” é uma excelente leitura sobre esta matéria.)

Abraham Maslow insistiu na criação de um modelo educativo que assentasse na educação estética pois, actualmente, o ensino resume-se a um conteúdo profissional. O objectivo seria a auto-realização dos alunos e o seu desenvolvimento pessoal.
O problema é saber em que consiste a arte e a estética daí imanente...
A literatura como objecto estético não é ensinável.
O que pode ser transmissível são as características particulares, os cenários históricos específicos. Esta base factual que serve para os exames e análises qualitativas/quantitativas da sabedoria.
Este ensino de tipo institucional, abrangendo matéria e modo de ensinar, obedece sempre a opções políticas determinadas. As obras/autores ensinadas/os inserem-se numa política de senso comum com origem em grupos ou classes que defendem os seus interesses. É aquilo a que chamamos de “sistema” quando não conhecemos a face ou o nome de quem promove o caminho denominado de normal.
Qualquer tipo de educação é uma prática profissional que tem o objectivo de fornecer às pessoas determinadas vertentes da experiência social que são partilhadas no interior de dada sociedade. Exemplos desta situação são o conhecimento do universo, normas sociais, crenças, ideologias, aptidões e práticas do quotidiano, etc.
O processo de socialização passa pela apropriação e assimilação desta experiência pelos indivíduos. O sistema de ensino é um pilar fundamental da sustentabilidade deste processo.

Não se ensina literatura da mesma forma que não se ensina a amar, a ter fé, a ser bom (bondade); pode-se influenciar através do nosso sentimento, do nosso entusiasmo, como professores, e de uma imersão cultural que valorize a leitura. O que se pode ensinar é a atitude dialógica com a arte, a capacidade de ver além do mundo significativo e, também, de nos relacionarmos pessoalmente com este mundo com total abertura e enriquecimento com os significados descobertos.
O principal é a transmissão do usufruto pessoal, da estranheza, do incómodo que determinado texto, determinado autor nos causa. Apesar de, como Ricoeur afirmou, a transmissão exacta do que eu sinto seja impossível; na recepção da mensagem ela é adaptada a quem sente.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com


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Bibliografia

! AMARAL, Fernando Pinto do (1999) “O Sentido e as Cambiantes”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 233-237
! BARRENTO, João (1996) A Palavra Transversal -literatura e ideias no século XX, Lisboa, Cotovia,
! BARTHES, Roland (1988) O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70,
! BRITO, Joaquim Pais de (1999) “Os Objectos Imaginários”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 133-139
! CASIMIRO, Mário (1999) “Imaginar a Prova”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 129-132
! CASTORIADIS, Cornelius (1999) “Imaginário e Imaginação na Encruzilhada”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 85-106
! CENTENO, Yvette (1999) “Imagem e Símbolo na Obra Literária”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 119-120
! COMETTI, Jean-Pierre (1999) “A Imaginação sem o Poder- pragmatismo e imaginário social”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 29-48
! GIL, José (1999) “Imaginar a Imaginação”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 53-66
! HELENO, José Manuel (1999) “Castoriadis: A Libertação da Imaginação”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 107-111
! LEONTIEV, Dmitry A. (2000) “Funções da Arte e Educação Estética”, in Educação Estética e Artística - abordagens transdisciplinares, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 127-145
! LOURENÇO, Eduardo (1999) “A Europa e a Questão do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 13-24
! MARQUES, José-Alberto (1999) “Os Deuses ao Espelho”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 79-84
! MARTINHO, Ana Maria Mão-De-Ferro (2001) Cânones Literários e Educação- os casos angolano e moçambicano, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
! MERLEAU-PONTY (2000) O Olho e o Espírito, Lisboa, Vega
! ORTEGA Y GASSET, José (1987) Meditaciones sobre la Literatura y el Arte-la manera española de ver las cosas, Madrid, Clásicos Castalia
! ORTEGA Y GASSET, José (1998) El Espectador, Madrid, Biblioteca Edaf
! PEREIRA, Miguel Serras (1998) Da Língua de Ninguém À Praça da Palavra, Lisboa, Fim de Século,
! PEREIRA, Miguel Serras (1999) Poema em Branco, Lisboa, Fim de Século
! PEREIRA, Miguel Serras (1999) “Átrio”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 9-10
! PEREIRA,Miguel Serras (1999) Exercícios de Cidadania, Lisboa, Fim de Século
! REIS, António (1999) “História: A Memória do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 121-125
! RICOEUR, Paul (1996) Teoria da Interpretação, Lisboa, Edições 70
! SCHOLES, Robert (1991) Protocolos de Leitura, Lisboa, Edições 70
! STEINER, George (2002) Depois de Babel -aspectos da linguagem e comunicação, Lisboa, Relógio d` água
! TAMEN, Pedro (1999) “Um Copo é um Copo é um Copo”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 229-231
! TITIEV, Mischa (1991) Introdução à Antropologia Cultural, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
! TODOROV, Tzvetan (1993) Poética, Lisboa, Teorema
publicado por oplanetalivro às 09:45

20
Ago 11
Vozes na Literatura

Apresenta-se a Literatura como uma polifonia, onde cada voz distingue-se pela sua individualidade?
O pensamento construído e apoiado nesta hipótese basilar sugere a existência de um corpus onde tudo é dependente e comparável. Ao existir a pluralidade de vozes literárias, perspectivas divergentes, a Literatura compõe-se tanto pelos textos canónicos como pelos textos marginais. A voz que agora é obliterada do seu valor, alto ou baixo, é o exemplo de que existem possibilidades de novas perspectivas fora da formatação esperada. Se a maior parte não carece de atenção e serve somente para sublinhar a importância dos livros a que foram atribuídos propriedades de Beleza Estética, de Universalidade, existem vozes que saem, misteriosamente, da margem para onde foram empurrados.
Pergunto se a fruição da Literatura, o assombro perante uma voz modificadora da realidade, não se forma através da leitura de muitos textos pouco valorizados. A identificação da qualidade não passará, obrigatoriamente, pela leitura crítica de textos considerados irrelevantes?
O medo parasita a opinião. A ignorância é tapada com as palavras dos outros. O vício de propriedade está presente no medo de quem opina. Em caso de insegurança, não se arrisca ao formar a opinião própria, com leituras atentas, mas decalca-se a opinião alheia em citações descontextualizadas. E o estatuto mantém-se… sem existir, necessariamente, a universalidade, o assombro que nos leva a perpetuar a leitura de uma obra. E o irrelevante torna-se relevante.

MR
mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 15:12

19
Ago 11

“aspira a contagiar a los demás ara que sean felices cada cual a su perspectiva”

Ortega y Gasset en El Espectador

“Para o linguista, a comunicação é um facto e mesmo até o facto mais óbvio. As pessoas, efectivamente, falam umas com as outras. Mas, para uma investigação existencial, a comunicação é um enigma e até mesmo um milagre. Porquê? Porque o estar junto, enquanto condição existencial da possibilidade de qualquer estrutura dialógica do discurso, surge como numa multidão, ou de vivermos e morrermos sós, mas, num sentido mais radical, de que o que é experienciado por uma pessoa não se pode transferir totalmente como tal e tal experiência para mais ninguém. A minha experiência não pode tornar-se directamente a vossa experiência. Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode transferir-se com tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação. Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se pública. A comunicação é, deste modo, a superação da radical não comunicabilidade da experiência vivida enquanto vivida.

RICOEUR:1996, pp27-28





A Cultura e as comunidades de leitura

“Uma vez constituída uma civilização, uma cultura, não só reformula sem cessar aquilo que a funda, mas nessa reformulação se aprofunda”
Eduardo Lourenço

“ Sempre que estudo os problemas humanos tenho procurado cuidadosamente não escarnecer, lamentar, ou condenar, mas apenas compreender”
Espinosa

“Yo soy yo y mi circunstancia”
Ortega y Gassett



É ideia corrente que a língua é o espelho de formas comportamentais da sociedade a que corresponde. A linguagem, no seu sentido mais lato, tem uma importância fundamental para o desenvolvimento e continuação do comportamento-padrão, ou dito de outra forma, a sobrevivência e expansão dos traços culturais da sociedade a que corresponde.
As abstracções e os conceitos imaginários adquirem, quando colocadas em palavras, uma realidade que sem o uso da linguagem seria impossível transmitir.
O imaginário, individual e colectivo, não é um mundo que se possa contemplar, mas no qual estamos imersos.
A ordem histórica não nos confere um estatuto identitário, se a inclusão do imaginário, crenças e valores não for permitida.
A sua assimilação faz parte da cultura de um povo; é para o individuo, ou sociedade um reservatório de imagens de uma forma tão dinâmica que tem o poder de conferir um sentido que o aspecto empírico da vida não confere.

“ Imaginário, porque a história da humanidade é a história do imaginário humano e das suas obras. História e obras do imaginário radical, que aparece a partir do momento em que há uma colectividade humana: imaginário social instituinte que cria a instituição em geral (a forma instituição) e as suas instituições particulares da sociedade considerada, imaginação radical do ser humano singular”
(CASTORIADIS: 1999, PP.97)

Toda a sociedade humana tem uma língua e uma cultura interdependentes entre si. Por definição, a língua diz respeito às formas de comportamento que podem ser vocalizadas enquanto a cultura está relacionada com inúmeras actividades que podem nunca ser expressas em palavras nem acompanhadas pela fala.
Os seres humanos são os únicos capazes de atribuir valores simbólicos e arbitrários a expressões vocais.

“ A espécie humana é obrigada a inventar-se e a fazer-se a si própria, a criar o seu sentido e a dar-se a sua própria lei. Mas trata-se de uma verdade que lhe é entre todas difícil de enfrentar e assumir, pois implica que o modo de Ser do real não obedece a qualquer ordem una de determinações última ou primeira, que o fundamento do nosso ser e do nosso fazer não é sólida e maciçamente garantido por anterioridade lógica ou final alguma, mas que, sendo incerta e visitada intimamente pelo caos, a nossa natureza, é sem modelo, como o poema, que devemos governar-nos em pleno acontecer”
(SERRAS PEREIRA: 1999,pp.37)

As línguas servem como sistemas de comunicação entre os membros de uma sociedade que tenham aprendido a associar os mesmos significados, os mesmos sons. No entanto, deve-se considerar que uma língua tem o valor de comunicação apenas na sociedade onde é utilizada. Para além dela pode ser reduzida à inutilidade devido à inexistência de partilha do mesmo código.
Os linguistas de formação antropológica, como Boas, Sapir e Bloomfield, almejam vários objectivos:
- Querem registar o maior número possível de línguas primitivas; pretendem analisar sons e modificações gramaticais pelas quais se pode comunicar uma variedade de significados; procuram mostrar até que ponto uma língua pode reflectir o ambiente cultural onde estão inseridos os falantes; querem mostrar as modificações históricas provocadas numa língua por factores internos ou externos (empréstimo de outras línguas).
Apesar de até há pouco tempo se pensar que os pensamentos ditavam a escolha de palavras, hoje esta teoria é posta em causa.
Whorf[1] afirma que um padrão socialmente aceite de emprego de palavras é frequentemente anterior a certas formas culturalmente aprovadas de pensamento e comportamento.
Exprimimos os nossos pensamentos em palavras mas as palavras ajudam-nos a moldar os pensamentos.
Toda a língua reflecte a cultura em que está inserida; nenhuma existe fora de uma sociedade e da sua cultura.
Sem que exista uma cultura universal não há possibilidade de existir uma língua global.
Para se analisar a realidade histórica e social da obra artística têm de ter-se em conta os «meios» artísticos e não somente os valores artísticos (ideias poéticas, musicais, etc.).
Será possível pensar que a presença da história de determinada sociedade, numa peça musical, pintura ou filme, se faz sentir da mesma forma que num romance ou poema?
Pensamos que não. Os meios semânticos da poesia ou literatura são diferentes dos meios semânticos musicais.
O que têm em comum é o facto de serem unidades de um múltiplo, ou seja, do pensamento.
A obra literária é considerada como um sistema de significação sustentado por um conjunto informacional que é a linguagem articulada (português, no nosso caso), acrescentada de uma metalinguagem que podemos chamar de conotação. A literatura não é composta de abstracções, ela alimenta-se dos sentidos e da imaginação.

“Só posso nomear os objectos. Eles são representados por sinais. Só posso falar deles, não posso exprimi-los. Uma proposição só pode dizer como uma coisa é, não o que ela é.”
(Wittgenstein, Tractactus, 3.221)

A literatura, principalmente a poesia, alimenta-se deste espaço, deste vazio entre o objecto e o sinal.

A Arte e a filosofia tentam dar uma forma ao caos que subjaz ao cosmos, ao mundo, ao caos que está por trás das aparências.
Assim, a linguagem na sua natureza metafórica mostra-se como tradução. Esta relação de “valer por...” da função simbólica não é apenas uma característica interna de cada língua mas configura a relação da linguagem com o mundo incluindo a história humana e a realidade psíquica do indivíduo.

A língua veicula as significações (como já foi referido) que configuram o seu mundo, permitem as transmissões de costumes e valores, etc. A codificação e fixação do sentido é homólogo das formas de organização social, enquanto, de muitas formas, as torna viáveis.

“ A entrada na linguagem e no Mundo das significações partilhadas é investida enquanto tradução do corpo-a-corpo inicial com o mundo-mãe, o que significa que a realidade psíquica singular do sujeito aceita a imposição de se traduzir na língua (materna) do seu mundo, na medida em que minimamente lhe seja dado traduzir essa linguagem (...)”
(SERRAS PEREIRA:1999, pp.27)

Tal como a sociedade, a língua encontra-se em transformação permanente. Algumas línguas conservam-se numa imobilidade a que podemos chamar de artificial. Uma língua comum transforma-se constantemente; aparecem palavras novas e outras “morrem”. A gramática sofre adaptações, o que é permitido torna-se tabu e vice-versa.
Existem momentos em que as línguas se transformam de forma vertiginosa e, por outro lado, existem também momentos em que as mesmas se tornam extremamente conservadoras.

As palavras não são invulneráveis nem imortais.

Esta envolvência cultural é parte integrante do ADN da Interpretação.
O processo de leitura, apesar de pessoal, é marcado inequivocamente por comunidades interpretativas que nos fornecem protocolos de leitura.
De certa forma, a interpretação ou estratégia interpretativa é condicionada pelo sistema cultural, ou, se preferirmos, comunidades interpretativas.
Ana Maria Martinho (a autora o aborda a questão do canône, que falaremos mais à frente) mencionando Guilhory afirma o seguinte:

“ Para J. Guilhory, o histórico da formação do canône é a história das formas pelas quais as sociedades organizaram e regularam práticas de leitura e escrita. A escola será precisamente a principal instituição através da qual se exerce esta regulação, tendo emergido apenas, ou sobretudo, como instituição para preservar obras. Foi acometida da função social genérica de distribuir várias formas de conhecimento incluindo o conhecimento de como ler e escrever e o que ler e escrever: “the problem of the cânon is a problem of syllabus and curriculum, the institutional forms by which Works are preserved as great Works”. O que nos parece válido para todas as realidades educativas e literárias que conhecemos” (MARTINHO:2001; pp.235)

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com


[1] “The Relation of habitual thought and behavior to language”


Bibliografia

! AMARAL, Fernando Pinto do (1999) “O Sentido e as Cambiantes”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 233-237
! BARRENTO, João (1996) A Palavra Transversal -literatura e ideias no século XX, Lisboa, Cotovia,
! BARTHES, Roland (1988) O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70,
! BRITO, Joaquim Pais de (1999) “Os Objectos Imaginários”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 133-139
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! HELENO, José Manuel (1999) “Castoriadis: A Libertação da Imaginação”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 107-111
! LEONTIEV, Dmitry A. (2000) “Funções da Arte e Educação Estética”, in Educação Estética e Artística - abordagens transdisciplinares, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 127-145
! LOURENÇO, Eduardo (1999) “A Europa e a Questão do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 13-24
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! MARTINHO, Ana Maria Mão-De-Ferro (2001) Cânones Literários e Educação- os casos angolano e moçambicano, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
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! PEREIRA, Miguel Serras (1999) Poema em Branco, Lisboa, Fim de Século
! PEREIRA, Miguel Serras (1999) “Átrio”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 9-10
! PEREIRA,Miguel Serras (1999) Exercícios de Cidadania, Lisboa, Fim de Século
! REIS, António (1999) “História: A Memória do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 121-125
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! TITIEV, Mischa (1991) Introdução à Antropologia Cultural, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
! TODOROV, Tzvetan (1993) Poética, Lisboa, Teorema
publicado por oplanetalivro às 20:31

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