Manuel Jorge Marmelo (n.1971; Porto) olhou para a história da literatura e fez dela matéria-prima na construção de “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” (Quetzal), Prémio Correntes d`Escritas 2014.
O narrador, nunca nomeado, de “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” leva consigo um livro intitulado “Cidade Conquistada”, cujo conteúdo foi construído com leituras diversas e apropriação de textos (recortes, transcrições, etc.).
O único exemplar existente de“Cidade Conquistada”, do irreal autor Oscar Schidinski, tem uma capa que prende a atenção dos passageiros/leitores dos transportes públicos.
Conquistada a atenção dos leitores, o narrador recria em cada leitura sua o conteúdo do livro. Personagens como o Homem-Zebra de Polvorosa, o marinheiro Albrecht e a sua maldição, Cassiano Consciência e o seu amigo Afonso Cão e ainda Marcos Sacatepequez habitam o imaginário do contador destas histórias e dos seus ouvintes.
Manuel Jorge Marmelo construiu, desta forma, uma narrativa complexa, formada por vários caminhos que se cruzam, originando um interessante labirinto textual.
“Cidade Conquistada”, Oscar Schidinski e as histórias do narrador não são verdadeiras. No entanto, a verdade, ou melhor dizendo a realidade, é o menos importante.
Se fisicamente pouco ou nada do que é contado existe, o mesmo não se passa no plano intelectual. Se é nomeado, se é referido, existe num outro plano que não o visível.
O aspecto progressivo e mutante da leitura/ recriação por este narrador dota a obra de capacidade de sobrevivência e de interesse. Neste caso, cria-se um facto baseado em algo inexistente. Em consequência, a ficção influencia a realidade, e esta torna-se menos real do que a ficção. “Cidade Conquistada” é tão perfeita e plural, no que respeita a interpretações e adaptações, como uma utopia.
A entrada no cânone está dependente disto mesmo: da constante actualização do texto. A ficção sai do controlo do ficcionista, pois o público interage e muda o decurso da história. A transmissão oral, que remete para os primórdios da literatura, é simbólica. O narrador endossa e espalha a palavra.
A Estética Literária, em interacção com o conceito de Belo, é mutável e produto de “negociação” entre escritor, narrador e leitor.
O cânone, o historicismo, o biografismo, o conceito de Obra Aberta, a intertextualidade, as influências literárias, o “tomar emprestado” ou o plágio são assuntos abordados com muita inteligência por Manuel Jorge Marmelo. O autor consegue a simbiose entre ensaio e ficção. Mesmo para o leitor sem conhecimentos teóricos sobre a Literatura, a construção ficcional motiva a continuação da leitura. Este diálogo com a história e teoria da literatura é declarado na pág. 20:
“é absolutamente fundamental que Schidinski seja sempre o responsável por uma profunda ruptura sistémica na arte narrativa do seu tempo, inaugurando, se assim se pode dizer, um novo e genial capítulo da história da literatura”.
Essa responsabilidade não se esgota no acto de renovação ou inovação; é necessário que o autor, neste caso, Oscar Schidinski, seja celebrado como o génio causador dessa ruptura.
A (procura de) celebridade é uma constante ao longo do texto. O narrador reivindica-a também para si. A ânsia de reconhecimento é assumida quando afirma: “sinto a fama como algo que me seja devido do mesmo modo que um trabalhador tem direito ao seu salário” Pág.44
As deslocações de autocarro, metáfora da viagem na literatura, são um pretexto para o (re) criador de “Cidade Conquistada”. Ele deseja ser reconhecido pelo público. No entanto, uma outra “irrealidade”, tão ou mais Sublime do que a Literatura, mudará o destino do narrador do livro de Schidinski.
Manuel Jorge Marmelo declara, em “Uma Mentira Mil Vezes Repetida”, o seu amor pelo poder transformador da palavra. A Literatura, desde os seus alicerces teóricos até à manipulação da frase, é o principal tema desta obra premiada com o Prémio Correntes d`Escritas 2014.
O leitor tem acesso, através deste texto literário, a uma lição sobre a efemeridade, a instabilidade e a incoerência da formação do gosto.
Uma mentira mil vezes repetida by Manuel Jorge Marmelo
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Manuel Jorge Marmelo (n.1971; Porto) olhou para a história da literatura e fez dela matéria-prima na construção de “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” (Quetzal), Prémio Correntes d`Escritas 2014.
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Manuel Jorge Marmelo (n.1971; Porto) olhou para a história da literatura e fez dela matéria-prima na construção de “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” (Quetzal), Prémio Correntes d`Escritas 2014.
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