22
Set 12


Herta Müller, prémio Nobel 2009, esteve em Portugal com o objectivo de divulgar o seu mais recente livro, «Já então a raposa era o caçador», um dos destaques da rentrée da D. Quixote.



A apresentação da obra ficou entregue à escritora Lídia Jorge, a Aires Graça, tradutor desta e de outras obras da escritora romena, e à própria autora. A moderação coube a João Barrento.
Foi numa sala cheia, no Goethe-Institut, que leitores de diversas nacionalidades tiveram oportunidade de enriquecer as suas leituras com as perspectivas e interpretações dos intervenientes.
A produção literária de Herta Müller alimenta-se do medo e do profundo desenraizamento da escritoraA autora nasceu numa aldeia romena habitada por uma minoria de falantes de alemão (Nytzdorf). Passou por interrogatórios, ameaças da Securitate e despedimento por discordância política.
O seu pai era oficial da SS quando a Roménia se aliou à Alemanha, na II Guerra Mundial. Pouco antes do fim da guerra, a Roménia mudou de posição política, pois passou para o lado da URSS. Ainda com a guerra a decorrer, Estaline ordenou a deportação de milhares de romenos alemães. Entre eles estava a mãe da autora.
«O medo era omnipresente e o indivíduo não contava para nada», afirmou a autora durante a apresentação. Nos seus livros, Müller interroga tudo de forma dura, tensa e sem piedade. A escrita incide sobre elementos que a repulsam. «A realidade incita-me a escrever pelo lado que me agride».
A linguagem é um instrumento para exorcizar e processar todas as experiências traumatizantes por que passou. «Estou danificada e preciso de suportar isto, esta bagagem», referiu durante a apresentação.
São esses danos e esses traumas que a motivam a escrever. É na sua própria experiência que baseia as histórias dos seus livros. As personagens por si criadas são sujeitas às mais diversas violências e são confrontadas com uma incompreensível arbitrariedade.


«Já então a raposa era o caçador» é uma construção literária composta por frases simples e claras que transportam angústia e dotam a prosa de uma acutilância que limita a distância confortável do leitor em relação ao texto.
Se há algo que possa ser matéria de celebração nos seus livros, é a linguagem. É através da manipulação da linguagem que a escritora tenta construir uma nova perspectiva, uma visão que possa resgatá-la da sua própria criação. Ao reestruturar a linguagem tem a possibilidade de reestruturar a perspectiva sobre a realidade. Mas inevitavelmente tudo é contaminado pelo medo.
Lídia Jorge abordou, também, a problemática da linguagem como instrumento de mediação entre nós e a realidade. Além disso, a autora portuguesa realçou a importância da escrita como registo de vida e exercício de memória.
Por sua vez, Aires Graça demonstrou, através de diversos exemplos, a dificuldade que as diferentes línguas colocam ao tradutor quando ele se propõe transferir a imagética de uma língua de partida para uma língua de chegada.
No conjunto, as intervenções abordaram o texto literário por vários ângulos, de forma a proporcionar leituras mais profundas da obra da escritora romena.
Herta Müller é uma fonte de interrogações sobre ela, sobre a sua relação com a(s) língua(s), com a Roménia (país natal), com a Alemanha e com a sua própria pertença e identidade.
«Já então a raposa era o caçador» é um exercício de confrontação do medo, de procura de identidade, de catarse.
publicado por oplanetalivro às 12:22

21
Set 11

“Hoje preferia não me ter encontrado”
Herta Muller (Prémio Nobel 2009)
D. Quixote




“Não queria pensar em nada, porque mais nada sou, para além de intimada” pág. 47


Em “Hoje preferia não me ter encontrado”,Herta Muller interroga tudo, de forma dura e sem piedade, não se colocando no exterior do objecto de análise. Todos são vítimas e culpados da alienação da liberdade individual. Os vigiados também vigiam e os vigilantes têm medo de ser vigiados.
O “eu” narrativo permite a aproximação dos acontecimentos narrados à dor e experiência própria da autora. Herta Muller, romena e nascida numa comunidade de língua alemã, esteve sob o regime fascista de Antonescu e, posteriormente, sobre o regime comunista de Estaline. A própria mãe da autora foi deportada, juntamente com cerca de 80 mil romenos de língua alemã, para um campo de trabalhos forçados.

A narradora viaja sentada num eléctrico com destino a mais um interrogatório. Enquanto o eléctrico avança, a sua memória recua e revela segredos e recordações mais ou menos distantes.
No decorrer da leitura percorremos círculos concêntricos em torno de um sentimento de desagregação humana, seja na sua individualidade ou sociabilidade.
A beleza é deturpada e destruída: Albu, o interrogador, beija-a na mão deixando um rasto de cuspo enquanto lhe aperta os dedos até ela quase gritar de dor; na foto do casamento com Paul, os dois estão de cabeça encostada, num dia feliz, mas no presente mais lhe parecem as duas ameixas, símbolo da aguardente com que o marido diariamente se embebeda.
As ligações familiares incluem o seu ex-sogro, um “comunista perfumado”, que deportou os avôs dela e nacionalizou os respectivos bens, o desejo erótico pelo seu pai e o decadente casamento com Paul que se autodestrói devido ao álcool.
O “comunista perfumado” afirma que o tempo em que os avós dela passaram dentro de uma campo de detenção já lá vai e que são somente desculpas para não terem vencido na vida. A ironia de se “ouvir” deste personagem uma frase baseada no “darwinismo social” e tão ligada ao capitalismo exemplifica a presença constante da ironia em “ Hoje preferia não me ter encontrado”
O presente fecha qualquer esperança e tenta enterrar e branquear um passado de dor. A memória, essencial ao património cultural da sociedade e do indivíduo, é pressionada pelo esquecimento. Herta Muller luta pela manutenção da memória, contra a paranóia e a loucura.

Já divorciada do primeiro marido e em casa de Paul, ela pergunta-lhe o que é um comunista.
“Quem era suficientemente pobre tornava-se comunista. E também muitos ricos, que não queriam ir para os campos de trabalhos forçados. Agora o meu pai [fascista e, posteriormente, comunista] está morto e, tão verdade como o céu existir, lá em cima ele diz que é cristão.” Pág.173
Ela e Paul são despedidos por práticas subversivas contra o Estado. A deterioração económica acentua-se.
“Aquilo de que precisam eles [os russos] mandam despachar para Moscovo e empanturram-se com o nosso cereal e a nossa carne. A fome e a porrada eles deixam para nós.” Pág. 29
Apesar de a desconfiança estar enraizada devido a questões histórico-políticas (fascismo e comunismo), alguns elos afectivos ainda prevalecem. Lilli, amiga e colega de trabalho da narradora, é a única pessoa, além de Paul, em quem ela confia. No entanto, ela é assassinada a tiro e esventrada pelos cães quando, motivada pelo amor a um homem, tenta ultrapassar a fronteira com a Hungria. A presença rara destas relações sublinha a substituição do afecto pela desconfiança e paranóia entre as pessoas.

A sociedade está dividida entre ostentação e pobreza, onde as classes sociais mais desfavorecidas sofrem com o flagelo do álcool, e a liberdade de expressão não passa de um conceito impraticável.
 “O nosso socialismo até põe os seus trabalhadores a sair da indústria em pelota…” pág. 86
A vida, a rotina diária, é pesada e os dias arrastam-se uns atrás dos outros.
“ Seria pedir de mais que as coisas a que me habituei me servissem de alguma coisa. Elas até servem de alguma coisa, mas não a mim. Quer dizer, servem quando muito à vida, a vencer o dia. Mas não se espere que elas nos encham a cabeça de felicidade” Pág. 24
A redução do humano ao seu instinto animal é sublinhada no episódio da feira da ladra, dia em que conhece Paul, onde muita gente precisa de usar uma decrépita casa de banho pública. O polícia encostado à parede abdica de exercer autoridade perante a desordem. E a ansiedade domina as pessoas que esperam para entrar no pútrido cubículo. A avaliação da narradora é mordaz.
“Só lá fora voltei a ser um pedaço de esterco humano” Pág. 144


 “Hoje preferia não me ter encontrado” é um texto pleno de ironia, despido de autopiedade e muito crítico em relação a ideologias, à sociedade dessa altura e ao próprio indivíduo.
Herta Muller não poupa nada nem ninguém.
“Neste entardecer vermelho da cidade, o que agora se recomenda é a cegueira, há olhos de vidro para todos. Mas os pregos do caixão troam especialmente por aqueles que querem construir a sua felicidade dançando ao som de uma canção em que a gente se farta do mundo.” Pág. 117

publicado por oplanetalivro às 12:25

Maio 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9

11
12
15
16
17

18
19
20
21
23
24

25
26
27
29
30
31


mais sobre mim

ver perfil

seguir perfil

5 seguidores

pesquisar neste blog
 
Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

blogs SAPO