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Nov 11

Hollinghurst: «As crianças já não lêem romances completos»

Texto: Mário Rufino

Alan Hollinghurst fala como se estivesse a escrever. Pensa muito, escolhe as palavras com cuidado e constrói frases certeiras. A concentração que impõe na procura da melhor resposta revela-nos uma pessoa calma, educada e com grande sentido de humor. Sobre a mesa pousou uma folha e a sua pergunta revelou o seu sentido de organização: «Diário Digital, correcto?». No fim, quando lhe perguntei se tinha mais entrevistas, mostrou-me a folha e apontou as horas e o nome dos jornalistas com quem ia falar. 
«O filho do desconhecido», ditado pela Dom Quixote, é um livro onde o não-dito ocupa um espaço fulcral na interpretação da narrativa. A estrutura do romance, composta por cinco capítulos, e a contínua mudança de ponto de vista exigem a dedicação e a concentração do leitor. Os grandes temas do livro estão em fundo, dependem do silêncio e das versões contraditórias das personagens. «O filho do desconhecido» não rompe com a temática dos livros anteriores, mas vai muito além da problemática da sexualidade/homossexualidade. São abordados alguns aspectos dos quais dependem a personalidade: a memória, a aceitação, a interacção social e a ditadura do senso comum/regras da sociedade. Desta forma, Hollinghurst apresenta um texto que nos interroga sobre quem somos e qual é a base da nossa personalidade. Antes de começarmos a conversar sobre o livro, questionei-o sobre se haveria alguma pergunta que ainda não lhe tivessem feito, pois já tinha sido intensamente entrevistado. Foi a primeira gargalhada de uma conversa com boa disposição… 

O seu livro vai muito além do tema da sexualidade. Existem vários temas em «O filho do desconhecido» que são muito interessantes, principalmente a dialéctica entre memória (reinterpretação), interpretação e facto. O que é que o motivou a escrever sobre estes temas? 
Há assuntos sobre os quais tenho vindo sempre a escrever, como a vivência gay no presente e no passado, mas este livro tem uma nova dimensão de abertura e incerteza para mim. Tornou-se um assunto inevitável para mim por estar a envelhecer. Tenho pensado mais sobre a minha própria memória e é extraordinário o que pareço não ser capaz de recordar quando comparo memórias com pessoas com quem partilhei algo no passado. Nunca estive muito interessado em voltar à escola, a reuniões, mas fui a uma e as pessoas vieram repetidamente ter comigo e disseram «eu lembro-me daquele tempo em que fizeste…» isto ou aquilo. Eu tinha quase a certeza de que estavam a pensar noutra pessoa. Por vezes, eu sabia que estavam a falar de uma pessoa diferente. O que se faz com um elogio que, de facto, não se merece? Eu não tenho nenhum plano para isso, mas se eu fosse escrever as minhas «Memórias», quão confiável seria? O que colocaria lá? Houve um período da minha vida, quando estive oito anos em Oxford, em que mantive um diário detalhado, todos os dias. Foi [época em Oxford] incrivelmente aborrecido. Eu não tinha uma vida! Eu passava a maior parte da minha vida a escrever o meu diário. Quando vim viver para Londres, há alguns anos, e comecei a ter uma vida, parei de escrever o meu diário. Tenho esta situação paradoxal de ter um período muito aborrecido da minha vida muito bem documentado.
Penso no que são os materiais sobre os quais alguém decide escrever/basear as suas «Memórias»: cartas ou um diário, se o guardaram, que as pessoas moldam ou seleccionam… Em relação às próprias memórias, elas são muito falíveis e manipuláveis. Tornam-se «ossificadas» numa fase bem inicial. Ocasionalmente tem-se aquela coisa linda de se lembrar de algo absolutamente «fresco» que se havia esquecido completamente. Conforme vou envelhecendo, vou pensando nisto como uma reconstrução do passado.


A nossa personalidade depende das nossas memórias e quando elas mudam ou nós vemos que não são fiáveis então…. Quem sou eu? 
Exactamente! 

Cecil está muito além do seu tempo. Ele aceita a sua sexualidade, tal como um homem na idade moderna. Talvez seja por tudo isto que ele tenha tido uma enorme influência sobre eles. 
É interessante que diga isso. Cecil parece assim no mundo de «Dois Acres», mas no mundo de Cambridge, de onde ele veio, ele é muito mais típico; no mundo desta secreta sociedade famosa, «Os Apóstolos», para onde George é levado por Cecil. Ele fez questão de falar, candidamente, sobre a sua própria sexualidade, encorajando outros a fazer o mesmo, «explodindo» aquela mentalidade vitoriana sobre estes assuntos. Cecil era um espécimen daquela geração de Cambridge.

A certo ponto lê-se: «Tal como as profundezas da poesia de Tennyson, Cecil tinha muitas vozes». Como falámos anteriormente, ele tem um conhecimento dele mesmo que não se vê em George nem em Daphne, ainda adolescente. 
Sim. [ri-se] Provavelmente é uma questão de autoconfiança social, não é? A suposição de que tudo o que lhe apetece fazer está bem. 

Quando eles estavam a jantar [em «Dois Acres»], George estava sempre com muito medo do que Cecil poderia dizer… 
Cecil é alguém que sabe comportar-se socialmente, mas ele [George] sabe que [Cecil] tem este outro lado, que parece muito perigoso, mesmo por «baixo da superfície». 

O tempo decorrido depois de o facto que origina o poema (beijo de Cecil a Daphne) é já uma ficção? A interpretação disso já não é a verdade… 
Sim… Na noite seguinte, quando Daphne está acordada na sua cama e tenta lidar com a sua própria confusão e choque sobre o que aconteceu, já está a pôr afecto ou a «construir» o que aconteceu. A cena no jardim é vista pelo ponto de vista de Daphne e há também muita ironia a jogar com o ponto de vista do leitor que vê coisas que a própria Daphne não vê.  

A cena do cigarro [no jardim] que acende, trazendo mais luz, e se apaga, novamente, é como a técnica de pintura chiaroscuro e está em todo o livro Então, desde o pormenor até à estrutura utiliza este jogo «esconde/revela». Qual é o seu processo de escrita? Escreve muitos rascunhos? 
Não, não faço. Escrevo muito devagar. Tento fazê-lo bem logo à primeira vez; nem sempre consigo, claro, mas não escrevo muitos rascunhos. Vou devagar e corrijo até ficar bem. Estou consciente que é diferente… Escrever um rascunho e depois reescrevê-lo parece-me um desperdício de tempo. Não faço assim de forma calculada. Sempre foi assim. É penoso por vezes pelo tempo que demora. É frustrante. Eu desenvolvi maus hábitos com este livro porque sempre escrevi desde o princípio até ao fim. Neste livro, fiquei muito frustrado por ainda estar em 1926 quando esperava já estar a acabar os anos 60 [risos]! Comecei a secção seguinte e deixei algumas secções para serem completadas depois. Algumas vezes também quis prever o que iria ser requerido no livro, mais tarde; o que iria ser dito por Daphne a Sebby Stokes na biblioteca… 

…existe uma frase excelente quando ela entra na biblioteca: «(…) o clique confirmou a sensação que tivera antes em relação àquele processo: num minuto, era-se um mero observador e no seguinte já se fazia parte dele.» É o que acontece com os cinco capítulos do livro. Por vezes, eles vêem por dentro e outras vezes eles são vistos por fora. São as principais personagens em algumas partes, e secundárias noutras. 
Exactamente. 

Há muita informação no não-dito e isto pede muito do leitor. Aliás, tem muita fé no leitor. Ele tem de juntar todas peças. No entanto, Paul Bryant ajuda no quarto capítulo, quando ele começa a sua investigação. As ligações familiares fazem mais sentido, mas por vezes são difíceis de acompanhar… 
Sim, de qualquer forma não interessa. Quando Paul vai aos escritórios do TLS [Times Literary Supplement] e está a falar com o rapaz mais velho que está no TLS… não me lembro bem do que diz, mas… a meia-irmã do segundo marido da Daphne casou com o irmão do meu pai ou algo assim… Não é suposto seguir-se isto. 

Jennifer também diz algo assim na última parte. Confesso que desenhei as ligações familiares, mas depois deixei…
Sim, é verdade. O meu editor, quando foi a minha casa com o manuscrito, produziu uma bonita árvore genealógica. Não é importante… 

Estão [as personagens] ou estamos a viver sobre mentiras aceitáveis/reinterpretações aceitáveis? Por vezes [interpretação] está longe da verdade. Por exemplo, Freda, mãe de Daphne e George, recusa-se a entender o que vê e só no fim ela aceita quando lê as cartas. 
Sim, não são sempre mentiras fundamentais, mas nós continuamente ajustamos a memória para nos exonerarmos ou tornar as coisas mais confortáveis. Nós simplificamos, nós ficcionamos. A vida não é uma mentira. No livro, criamos uma mentira narrativa. Impomos simples explicações que parecem resultar.
Eu queria muito um livro onde não houvesse explicações que pusessem tudo sob uma nova luz. 


Nós moldamos a verdade, os factos…
Por vezes não o fazemos conscientemente porque partilhamos a dor de uma memória e para a tornarmos tolerável continuamos a mudá-la, a «alisá-la». Há outras situações em que, inexplicavelmente, as histórias são irreconciliáveis. 

Baseado nisso, tem muito material para escrever… 
[Risos] Sim. 

Mudando de assunto... Existe uma forte tensão sexual entre George e Cecil, Cecil e Dahphne e entre outras personagens durante o livro. De que forma a nossa visão do mundo, da sociedade, é influenciada pelas nossas escolhas sexuais? 
É claro que molda, remotamente… Se se é uma mulher, naquele período, as escolhas sexuais que se pode fazer são mais limitadas do que se se é homem. São limitadas por vários factores como classe e oportunidade social. Um forte sentimento sexual é algo que pode alterar profundamente o curso da vida das pessoas, pois baseiam-se nisso para decisões que mudam a vida. E claramente o casamento de Daphne com Duddley tornou-se uma infeliz decisão. Ela abraça a oportunidade proporcionada por este clima de «flirt» com este jovem fascinante que, provavelmente, não tem grande interesse nela. Penso que ela toma, repetidamente, más decisões. Eu pensei nisso, de alguma forma, como tendo sido influenciada pela perda do seu pai quando ainda era criança. Ela é uma vítima das escolhas sexuais que faz… ou do interesse dos homens nela, pois é a personagem fraca nestas situações…
É uma pergunta difícil.
George… a sua sexualidade parece ser aberta… mas depois ele…assustou-se, casou-se e vive uma espécie de vida em companhia, com Madeleine, e eles tornam-se narradores das histórias dos outros, sem ter uma vida própria… 


Porque escolheu contar a história através de vários pontos de vista? 
Suponho que devido ao que falámos anteriormente, o facto do nosso conhecimento da história ser feito de uma mistura de, talvez, pontos de vista irreconciliáveis. Quando comecei a escrever pensei em algo mais simples. Pensei que cada uma das cinco secções seria vista pelo ponto de vista de uma pessoa. Esta foi a minha ideia preliminar. Depois pensei que seria um problema enorme se eu fosse contar a complicada história desse primeiro fim-de-semana somente do ponto de vista de Daphne. Há tanto que deve ser permitido ao leitor ver… Então vi que realmente tinha de ser visto pelo ponto de vista de George, Hubert e da mãe. Isso preocupou-me um pouco porque eu vi que isto não ia ser só um ponto de vista, não só uma narrativa deste fim-de-semana, iriam ser todas estas narrativas diferentes e, em alguns aspectos, em conflito. Isso tornou-se um princípio para o livro todo logo na fase inicial. 

Com essa escolha conseguiu avançar no tempo, mas também em profundidade psicológica. São duas vertentes difíceis de compatibilizar num livro… 
[Risos] Ainda bem… 

Se tivesse escolhido escrever o livro com menos vozes/secções, pensa que conseguiria desenvolver as duas vertentes?
É verdade que são vozes de pessoas… Não são exactamente vozes, pois não? Está tudo escrito na terceira pessoa. É o privilégio do estilo indirecto livre. Pode observar-se o facto do exterior e entrar à vontade nos seus pensamentos. 

Sim, por vezes não sabemos se é o autor ou a personagem… 
Sim… Eu adoro esse tipo de liberdade de entrar e sair da mente das personagens; cada capítulo é o ponto de vista de uma personagem. Tudo dentro dele [capítulo] é, até certo grau, flexionado através da interpretação da personagem do que vai acontecendo. O facto de ser um romance sobre sociedade… As personagens observam-se frequentemente como interacção social. O retrato psicológico é, provavelmente, construído através de diferentes ângulos. 

Em relação a Cecil, quis captar a pluralidade de vozes dele? Foi um objectivo para a diversidade de pontos de vista? 
Não pensei nisso… Suponho que sim, por implicação. Todos nós temos várias vozes de acordo com quem falamos.

Como disse anteriormente, tem muita fé no leitor. Confia nele para preencher os espaços que deliberadamente deixa… 
Sim, bem, não sei se podem ser sempre preenchidos… 

Teve a tentação de escrever mais, de ajudar mais o leitor? 
Não. [Risos] Gostei de reter a informação e deixar cair os factos no começo de cada secção. Para mim, fez parte da escrita do livro. 

O texto «Dois Acres» ou mesmo o livro de Cecil, publicado após a sua morte, tornou-se canónico. O texto foi estudado em universidades e escolas.
Provavelmente alguns dos seus poemas apareceram em antologias, incluindo «Dois Acres», e tornaram-se muito conhecidos. Peter Rowe, na terceira secção do livro, está a ler o poema para os estudantes, em Courley Court, e mais à frente, quase no fim do livro, como que o vemos no novo mundo de teoria «queer»… Eu queria que fossem poemas como os de [Rupert] Brooke, não necessariamente muito bons, mas que entrassem na consciência do público. A minha mãe adorava e adora os poemas de Rupert Brooke. Cresci com muitas linhas e frases de Rupert Brooke. Eu tenho muita poesia na minha mente e a minha adolescência foi feita de encontros de leitura e de aprendê-la para a saber de cor. Talvez seja o meu sentido de passado. Pensei nos poemas de Cecil como se fossem desse tipo, talvez não particularmente estudados no campo académico. 

É uma postura céptica do cânone? O poema não é bom… 
Não, não é bom, mas não é absolutamente terrível… 

…mas entrou, provavelmente por causa do culto em torno de Cecil, nas vidas das pessoas. 
Exactamente! O poema é de antes da guerra e depois da guerra parece resumir algo sobre a razão pela qual as pessoas lutaram e sobre a visão nostálgica de Inglaterra. 

Pensa que os maus textos ou um mau livro pode entrar no «must read» nas escolas e universidades devido a esse tipo de culto em redor de um autor? 
Tenho de pensar em alguns exemplos… Tenho a certeza de que são muito apreciados num período particular e depois saem de moda. 

Numa outra entrevista, mencionou um ou dois autores de que gosta bastante e que só uma assembleia os lê, agora… 
Sim, existem vários autores que são negligenciados; outros que pensávamos ser maravilhosos são, agora, secundários ou desapareceram. Isso sempre me divertiu… Esse território instável do que é pensado como bom. 

As escolas e as universidades têm muito poder sobre isso. Se não são falados, não são lidos e com o tempo desaparecem, provavelmente, para aparecerem passados 50 anos.
Sim, eu penso que formam uma parte muito mais pequena dos currículos nacionais das escolas. As crianças já não lêem romances completos; lêem somente uma parte ou vêem o DVD ou o filme. É aterrorizante. Quando alguém na escola lê poemas de Ted Hughes e são os únicos poemas que lêem, torna-se a noção deles de poesia. É uma espécie de moldagem canónica, não é? É um nível muito básico… 

Voltamos a falar daqui a sete anos… [tempo decorrido entre «A linha da beleza», vencedor do Man Booker Prize 2004, e «O filho do desconhecido»]
Espero que mais cedo… 


LINK: Entrevista com Alan Hollinghurst (TV)

publicado por oplanetalivro às 12:49

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