06
Set 13

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Maria é carne.

Colm Tóibín (n. 1955; Enniscorthy, Wexford), autor irlandês várias vezes nomeado para o Man Booker Prize e detentor de diversos prémios literários, publica em Portugal o belo e inquietante “O Testamento de Maria” (Bertrand).
O texto de Tóibín é, sobretudo, sobre a condição feminina e sobre a infidelidade da palavra escrita à sua condição oral e primeira.
Maria, já no final da sua vida, relata a vida do seu filho desde o nascimento até à crucificação (foz e/ou nascente de muitas das suas recordações). Maria não sabe ler nem escrever. Marcos, que virá a ser considerado o fundador do Cristianismo em Alexandria, ouve e escreve.
“Sei que escreveu sobre coisas que nem ele nem eu vimos. Sei que deu também forma ao que eu vivi e a que ele assistiu, e que se certificou de que essas palavras terão peso, serão ouvidas” Pág. 11
De forma consciente, a matéria narrada pela mãe de Jesus é manipulada para adquirir conceitos universais. Marcos, tal como Tóibín, utiliza diversas técnicas narrativas, apropriadas à ficção, para contar o que foi visto por Maria. Ele ouve, adapta e regista. A oralidade tem, principalmente nesta época, um efeito imediato sobre um público presente e reactivo. A escrita não; o autor deste Evangelho tem em atenção as características do discurso escrito. O Evangelho segundo Marcos é, possivelmente, o mais antigo dos Evangelhos.
Tóibín sugere as limitações da escrita quando regista o discurso oral. A infalibilidade da palavra bíblica é posta em causa.

Marcos é, nesta obra, um homem mais político e pragmático do que crente. A sua perspectiva sobre Maria, por metonímia de mulher, é de distância e desvalorização.
“Por vezes, é difícil resistir à tentação de falar com ele, embora eu saiba que a minha mera voz o enche de desconfiança ou de um sentimento próximo da repulsa. Mas ele, tal como o colega, tem de me ouvir, é para isso que cá vem. Não tem alternativa” Pág. 15
A dinâmica de “O Testamento de Maria” deve muito à clivagem entre a perspectiva dos apóstolos e a condição de Maria, como testemunha, mulher e mãe.
O Jesus de Maria é matéria que nasce da matéria. O Espírito Santo é secundarizado pela perspectiva maternal. Jesus é seu filho, foi gerado no seu útero. Não é parte integrante da Santíssima Trindade.
É uma mulher cercada: pelos discípulos, que lhe dão comida e providenciam abrigo, pelos informantes, pelo remorso e pelo medo – especialmente pelo medo. Maria é uma mulher dominada pela memória negra do dia da crucificação.
“ (...) apesar do pânico, apesar do desespero, dos gritos, apesar de o coração e da minha carne, apesar da dor que senti, uma dor que nunca me abandonou e que irá comigo para a campa, apesar de tudo isto, a dor era dele não minha. E quando se pôs a hipótese de eu ser levada à força e asfixiada, a minha primeira – e última – reacção foi fugir” Pág. 89
A Palavra é o corpo da interpretação.
Maria é carne.


Mário Rufino

Mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 20:44

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