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Fev 14

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«Nove Histórias»: o sexo e outras formas de poder


“Nove Histórias” (Quetzal) reúne os contos publicados por Jerome David Salinger (n. Nova Iorque;1919-2010) em diversos jornais e revistas entre 1948 e 1953. O interesse destes contos reside, essencialmente, na caracterização psicológica das personagens que protagonizam alguns episódios. No entanto, essa caracterização não pode ser dissociada do contexto do pós-guerra, anos 50, época em que existe a ascensão da classe média, ansiosa de sucesso e de poder de compra.
O conforto material esconde um lado manipulador exercido pela sociedade. Nessa socialização ditatorial, há os indivíduos, tal como o autor, desajustados com a realidade imposta. A incompatibilidade manifesta-se de diversas formas. O papel da mulher, por exemplo, altera-se no pós-guerra. A luta pela educação superior e emancipação é substituída pela educação utilitária. A mulher é vista como mãe de filhos e dona de casa. Ao homem cabe o perfil de trabalhador e sustento da família. A falsidade desta imagem é destruída, meticulosamente, pelo autor norte-americano através de episódios demonstrativos da subterrânea infelicidade do indivíduo. Em “Nove Histórias”, o realismo coabita com o absurdo.
Salinger, ele próprio um inadaptado ex-combatente da II Guerra Mundial, afasta-se do expectável e escreve sobre as vigentes regras de conduta. O autor afasta a nebulosa hipocrisia. Os seus textos viriam a marcar a literatura norte-americana.
“Um dia ideal para o peixe-banana”, primeira narrativa breve do livro, dá o mote para as restantes ficções. Este conto foi, também, o primeiro a ser publicado pelo autor (em “The New Yorker”).
Em “Um dia ideal para o peixe-banana”, o leitor é confrontado com esse desajustamento individual e colectivo que estará presente, sob diversas formas, nos outros oito contos:
- O papel da mulher, o abandono das carreiras profissionais em detrimento da família, a frustração causada pelas escolhas erradas (“Pai torcido no Connecticut”, por exemplo); a decepção e o comportamento indefinido com crianças (“Homem que Ri”); a conflitualidade matrimonial, a projecção de necessidades e a inevitável decepção (“Teddy”); o narcisismo (“A fase Azul de De Daumier-Smith”); o adultério e a imagem  de homem de sucesso (“Linda boca e verdes meus olhos”); o ressentimento, a pacificação   (“Pouco antes da guerra com os esquimós”); a autobiografia  (Para Esmé - com amor e sordidez), a solidão de uma criança, isolada num simbólico bote, e a relação com a sua mãe (“Em baixo no bote”. Talvez o conto mais optimista do livro).
As narrativas breves de Salinger são de complexo conteúdo e de simplicidade narrativa. Todas as histórias são muito mais do que uma só leitura apreende.
Em “Um dia ideal para o peixe banana”, a relação entre a subjectividade e a objectividade atinge um grau elevado de complexidade. Seymour Glass, cuja família pode ser acompanhada noutros textos do autor, está na praia junto a um hotel onde se reúnem muitos agentes publicitários. Seymour conversa com uma criança chamada Sybil sobre “peixes-banana”, enquanto a sua mulher conversa com a respectiva mãe ao telefone.
Salinger desafia o leitor a desvendar as diversas e subjectivas camadas de significância dentro de um episódio objectivo e até banal.
Repare-se na impossibilidade de fuga em Muriel, fechada no quarto devido a uma insolação, e em Seymour, preso dentro da sua loucura. O sexo está sempre implícito. A relação entre Seymour e a criança sugere a pedofilia, Muriel comprou uma blusa numa loja Sacks (lê-se sex) e, sozinha no seu quarto, lê um artigo intitulado “O sexo é o paraíso...ou o inferno”. Depois há os tão mencionados peixes-banana, que se inserem e se escondem num orifício.
Dentro das características inerentes ao conto, como a da brevidade, Salinger consegue aliar a análise social (realismo) à análise individual (psicologia).
Em todos os contos, o autor gere a velocidade da narração de forma exímia. Salinger acelera ou abranda a narração de forma a optimizar o suspense, o humor, a tensão e o drama. O leitor tem a estranha sensação de que algo de dramático está prestes a acontecer. 
Os espaços em branco (intervalos na narrativa) permitem a mudança de acção e a introdução de lacunas que aumentam a estranheza.
A adopção da pluralidade de pontos de análise é uma obrigatoriedade para o leitor aproximar-se da total significância na escrita do autor de “Franny e Zooey” e “À espera no centeio”.
O exílio de J.D Salinger resultou no invulgar interesse pela sua personalidade. Salinger partilha características com as personagens dos seus contos. A principal é a permanente inadaptação.
O simbolismo presente e a proximidade de diversos episódios ficcionados à vida real do autor são parte da riqueza literária de “Nove Histórias”.
A canonização dos livros de Salinger tem sido efectuada tanto pelos estudos académicos como pela recepção dos leitores.
“Nove Histórias” merece releitura e estudo aprofundado, pois é um exemplo de excelência dentro deste género narrativo.
publicado por oplanetalivro às 13:53

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