26
Nov 12

«Mazagran - Recordações & outras fantasias» (Quetzal)





J. Rentes de Carvalho não perde uma oportunidade para contar uma história.
 “Mazagran - Recordações & outras fantasias”, livro composto por crónicas, muitas delas em formato epistolar, não desilude quem já conhece o autor e tem a capacidade de surpreender quem ainda não o conhece.

Mazagran, bebida típica do Maghreb e composta por café forte, limão, açúcar e água gasosa, é um estímulo para a conversa entre convivas. É um pretexto para a partilha de histórias. A bebida também leva, segundo o escritor, um pouco de conhaque quando o profeta está distraído. Este tipo de irreverência está presente nos 104 textos que constituem este livro.
“ Além disso, devo dizer que na tua idade - vais fazer dezasseis? - Não há nada de alarmante em querer liquidar os pais. Eu próprio comecei a «matá-los» quando tinha uns doze anos e, curiosamente, também por causa da Páscoa” Pág. 21
Nesta obra é mantido o registo sarcástico, rabugento e sapiente que pode ser encontrado em dois livros do mesmo género literário: “Com os Holandeses” e “Tempo Contado” (Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CM Castelo Branco 2010/2011).
O trabalho sobre a linguagem é uma característica que, pela constância tanto em ficção como em não-ficção, dota a obra de Rentes de Carvalho de homogeneidade e notável qualidade.
 Em “Mazagran…”, Rentes de Carvalho  consegue envolver o leitor da mesma forma que conseguiu em “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” (narrativas curtas), “O Rebate” (romance), ou em “Com os Holandeses” (Crónicas).
 As suas memórias são salvas do esquecimento e formalizadas na prosa que, por ter um ritmo próprio, se identifica como criação de Rentes de Carvalho. O contexto social mantém-se, principalmente, na Holanda, Portugal e Brasil.
Na crónica “O prazer da viagem”, o autor relaciona o tamanho do mundo com a velocidade com que um indivíduo o consegue percorrer. As viagens longas são cada vez menos viáveis na contemporaneidade. Essa redução de velocidade influencia a noção de distância, reduz a imprevisibilidade e tem, consequentemente, importância na experiência individual e respectiva rememoração.
A viagem, como suspensão de uma realidade para a vivência de uma outra, torna-se mais curta e mais formatada.
Em “Diários” o escritor confronta-se com o seu passado, quando analisa a evolução da sua consciência ao longo do tempo. O medo do ridículo e a difícil dialéctica entre o “eu” presente e os “eus” que foram desaparecendo, em “mortes” sucessivas, estão espelhados nas páginas desta crónica.
“O diário que recebia os meus segredos, o confidente silencioso e discreto, era afinal o mais cruel dos espelhos: apenas capaz de reflectir a imagem incorrigível do passado (...) O que verdadeiramente me dita urgência, porém, é o temor de que um acaso maléfico - a morte súbita, a paralisia - coloque o meu «espelho» em mãos alheias. Que outros vejam reflectidas nele as mil imagens que quero esquecer e que, antes de poder fazer em paz o enterro do meu velho «eu», alguém o transforme em divertimento de praça pública” Pág. 173
O autor não está camuflado pela ficção.
O texto “Para Romário de Souza Faria”, o futebolista, é demonstrativo da mordacidade que a escrita de Rentes de Carvalho pode alcançar.
“À semelhança daquele escritor que, quando lhe perguntaram o que é que ele pensava da literatura, respondeu: « Eu sou a literatura!», você com certeza sente que é o futebol” Pág.284

Todos os textos de “Mazagran - recordações & outras fantasias”, apesar de algumas inevitáveis oscilações, são dignos da qualidade com que o escritor já habituou os leitores em Portugal.
Outrora conhecido essencialmente na Holanda, Rentes de Carvalho já conquistou o “espaço” na Literatura Portuguesa compatível com a excelência literária dos seus textos.


Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com


Mazagran - Recordações & outras fantasiasMazagran - Recordações & outras fantasias by José Rentes de Carvalho
My rating: 3 of 5 stars

O meu texto, para o diário Digital sobre "Mazagran - Recordações e outras fantasias"

http://oplanetalivro.blogspot.pt/2012...


3 estrelas em comparação com livros mais importantes na bibliografia do autor. Dentro do género - crónicas- vale mais. É um grande escritor

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publicado por oplanetalivro às 11:40

05
Jun 12

Entrevista com J. Rentes de Carvalho
sobre “O Rebate” -Quetzal

-O respeito pelo leitor implica que você não vai julgar que o leitor é estúpido porque ele não é. O que você vai ser é muito humilde e saber que o leitor é muito competente e muito capaz. Claro que há uns – inclusive os críticos- que não serão capazes de acompanhar, mas a culpa é deles não é minha.-http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=574593


Cheguei ao hotel e vi J. Rentes de Carvalho a observar um grupo de ingleses que, às 10 da manhã, bebia champanhe no átrio. De braços cruzados, rosto impávido e sereno, concentrado no grupo, não me viu chegar. Assim que me apresentei, foi ele que fez a primeira pergunta: “Você percebe alguma coisa de computadores?” e apontou para o seu portátil.
José Rentes de Carvalho é um contador de histórias. Sempre afável e conversador, não perdeu a vertente pedagógica formada pelas décadas de ensino universitário na Holanda. O motivo da nossa conversa era a edição do seu romance “O Rebate” (Quetzal), mas falámos sobre muito mais do que isso. Através desta entrevista, podemos conhecer o trajecto pessoal e o caminho que o escritor teve que percorrer até ser reconhecido em Portugal. J. Rentes de Carvalho leva-nos até outros autores. Os seus livros levam-nos até outros livros.
Começámos por falar sobre a sua colectânea de contos “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” e continuámos por muitos mais temas. “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”, também editado pela Quetzal, foi o livro que antecedeu “O Rebate”. No começo da nossa conversa ficámos a saber a razão de o livro ter o título de um dos contos que o integram.
Como ele gosta de dizer, “Eu vou contar-lhe outra história.”:
JRC- O livro [“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”] eram dois livros. Na Holanda foi editado como dois. Um com o título de “O Milhão, recordações e outras fantasias” e “O Joalheiro”. Mas quando estive a falar, cá, disse que aquilo era tudo o mesmo e para fazermos um livro só e juntei, porque gosto muito de Dalton Trevisan… -não conhece, não? Vá comprar já! Dois títulos: “A guerra conjugal” e “O cemitério de elefantes”. O Dalton Trevisan é ainda vivo e é um pouco mais velho do que eu. É director de uma fábrica de cerâmica em Curitiba (fábrica da família). Nos Estados Unidos, na Alemanha e na Holanda é considerado o melhor contista do mundo, mas no Brasil é só um bocadinho amado. Nos anos 60 escrevia, no máximo, um conto de página e meia, e muito excepcionalmente duas páginas, mas a força dele está no conto de uma página só. Os personagens masculinos são sempre José e as femininas são sempre Maria. Outro título: “O vampiro de Curitiba”. Agora está a ficar velho ou meio-tonto porque já tenta fazer um conto em 6 ou 7 linhas. É um bocado exagerado. Quer dizer…ele tem razão, mas a cabeça dele funciona de outra maneira do que a do leitor. Ele está-se nas tintas para o leitor. Esses 3 livros: “A guerra conjugal”, “Cemitério dos elefantes” e “O vampiro de Curitiba”. Eu tinha um colega, que foi meu tradutor e colega da Universidade, que era um fanático de Dalton Trevisan. Ele deu-me os livros todos e eu fiquei vendido. -Quando fiz esta junção de dois livros, escrevi o conto que dá o título ao livro “Os lindos braços da Júlia da Farmácia”. É uma página e ele está aí por uma simples homenagem ao homem que é fantástico! Eu nunca vi um escritor que seja capaz de dizer de alguém “Ele levantou-se e tinha caspa nas sobrancelhas” [Risos]. Uma filha que foi abusada pelo pai (não sabemos que foi), mas o pai morreu… Ele está no caixão; ela está sozinha com o pai, olha para ele, põe um cigarro e vai queimando-o aos poucos…Toda a gente devia ler Dalton Trevisan.

Tenho de lhe fazer uma pergunta que faço a mim e talvez seja a mais difícil. Por que razão só agora está a ser tão lido em Portugal?

A resposta é simples. O meu primeiro romance, “ Montedor”, foi aclamado de uma maneira “tonta” para aquele tempo. Saramago, que ainda não era uma pessoa com esta categoria, mas era um bom crítico e era respeitado, escreveu na Seara Nova uma pequena recensão…talvez de cem palavras… e deu-me uma quantidade de elogios e lançou-me no “meio” de Lisboa. Eu estava na Holanda e não segui isso. Depois houve umas tentativas de aproximação dos neo-realistas, mas tudo muito discreto. Eles disseram logo “Este sujeito não é de cá, nem quer ser de cá…”…não é no sentido da nacionalidade, ou da sensibilidade mas de não ser de cá da “capelinha” O livro foi editado pela antecessora da “Caminho”, pela “Prelo”, que era do Partido Comunista, toda a gente sabia, e três anos depois, em 71, saiu o segundo romance [O Rebate] e então caiu-me a malta em cima. Eu até pus no meu blogue [Tempo Contado] aqui há uns tempos. Entre outros, o Sr. Nelson Matos, que naquela altura era crítico: “..este gajo nem sequer sabe conjugar os verbos…isto não é linguagem…devia ter cabeça”. Eu tenho com muito orgulho aquilo no meu blogue. E depois tive uma sorte do caneco. Tinha um amigo que, por acaso, era editor holandês, director de uma grande editora, e juntávamo-nos a conversar, de vez em quando, num café. Ele bebia muito, eu bebia menos, fumávamos ambos muito, e demorávamos muitas horas a conversar. Nesse belo dia eu estava maldisposto com a vida e com a Holanda e dei uma “catanada” nos holandeses e ele ouviu, pois era um homem educado, cultivado e muito inteligente. Ao fim daquilo (demorou mais de uma hora; devo ter perdido a cabeça…) ele diz assim: “Porque é que não escreves isso?”
[acenou a cabeça negativamente] Eu estava tão arreliado com eles e com a vida… Fomos embora.
No dia seguinte ou talvez dali a dois dias recebo uma carta.
A carta trazia um cheque muito generoso e tinha um cartãozinho a dizer “e agora este é o pagamento dos direitos de autor”. E foi assim que o livro [Com os holandeses] nasceu.

O Rebate” foi publicado agora, mas foi escrito quando?

Em 71

…e foi antes e depois de que livro?


Primeiro, foi “Montedor”, que o Saramago elogiou. Depois foi este [“O Rebate”] que toda a gente deitou abaixo. Teves umas críticas feitas por um sujeito que trabalhava para a Gulbenkian…”..isto não é moralidade…” enfim..
Depois, veio o livro “Na Holanda”…

…quando diz “Na Holanda” [edição holandesa] será “Com os holandeses” [edição portuguesa] cá ?

Sim, sim…Tem um título “Onde mora um outro Deus”, mas eu achei que esse título não passava em Portugal.
O êxito foi enorme na Holanda. Foi espectacular. Tive três anos de edições consecutivas e tive um ano quase inteiro em páginas de jornais inteiras. Nunca tinham tido um sujeito a dizer aquelas coisas… [risos]. Eu não devo nada a ninguém, não tenho partido nem tenho dívidas…
Esta gente aqui… mudou depois porque tudo o que é nome na literatura portuguesa desde 1960 até hoje todos me conhecem, todos me cumprimentaram já alguma vez e mais! Uma grande parte, quando estive na universidade 32 anos, era convidada para ir lá dar uma conferência e nós instalávamo-los no Hilton. Agora acontece uma coisa: desde há dois anos essa gente que em trinta e tal anos não me conheceu diz assim à mocidade: “Diga-lhe lá! Eu conheço-o! Somos muito amigos! Ele que venha…” O único que fugiu dessa miséria foi o Alçada Batista. Se eu lhe contar…houve uma visita de Estado do Sampaio à Holanda. A Rainha, que já me convidou para sua casa, convidou-me a mim e à minha mulher para o jantar. E disse assim “Conhece o Rentes de Carvalho, seu conterrâneo…” E o Sampaio… [abriu muito os olhos demonstrando um ar atrapalhado] [risos]
Tenho um outro testemunho: esse jantar era oferecido pela Rainha ao Sampaio, depois o Sampaio ofereceu um jantar à Rainha numa espécie de igreja. Está o António Esteves Martins, está o Jaime Gama e estou eu. Estamos a conversar, tinha acabado o buffet, a Rainha passa com o Sampaio, olha para mim e faz assim [acenou com a mão]; e o Jaime Gama diz assim: “Ela conhece-o????” [risos] e o rapaz da TV disse que sim, conhece…
Tenho cartas muito bonitas do pai da Rainha a agradecer…ele gostou muito do livro, ele próprio era alemão, por isso compreendia muito bem…Na Holanda, tenho uma situação que não tem nada a ver. Isto tudo interessa-me só pelo lado do afecto e da sensibilidade, mas a gente que é das literaturas…ah…
Não me interessa por uma quantidade de coisas…
Agora, estou a gozar este êxito. Eu soube ontem que depois do Peixoto sou o escritor que vende mais. Neste momento, o Peixoto vende um pouquinho mais do que eu, mas isso não… O carinho de ser editado na minha terra e de ser lido pela gente para quem estes livros foram escritos! Não foram escritos para a Holanda, menos “Com os Holandeses”… os outros não foram.
Tenho um guia de Portugal [Portugal, een gids voor vrienden (Portugal, Um Guia para Amigos)] que ultrapassou os 200.000 (duzentos mil) exemplares. Depois de ano e meio de ter saído a seguir de Portugal, foi espectacular. Esteve dez semanas acima de “O Nome da Rosa” do Eco. O ISEF fez um estudo e concluiu que no ano anterior cerca de 300.000 (trezentos mil) turistas holandeses tinham vindo a Portugal por causa do guia ou com o guia. Então o governo foi muito gentil e perguntou o que podiam fazer: “Você aceitaria uma condecoração?” Lá me fizeram Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Mas fizeram outra coisa…

…foi com Sampaio?

…não, foi com Mário Soares. Outra coisa que fizeram, que eu achei muito gentil, foi que o governo ofereceu trazer nove jornalistas holandeses durante dez dias para Portugal, com “carta branca” de despesas. Foi muito bonito. Depois, o meu editor holandês, que me tinha mandado o cheque e que ganhou muitos milhões de florins naquela altura, disse “A Editora quer fazer alguma coisa por ti. O que é que tu queres?”
Pedi para se editar pelo menos 5 romances de Eça de Queiroz. Fizeram uma edição de luxo. E eu pus Eça de Queiroz, como já tinha posto Fernando Pessoa, na literatura holandesa. Aliás, Pessoa desde 1992 já vendeu para cima de 150.000 (cento e cinquenta mil) exemplares na tradução do meu colega. Não tem ideia do impacto de Fernando Pessoa na literatura holandesa! A tradução é genial.

O que é que traduziram na Holanda?

Traduziram o “Livro do Desassossego”, “ A Mensagem” e traduziram uma colectânea grande de poemas… O essencial de Fernando Pessoa.
Sabe… A vaidade está satisfeita, a parte financeira também está satisfeita….

Perguntei-lhe quando é que tinha escrito “O Rebate” porque há uma grande diferença entre a forma de escrever de “O Rebate” para “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”[penúltimo livro editado] …

…aí há vinte anos de diferença.
O meu sonho na vida era ser realizador de cinema. Ainda fiz dois anos no IDHEC, em Paris, mas descobri uma coisa triste. Eu sou muito individualista e tenho horror a estar dependente, a precisar de [algo] para funcionar. O cinema não é feito pelo realizador; é pelo homem do dinheiro. O homem do dinheiro é que diz “Eu não quero essa cena. Deita fora.”. Alguém estar a dizer-me…um editor que me dissesse “Isto tem de mudar. Põe um bocadinho mais de sexo…”! Eu tenho tido uma sorte do caneco até agora: dois editores na Holanda e o da Quetzal são gente que me compreende e que se pegam [no livro] não vão mexer. Essa história do “Editor” [escola americana] … mas de quem é o livro? É meu ou é dele?
Por exemplo, O John Grisham não escreve. A Editora tem uma colectânea de cinco ou seis ou dez sujeitos.

Ghostwriters…

É assim. É um produto industrial. Por isso, todos os seis meses vem um livro e o homem anda de férias.
Eu sou da fase simples, do artesanal, e de eu próprio. Já vendi tanto livro que me deu aquele consolo: ”fizeste uma coisa bonita” [risos]

Já deixou a sua marca…

Portanto, o meu sonho era o cinema. O meu sonho era escrever guiões para o cinema. Não tinha muito interesse na literatura. A literatura era uma coisa que me parecia tão superior, tão acima daquilo que eu podia alcançar. Li muito principalmente Eça, Camilo, Zola, Balzac e esta gente deixou uma marca tão importante em mim que eu olhava lá para cima.
“Montedor” foi escrito numa espécie de revolta contra a situação familiar e social portuguesa, depois veio “O Rebate” e esse era mais feito para ser um guião de filme porque é muito visual.

E segmentado, não é? Tanto a nível da estrutura, que é muito segmentada e plural (estamos com uma personagem e logo a seguir estamos com outra), como a nível de linguagem, que é como que “cubista”, ou seja fala da chuva e depois fala do cão depois fala da senhora… salta de imagem em imagem sempre com uma ideia em comum. Há coerência entre a estrutura e a construção frásica. Foi pensado assim?

Foi, foi propositado. É muito visual. Qual foi uma crítica importante que me fizeram? “Não se sabe quem é que está a falar!” [risos]
E eu disse “Você entra no livro e não está a pensar no que é que a Joana disse.” Esse é o costume dos maus escritores: “Então ele disse…e ela disse…e eles saíram”. Não! O respeito pelo leitor implica que você não vai julgar que o leitor é estúpido porque ele não é. O que você vai ser é muito humilde e saber que o leitor é muito competente e muito capaz. Claro que há uns – inclusive os críticos- que não serão capazes de acompanhar, mas a culpa é deles não é minha.

Passando do nível estrutural para o nível lexical. Há palavras que já caíram em desuso e há muitos regionalismos…

A menina da Câmara Clara, ontem, disse assim: “Ai! Eu gostei tanto do seu livro e sabe porquê? Tem lá tantas palavras que eu ouvia da minha avó, inclusive «cu de arroba» ” [risos]
Outro senhor disse “Que carinho! Pela primeira vez em cem anos eu vejo uma frase em que diz “Vós tendes lume? ”
O Você nos anos cinquenta e sessenta era insultuoso! Agora vieram as telenovelas brasileiras e limparam a coisa pelo mais baixo.

O Vós desapareceu da oralidade… e da escrita também. Não sei se foi por escolha, mas vi que o livro não seguiu o acordo ortográfico.

Ai não! Por amor de Deus! Eu não sou do Acordo…É uma bandalheira, é uma coisa tosca. Tudo aquilo que na língua, na ortografia, era sinal e ajudava… ai não sigo, não…

Enquanto estava a ler o livro dei comigo a pensar que era uma tragédia transmontana. Ninguém morre, mas também ninguém se safa. Há aridez e azedume em relação à sociedade. Porquê essa visão tão pessimista?

Não é nada pessimista. É carinhosa. Eu já vou explicar… De vez em quando digo e não é brincadeira: Nasci em meados do século XIX. Vila Nova de Gaia, o lugar onde nasci, em 1946 ainda não tinha luz eléctrica. Nós íamos, nesse século XIX em Agosto e Setembro, para Trás-os-Montes, e eu caía de imediato no Império Romano. Já tenho dito várias vezes… Os instrumentos da lavoura que nós tínhamos até aos anos sessenta do século passado, em Trás-os-Montes, eram os mesmos que você encontra nas gravuras romanas inclusive o arado de pau. Isso deixaram os romanos. O carro-de-bois, que em Trás-os-Montes ainda se vê e que as pessoas agora põem no quintal, é o mesmo que você vê nas gravuras romanas inclusive o tamanho das rodas.
Ora bem…eu vinha de Vila Nova de Gaia, em meados do século XIX, e chegava ao império romano.
A Margarida [Ferra] esteve lá ontem na casa que foi do meu avô. Atrás da casa está um bocado de terreno que é de um primo, mas naquela altura era, sem vergonha de ninguém, o cagadouro público. As pessoas vinham ali atrás daquela parede, as mulheres levantavam a saia e os homens arreavam as calças e, conversando, faziam ali as suas necessidades. O ânus, quem o limpava limpava-o com uma pedra com pó ou levava um bocadinho de palha. Você não vai acreditar nisto, mas é assim. Da minha infância, nos anos trinta, até quando me fui embora (tinha 19 anos), até 49, era assim. Por isso, não sou eu a “pintar” mal a situação! Você não imagina! As pessoas iam de porta em porta com uma pinha na mão… sabe o que é uma pinha, não sabe? Com uma pinha na mão, as mulheres iam às vizinhas: “Tens o lume aceso?” Para poupar o fósforo! Um fósforo!

Obviamente que havia muita pobreza. O imigrante que vem [de França] com a esposa traz hábitos completamente diferentes e…

Primeiro, ele teve pouca sorte. Eu vou-lhe contar outra história. A Maria Isaura Pereira de Queirós, que morreu há 4 ou 5 anos, era socióloga brasileira, professora na Sorbonne, e conhecida em todo o mundo como socióloga. Quem via a Maria Isaura julgava que era criada de servir. Ela foi à Prefeitura da Polícia, em Paris, para renovar o visto e estava sentada ao lado de um sujeito e às tantas perguntou-lhe a nacionalidade. Era português. E falou com o rapaz e disse-lhe assim “Então…está contente?”; “Estou contente, estou contente»; “É casado?”; «Não, não sou porque eu tinha uma rapariga em Aveiro e queria casar com ela, gostava muito dela, mas ela foi muito leal comigo e disse que o patrão já lhe tinha feito o mal”;
E então diz a Maria Isaura assim “Mas lá na sua aldeia deve haver raparigas”; “Há minha senhora, mas não fazem nada”; “Mas então case com uma francesa!”; “Mas aqui fazem tudo!!” [risos]
É a tragédia do sujeito que vive em dois mundos totalmente diferentes! Ou tem a sorte de casar com uma mulher que traz dinheiro e fecha os olhos ao resto…mas depois é confrontado…

…com aquelas situações.
Ora…Encontra-se a si mesmo e a única coisa é fugir.

[O Rebate] Tem muitas memórias suas?
Não tem memórias. A única coisa que tem de real é uma cena de mulheres cheias de moscas, com os xailes, no verão e no fontenário. É tudo invenção.

Anda à volta com o morto, ainda? [sobre o novo romance]

Não. Eu ontem dei a boa notícia. É um milagre. Estou à volta com o morto há mais de dez anos e anteontem de manhã, quando acordei, estava a tomar café com a minha mulher e estávamos a conversar e eu de repente tive um “salto” na minha cabeça e “já sei o que vou fazer ao homem”. Não estávamos a falar de coisa nenhuma em relação a livros, estávamos a falar de coisas domésticas, e de repente descobri o que vou fazer. Para o ano tem livro novo.


Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com



Entrevista J. Rentes de Carvalho para a SIC Notícias (Link)




publicado por oplanetalivro às 12:14

12
Set 11

“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”
J. Rentes de Carvalho
Quetzal


I
“O caso do senhor Mandel acabou por se fundir na minha memória (…) Alguns factos que inventei tornaram-se «verdade» à força de repetições.” Pag. 126

“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” é composto por 30 narrativas escritas com a mestria de quem sabe contar bem uma boa história. J. Rentes de Carvalho surpreende-nos com a sua ironia queirosiana e com a fluidez de uma prosa equilibrada, que transmite a sensação de que tudo o que é necessário está em cada frase, em cada conto, na proporção exacta.
 Se partirmos para uma análise por decomposição dos contos
(estudo fónico, das personagens, da acção, do espaço, etc.), podemos afirmar que a temática, dadas as características inerentes a uma compilação de narrativas curtas, é plural. Seguimos histórias de amor e adultério (“Um amor em Sevilha”), origem e exercício de autoridade (“Lord William”), crime passional (“A prisão nova”), contrabando (“o outro lado da paisagem”), sobrenatural (“Os medos de então”) e muito mais.
 As narrativas não se limitam a uma área geográfica. J. Rentes de Carvalho, usando as suas próprias experiências pessoais e profissionais, coloca acção a decorrer em Lisboa (em “O incêndio de Lisboa” diria mesmo que Lisboa é a personagem principal), no Brasil (para onde foi viver por razões políticas), no Norte de Portugal (onde nasceu e viveu), na Holanda (onde vive desde 1956. Foi docente na Universidade de Amsterdão), Paris e Nova Iorque, onde viveu durante algum tempo. No aspecto lexical, esta experiência faz-se notar em diversos diálogos com personagens oriundas do Brasil. Nesta situação, ele credibiliza a narração manipulando o léxico e sintaxe das frases quando assim é necessário.
“- Que besteira é essa de quatro dias que você continua falando? Duas horas, rapaz! Eu mando o avião te pegar e ele te deixa mesmo diante da porta. Tem pista.
Assim aprendi que, usadas por um mortal de bolsa modesta ou um multimilionário, as mesmas simples palavras com que convida alguém para almoçar encerram mais do que a diferença entre dois mundos” (Gente de outro planeta, pag.297)
Em “Gente de outro planeta” é feita uma análise mordaz sobre as desigualdades sociais e a consequente modelação dos valores morais: “E não me refiro ao conforto nem às facilidades que o dinheiro compra, mas a todo um comportamento e sistema de valores que só em aparência tinham alguma coisa de comum com os do mundo em que a minha vida decorria” pag. 298
“O incêndio de Lisboa” talvez seja o que detém mais memórias pessoais e menos ficção. O narrador é o próprio autor. Não se “esconde” atrás de nenhuma personagem. Como foi dito anteriormente, Lisboa é a personagem principal. Ao contrário de muitas outras histórias neste livro, a geografia não contextualiza, somente, o enredo. Lisboa é o que o ele quer contar. A narração é substancialmente diferente. Aproveitando a deambulação pela cidade o autor caracteriza-a em diversos períodos temporais e faz questão de mencionar o quanto valoriza Eça de Queiroz: “Nos jornais e em todos os livros de Eça- o maior dos nossos romancistas, nessa altura para mim um deus e hoje ainda longe o meu favorito – o Chiado resplandecia, era único” pag.307 
A fronteira entre a realidade e a ficção dilui-se até quase à inexistência, não fosse a memória ser mutável com o tempo. O autor refere-se ao seu primeiro romance e, desta forma, sublinha o seu próprio papel dentro do enredo: “ O meu primeiro romance, Montedor, acabava então de ser publicado…” pag. 311
Esta dialéctica entre a realidade e a ficção é permanente. Se analisarmos, por exemplo, “O caderno de Hakim” poderemos detectar mais uma referência a entidades ou pessoas que, de facto, existem. Hakim, homem dotado de adivinhação, afirma que Gabo viria a ser ainda mais conhecido do que Sartre (à época o autor mais conhecido). Ao gritar para Gabo que ele viria a ser muito conhecido, “Gabo respondeu com um gesto obsceno e continuou a ler o jornal” pag.227
Gabriel Garcia Marquez (Gabo) passou a ser um personagem real dentro da ficção.
A unidade entre os vários e diferentes textos é conseguida através dos recursos estilísticos utilizados, pela dialéctica entre ficção e realidade e pela prosa contida e equilibrada. J. Rentes de Carvalho consegue contar de forma irrepreensível. A conjugação dos elementos anteriormente analisados por decomposição é concretizada de forma homogénea. Por vezes parece que ele está ao nosso lado, sentimos que nos conta tudo como se estivesse a falar connosco.

II

Se há género literário em que o título se destaca, então é o conto. Principalmente quando, numa colectânea, o título do livro remete para ele.
Segundo Armando Moreno (1987)[i], “O título de um livro deve funcionar assim como uma palavra plurissémica, contendo os principais traços semânticos de cada conto e sendo, simultaneamente, uno e vário, signo de cada conto e signo dos contos reunidos”
No conto “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” existe uma ligação imediata entre a apresentação e o desfecho. Os limites deste género narrativo são traçados com exactidão. “Os Lindos Braços de Júlia da Farmácia” apresenta-se como acção selectiva e sem dispersão e tudo (inclusive o título) está ligado à acção principal.
No entanto, J. Rentes de Carvalho, noutros contos, flexibiliza as características próprias de uma narrativa curta quando informa que não poderá fugir ao facto de ter de utilizar vários pormenores, que, por motivos de objectividade, não fazem parte do conceito de conto. Se em “ um amor em Sevilha” afirma que “ mau grado a riqueza de detalhes com que em geral acompanhava as recordações, neste caso particular, a sua narração era sóbria e breve, quase como se tantos anos depois, ainda lhe fosse doloroso pôr no retrato mais do que estritamente essencial” pag.9 já em “ Le Beuret” afirma algo diferente: “ certas histórias, mesmo comezinhas, só se podem contar de maneira satisfatória quando se lhes acrescenta um luxo de pormenores. A compreensão de outras necessita do apoio de referências: data, momento histórico, circunstâncias, antecedentes…Em vez da meia dúzia de folhas planeadas enche-se com elas um caderno” pag.29
Conhece as “regras” e não hesita em manipula-las e transgredi-las com segurança.
Sabemos que utilizou muitas experiências pessoais na construção dos seus textos, mas ele não se limita ao realismo. É o realismo real?
Em “Le Beuret”, aproxima-se o mais possível do realismo, do mundano: “Mais adiante contarei como era meu hábito diário pedir a monsieur Antoine « un grand créme er un croissant beurre, s`il vous plaît» Seria estranho escrever, recorrendo aos dicionários: « Senhor António, faça favor de me dar uma xícara grande de café com leite e um pãozinho (ou bolo) amanteigado em forma de meia-lua». Além de não parecer a mesma coisa e fazer rir, até o cheiro e o sabor se tornariam outros na imaginação do leitor» pag.29, mas em “Os medos de então” interroga-se sobre os limites desse mesmo realismo: “ Na minha infância o sobrenatural ainda existia e amedrontava (…) O mundo era maior do que é hoje” pag. 88
A dialéctica entre o artifício e a realidade não se esgota aqui. Em “A quinta do Mobutu” é demonstrada a “promiscuidade” existente entre ambos. O artifício não elimina a realidade. Enquanto o narrador volta a casa, à aldeia onde cresceu, e sente que a memória é traída pelo presente e a realidade não encaixa com o que ele recordava daquele local, o “velho” quer ouvir as histórias sobre tudo o que se passa no exterior, nas cidades. Aqui é demonstrado o quão pouco fiável pode ser o narrador: “ Pensei desiludi-lo, mas quando o vi assim prostrado na cadeira de encosto, os olhos semicerrados, já a gozar, pareceu-me que seria crueldade. E então fantasiei-lhe deboches, bordéis de luxo, ruas de pecado como em parte nenhuma existem” pag. 166

Não se pode deixar de referir uma das principais riquezas deste livro: a capacidade de transformação por parte de quem conta.
Opta-se, raras vezes, pela narração na 3ª pessoa do singular (ou não-pessoa, segundo Benveniste). A narração é concretizada num “eu” que ouviu ou assistiu directamente ao que vai contar. A adopção desta técnica literária permite ao autor manipular com brilhantismo a hibridez da identificação do narrador e conjugar o artifício com a verosimilhança.
A característica que talvez mais impressione é a incerteza na identificação da voz narrativa (discurso indirecto livre). Muitas vezes não sabemos quem narra. A narração acomoda-se à personagem, cola-se a ela e a voz do narrador adapta-se à forma de pensar e falar da personagem. Esta “terceira pessoa próxima” é um pacto íntimo entre os dois. Esta situação acontece em várias histórias e é executada com mestria. Se em alguns casos é muito difícil identificar o narrador, existem outros onde existe auxílio: “Ou pelo tom sigiloso, pelo seu modo expressivo de narrar, ou pela minha natureza excessivamente impressionável, o certo é que no momento em que o senhor Pontes começa a descrever a sua entrada na casa do morto, a barbearia e o cliente deixam de existir, eu deixo de ser eu próprio. As palavras que ouço são as que digo, no meu cérebro há uma amálgama de pensamentos alheios, observações, memórias de uma vida diferente, sinto no corpo o cansaço de muitos anos” pag. 334

III

José Rentes de Carvalho tem controlo absoluto sobre as técnicas narrativas que aplica na arte de contar. A leitura é fluida, não existem perdas de sentido, malabarismos estéreis nem petulância no léxico utilizado.
Há momentos de brilhantismo.
Arrisco em dizer que esta obra não é somente (?) um belíssimo livro onde coexiste a narrativa e a poética; é uma lição de bem escrever.
Em suma, deve congratular-se a Quetzal Editores por divulgar em Portugal um escritor exímio, que trabalha os textos até atingir o equilíbrio (quase) perfeito. Fica a alegria de sabermos que há muito mais para ler deste autor.

Mário Rufino




[i] MORENO, Armando (1987) “ Biologia do conto”, Livraria Almedina, Coimbra
publicado por oplanetalivro às 08:52

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