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Abr 14

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João Tordo: «No fundo, escrevo para não estar sozinho»


“Biografia involuntária dos amantes” é o caminho ficcionado e introspectivo de João Tordo em relação ao “outro”, ao ser humano tão próximo, mas desconhecido. Falámos do seu novo livro, editado agora na Alfaguara, no Festival Literário da Madeira (FLM). O local e a ocasião dificilmente poderiam ser mais adequados. O livro e o evento partilharam a mesma essência: a Alteridade.

Tens seis romances que obtiveram muito sucesso. Vários foram finalistas de prémios e um ganhou o Prémio José Saramago. O que te levou a mudar de registo ao sétimo romance?
Eu não mudei muito de registo. Tentei coisas novas, que eu nunca tinha feito antes. Por exemplo: aquela secção intermédia que é fundamental para a história do livro e que é contada no ponto de vista feminino. Nunca tinha tentado fazer uma coisa semelhante porque alguns dos meus romances eram contados na 3ª pessoa, e a maior parte deles eram contados na 1ª pessoa masculina. Foi com aquela voz da Teresa que eu comecei a escrever o livro.
Este romance foi o que mais tempo me levou a escrever. Foi um ano e meio. Fui parando e recomeçando, o que não é um método habitual. Normalmente, sento-me e escrevo os livros de “rajada” porque sei que tenho aquele tempo disponível e porque gosto de não parar até chegar ao fim. Neste, fui intercalando os tempos narrativos. Comecei por escrever a parte que diz respeito à Teresa e que é contada pela voz dela, o que já em si era um desafio, pois não sabia se conseguiria escrever no ponto de vista feminino.
As mudanças são esta [ponto de vista feminino] e a estrutura, que tem mais interrupções, é menos linear, em que partes do livro são telefonemas, cartas, outras são narração. No fundo, são técnicas narrativas que não têm nada a ver umas com as outras. Uma coisa é estares a narrar os acontecimentos no passado na 1ª pessoa, outra é estares a descrever ou, como jornalista, a parafraseares um telefonema.
Acabei por experimentar essas coisas novas neste romance e gostei de o fazer. Gostei de sair da minha zona de conforto, experimentar algo novo, e também centrar o livro numa personagem feminina, o que não tinha acontecido antes.

Que dificuldade é que essa opção te criou, como escritor?
As dificuldades foram as de verosimilhança, de não cair na tentação de escrever na voz feminina como se estivesse a escrever numa voz masculina, mudando apenas os acontecimentos e não a voz. Quando comecei a escrever, demorei três ou quatro dias a arrancar. Não conseguia arrancar bem, voltava para trás, arrancava outra vez. Mas conhecia bem aquela personagem. A personagem Teresa, em torno de quem o livro todo gira, é inspirada notoriamente em duas mulheres que conheço muito bem porque são da minha família. Tive dificuldade em ter de olhar para elas de uma maneira com que nunca tinha olhado: sem o afecto do parente, mas com o olhar mais minucioso e mais escrutinador de uma pessoa que escreve. As dificuldades foram surgindo, mas ao mesmo tempo que surgiam foram sendo eliminadas pela minha crença de que aquela personagem era verdadeira. Isso acontece-me muitas vezes. As dúvidas que eu tenho, enquanto vou escrevendo, vão sendo eliminadas pelo facto de aquela história ser tão verdadeira, ou aquelas personagens daquela história serem tão verdadeiras para mim.

A adopção de uma voz que nada tem a ver contigo é uma forma de alteridade? De compreenderes o “Outro”?
Sim, eu acho que faço uma literatura do “Nós”, como dizia na “mesa” de hoje [“Conversa Cruzada” - Homens que são como lugares mal situados- Festival Literário da Madeira], que é uma coisa que eu tenho pensado nos últimos tempos. São raros os meus livros que dizem respeito ao próprio narrador, embora grande parte deles tenha um pendor autobiográfico, como  “O Ano Sabático”, por exemplo,  que parte de uma história verdadeira.
Só me consigo rever pela identificação. Só consigo relacionar-me com outro ser humano, com os seus sentimentos, emoções, as coisas pela qual essa pessoa passa, se ao mesmo tempo identificar certas coisas que são comuns a todos nós. Se fores a uma sessão de terapia de grupo, aquilo funciona porque as pessoas se identificam umas com as outras. As partilhas nesse grupo só funcionam porque os outros se identificam com sentimentos, com faltas, com ausências, com angústias, etc. Nesse aspecto, eu não sou um escritor nada “umbiguista”. Quero compreender-me, mas quero compreender-me por identificação com o “Outro”. Essa alteridade talvez tenha a ver com o facto de eu quando nasci ter tido um gémeo idêntico que não sobreviveu. No fundo, passei a minha vida toda à procura de uma identificação que desapareceu. Daí essa necessidade de eu escrever sobre o “Outro”.
«Em nada era diferente daquele homem vestido a rigor no comboio, cuja ilusão se propagava indefinidamente, a ilusão de uma ária de Puccini que, na verdade, não passava de um programa de rádio destinado àqueles a quem a vida oferecia frigoríficos, viagens a Benidorm e a morte» (pág. 72)
O narrador criou uma imagem muito afastada da realidade do outro.
Um dos problemas da vida é esse.
É uma história verdadeira. Eu estava no comboio para o Porto e ao meu lado, mas na outra fila,  estava sentado um senhor bem vestido muito compenetrado, de olhos fechados, com um “smartphone”. Achei um gesto bonito o facto de um homem, dos seus sessenta anos, estar assim ali sentado. Às tantas, ele deve ter carregado num botão errado e eu percebi que ele estava a ouvir um relato qualquer de futebol. E eu tinha a certeza de que ele estava a ouvir música clássica, uma ária qualquer. Deu-me vontade de rir. Aquilo só o tornou ainda mais humano aos meus olhos porque eu estava a imaginar uma coisa que ele não era. Estava a imaginar que aquele homem teria uma vida como eu acho que gostaria de ter quando chegar à idade dele. Provavelmente não vou ter. Provavelmente vou ser exactamente igual a ele. Vou estar no comboio a ouvir um relato de um jogo de futebol do Benfica em vez de estar a ouvir uma ária de Puccini.
Isso para explicar o quê? Philip Roth tem uma frase muito engraçada: “O grande problema da vida são os outros”. É nós não compreendermos os outros. E como não compreendemos queremos compreender. Fracassamos sempre, ou quase sempre nesta tentativa de compreender o “Outro”. O “Outro” é fundamental para nos compreendermos a nós próprios, não tenho dúvidas. Mas claro que nos vamos equivocando. Podemos olhar para esses equívocos de duas maneiras: uma é de ficares de certa forma revoltado por os outros não corresponderem às tuas expectativas; outra maneira de olhares para as coisas é a de que as tuas expectativas são sempre irreais. A realidade mostra-nos constantemente que as nossas expectativas saem goradas porque nós tendemos a procurar o absoluto e a perfeição, quando se calhar deveríamos estar muito mais à procura das falhas dos outros que também temos em nós. Isso é algo que eu tento mostrar nas minhas personagens. Acho que elas quando chegam ao final dos romances, ou a certa parte dos livros, começam a perceber que os seus defeitos são aquilo que as une às outras pessoas.

Redenção?
Há redenção, sim. E a redenção passa por tu te aceitares. E claro aceitar o “Outro”, também. Tu não te podes aceitar se não tiveres muita gente que te aceite também. É algo que acho ser fundamental para qualquer tipo de alegria ou de felicidade que tu possas ter nesta vida.

O narrador acaba por aceitar Saldaña Paris. Apesar de todas as transformações pelas quais Saldaña vai passando, o narrador é compreensivo, quando o mais provável seria afastar-se…
O mais provável seria afastar-se, sim, mas repara que há uma certa parte do livro em que ele passa por ser um antagonista, porque ele olha para o Saldaña, em Paris, como um tipo estranho que não se compreende bem. Há uma cena fundamental no livro em que ele passa pela praça à noite, e o Saldaña Paris está a afagar a estátua e ele em vez de parar e dar atenção ao seu amigo prossegue e vai dormir com a colega da filha. E essa cena é fundamental porque significa que ele escolheu o caminho como todos fazemos. A partir desse momento, essa culpa- e a culpa é talvez a impressão mais pesada que nós carregamos. Fomos criados nesta cultura judaico-cristã em que a culpa está presente- é usada como elemento transformador. Se tu alimentares a culpa, estás tramado. Mas se usares a culpa para deixares de alimentar o passado e deixares de recear o futuro e começares a tentar perceber o presente, aí podes ter essa tal redenção de que falámos.

Há uma grande dependência afectiva entre as personagens. Vi a tua “mesa” e ouvi-te falar em liberdade. Qual é a relação entre o vínculo afectivo e a liberdade individual? São antagónicas?
Não são antagónicas. Tenho descoberto que liberdade não é vontade própria. É algo que eu acho que é muitas vezes confundido. Achamos que temos direito às coisas; temos esta vontade própria que nos diz para fazermos determinadas coisas.  A nossa vontade própria, muitas vezes, tende a enganar-nos no sentido em que há os actos por nossa vontade própria e os actos que estamos a usar na nossa liberdade, mas que estamos no fundo a cortar a liberdade a outras pessoas. Para mim a liberdade tem muito mais a ver com solidariedade. Eu sou tanto livre quanto me conseguir identificar com o próximo. Isso sim, é ser livre. A minha vontade própria até agora trouxe-me mais problemas do que soluções. Ao exercer a minha vontade, ao fazer as coisas à minha maneira, ao fazer aquilo que eu quero e ao não considerar aquilo que os outros querem, incorri frequentemente em egoísmos, nesse encerramento no “eu” que é tão contrário ao “nós” que eu procuro nos meus livros. Tem que haver liberdade, necessariamente, mas é uma liberdade que se confunde com solidariedade. É isso que se passa no romance. É um romance que é profundamente solidário com um homem que dá a mão ao outro e que em troco recebe algo que não estava à espera de receber.

E é possível chegares ao "Outro", à essência das pessoas e das coisas, através da ficção?
Não sei se é possível na ficção, mas também duvido que seja possível na realidade. Na vida quotidiana, somos pessoas a viver de um modo fragmentário, pois estamos condicionados por uma série de circunstâncias exteriores.
Na ficção, tu não tens esses condicionamentos, ou seja tu podes relacionar-te com os outros. Mais uma vez, os meus livros são quase autobiográficos. Admiro escritores que escrevem desta maneira, a começar por Henry Miller, Javier Cercas. São escritores que escrevem como se a ficção fosse mais forte que a realidade, ou que fosse mais importante. De facto, em ficção temos o tempo e o material e talvez a sabedoria necessária para compreender aquela personagem como raramente conseguimos compreender uma pessoa. E com isto não estou a tentar substituir personagens por pessoas. De facto, Saldaña Paris existe. Quando o conheci, havia muitas coisas que não compreendia nele e se calhar com este livro compreendo melhor. Ainda que não seja a história dele!

É um instrumento de reflexão?
Sim, é exactamente isso. É espantoso este poder que os livros têm em nos abrir portas e de nos abrir emoções, que são contrárias à razão, porque a razão tem os seus limites; a razão está sempre a tentar justificar as nossas acções. Nós, como seres racionais, estamos sempre a tentar justificar o que fizemos. Mesmo quando fizemos uma coisa errada tentamos achar uma justificação para essa coisa errada que fizemos. Os livros que eu leio e os livros que eu escrevo -mais os que eu leio porque eu leio muito mais livros do que aqueles que escrevo. Gosto muito mais de ler- abrem-me portas que eu não consigo racionalmente abrir. Se eu estivesse fechado, sozinho, a tentar resolver um problema racionalmente, passaria o tempo todo a arranjar desculpas. Os livros abrem portas que eu não sabia que estavam lá. E são portas emocionais; não são portas racionais.
Temos estado a falar da literatura como um meio de chegar aos outros. Pergunto-te se não será, também, um meio de ser reconhecido pelos outros. Leio as seguintes frases do teu livro. Diz o pai de Saldaña Paris: «Afinal de contas, os escritores vivem do ego, ou não é assim? Querem ser lidos e que digam bem deles. Ou que digam mal ou que digam alguma coisa. Não, senhor. Eu nunca andei cá para alimentar vaidades» (págs. 253/254)
O pai de Saldaña Paris é uma espécie de Cassandra; ela está a avisar sobre a destruição de Tróia e ninguém lhe dá atenção. Ele é um personagem cínico e que ergueu muros muito sólidos na sua relação com o filho e com o exterior, mas dentro desse onanismo ele consegue dizer algumas coisas que são verdadeiras.
Nós, como escritores, evidentemente que dependemos do reconhecimento alheio. Se eu não vender livros, se não der entrevistas, se não aparecer, eu continuo a ser escritor, mas deixo de ser uma figura reconhecida publicamente como autor. Escritor serei sempre e já o era antes de publicar livros.
Se me dá prazer que muitas pessoas leiam os meus livros? Dá-me imenso prazer, obviamente.
Quando alguém me escreve, ou quando alguém vem ter comigo e diz que se identificou com isto ou aquilo, e temos uma conversa sobre isso, é o maior prazer que eu posso ter porque significa que não estou sozinho.
No fundo, escrevo para não estar sozinho.

Nas páginas 228/229 fazes a comparação entre Miguel e o namorado da filha, ou seja entre o pós-doutorado em literatura e o mecânico de automóveis, em que o académico inveja quem suja as mãos: «Carlos sujava as mãos todos os dias, e o fruto do seu trabalho era visível no mundo»Na página 260, o pai de Saldaña diz: «para que é que interessa a poesia agora? Vai resolver o nosso problema?»
A Literatura tem alguma utilidade?
É uma velha questão. Isso recorda-me Aristóteles. Detesto citar, mas recordei-me de Aristóteles. No primeiro ano de filosofia, estudámos Aristóteles. Ele escreveu num livro que a filosofia só é possível quando estamos bem alimentados, bem vestidos, confortáveis.
 Um tipo que está num campo de concentração não tem tempo para pensar em Ética. Não tem capacidade física para se preocupar com as coisas com que nós, que estamos alimentados e bem vestidos e temos uma vida “normal”, “perdemos” tempo. Nessa passagem, o que eu quis mostrar foi que a vida de um professor ou de um académico pode ser muito enriquecedora, mas também pode ser uma forma de te afastares da vida, refugiando-te nos livros. Os livros não são a vida. Os livros são uma reflexão posterior que só quando já tens alguma vivência, ou quando passaste por uma série de problemas e inquietações, podem vir em teu auxílio, ou podem dizer-te alguma coisa.

Saldaña cavou o seu fosso por causa de mentiras, ou verdades incompletas, e acabou por sair desse fosso com a ajuda de mentiras, também. 
É moralmente aceitável mentir para salvaguardarmos alguém?
Se é moralmentea aceitável mentir para salvaguardarmos alguém? Sim. Tenho quase a certeza de que sim e tenho quase a certeza de que se eu estivesse na posição do narrador, faria o mesmo. Todo o romance assenta nessa mentira, e essa mentira vem no tal poema do Dylan Thomas sobre a mentira. Ele mente para salvaguardar o amigo, embora eu tenha a sensação de que ele mente para melhor lhe dizer a verdade. O mundo está tão cheio de maldade e de coisas que são incompreensíveis por estarem carregadas de mal! Neste festival [Festival Literário da Madeira] falou-se imenso disso; Auschwitz, por exemplo. Às vezes não podes encarar esse mal de frente. Não creio que o ser humano consiga encarar esse mal de frente, nem o mal que sucede neste livro, através do personagem Franklim, o tio da Teresa.

Por que razão Saldaña deixa e espalha os seus poemas por onde passa?
Isso é uma espécie de “comic relief”. Conheço o Saldaña Paris, o verdadeiro, o poeta; ele escreve de uma maneira muito curiosa e deixa poemas por toda a parte. Escreve nos cafés e esquece-se dos poemas lá. Tem a gaveta cheia de coisas que nunca publicou. Achei engraçado que o personagem também fizesse isso. Achei que era uma maneira de o fazer mais livre. Ele, que é um tipo tão preso aos seus fantasmas, precisava dessa liberdade.
publicado por oplanetalivro às 18:33

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