10
Mai 14




O Planeta Livro esteve presente, findava a tarde do dia 09 de Maio, na Livraria Ler Devagar para assistir à apresentação de “Mal Nascer” (Casa das Letras), o mais recente romance de Carlos Campaniço (n.Moura; 1973).
A apresentação ficou entregue a Maria do Rosário Pedreira (editora) e Afonso Cruz, escritor recentemente premiado com o prémio Sociedade Portuguesa de Autores, devido ao seu livro “Para onde Vão os Guarda-Chuvas”.

Maria do Rosário Pedreira caracterizou “Mal Nascer” como “romance de retorno”. Tal qual Ulisses, em “Odisseia”, Santiago Barcelos, personagem principal, regressa à sua terra para perceber que, ao contrário das suas dolorosas memórias, não havia reconhecimento da sua identidade por parte dos conterrâneos.
“Mal Nascer”, finalista do Prémio Leya, é “literatura preocupada com o outro”, segundo Maria do Rosário Pedreira.
Afonso Cruz defendeu também a ideia de retorno num romance contextualizado pelas lutas entre liberais e absolutistas.
Para o autor recém-premiado, que demonstrou ser um exímio contador de histórias, o personagem principal tem questões difíceis de assumir nessa época: Ser-se pobre, ateu e liberal.
Com uma “linguagem cuidada” e um “enredo muito cativante”, “Mal Nascer” aborda a questão política e, principalmente, a situação de pobreza.
Carlos Campaniço, por último, afirmou haver um pensamento sempre presente no seu livro:
Em tempo de guerra, em tempos difíceis, são sempre as mulheres e as crianças que mais sofrem.
“Estar ao lado dos pobres nunca foi o caminho mais fácil”, afirmou.
“Mal Nascer”, tal qual “Os Demónios de Álvaro Cobra” (Teorema), vencedor do Prémio Literário Cidade de Almada de 2012, baseia-se no Alentejo, região de origem do autor. A cultura alentejana é essencial na criação da sua imagética literária.
A apresentação terminou após algumas perguntas do muito público presente.

O Planeta Livro já teve oportunidade de abordar o livro anterior de Carlos Campaniço: “Os Demónios de Álvaro Cobra”.
Este romance, onde o leitor tem a possibilidade de acompanhar o extraordinário personagem chamado Álvaro Cobra, foi considerado, por Planeta Livro, um dos melhores romances lidos em 2013.
Brevemente, os leitores do blogue poderão ler a crítica a “Mal Nascer”.




LINKS ÚTEIS:

Texto sobre “Os Demónios de Álvaro Cobra”:

OS MELHORES DE 2013:


SITE INTERACTIVO DO ROMANCE:


fotos: Sofia Madalena Escourido



  
publicado por oplanetalivro às 19:18

28
Abr 14

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=697237


Harold Bloom apresenta os 100 autores mais criativos da história da Literatura


A Crítica Literária, sendo uma área com regras próprias, é dependente da existência da Literatura. O crítico literário existe por existir um escritor. No entanto, a força da crítica literária pode ser tanta que obrigue o corpus canónico da literatura a abrir para a receber. Poucos autores têm a capacidade de construir um texto cujas características providenciem a sua própria emancipação e existam como Literatura. Refiro-me a Steiner, a Eduardo Lourenço e a Harold Bloom. As respectivas abordagens críticas são, elas mesmas, literatura.

Harold Bloom (n. Nova Iorque, 1930) é um dos mais prestigiados críticos literários da actualidade. Obras como “O Cânone Ocidental” e a “A Angústia da Influência” depressa se transformaram em bibliografia de teses, objecto de estudo e fonte de polémica. Harold Bloom não se limita a diagnosticar e expor. O autor tem capacidade para ser influente e mudar o pensamento. Ele é um elemento da História da Literatura.
Em “Génio - os 100 autores mais criativos da história da literatura” (Temas & Debates/Círculo de Leitores), Harold Bloom continua a delinear o mapa do cânone idealizado, quase 10 anos antes, em “O Cânone Ocidental”. Apesar de afirmar que “claro que não são «os cem mais» no julgamento de ninguém, incluindo o meu. Queria escrever sobre estes”, as afirmações presentes no julgamento sobre diversos autores contrariam esta declaração inicial. Os 26 autores presentes em “Cânone Ocidental” passam a 100 em “Génio”. Mantém-se a mesma metodologia de trabalho. O estudo concentra-se na procura e isolamento das características que tornam os autores em canónicos.
A entrada no corpus canónico acontece através de forças como a Estética, o domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo e saber.
A obra nova é julgada em comparação com os padrões do passado. Há uma ordem preestabelecida e institucionalizada.
A organização do livro demonstra a intertextualidade presente nas análises do crítico norte-americano. Bloom organizou o livro “em forma de mosaico, por acreditar que é fonte de contrastes significativos e inspiradores.”
Na concepção de “Génio”, o crítico norte-americano afirma que “a imagem das Sefirot cabalísticas permaneceu na minha mente. Os meus dez conjuntos levam os nomes mais comuns para as Sefirot (...) Como os cabalistas defendiam que Deus criou o mundo a partir de si mesmo, sendo ele o Ayin (nada), as Sefirot traçam o caminho do processo da criação”. As Sefirot são fases da criatividade. A análise dos 100 autores assenta nesta estrutura e tem, como paradigma, a Cabala e o gnosticismo, pois de acordo com o autor, após ter passado uma vida em meditação sobre o gnosticismo, o gnosticismo é a religião da literatura.
“Génio” está dividido em dez capítulos, cada um com dois Lustros compostos por cinco autores cada um. A composição dos capítulos e Lustros demonstram várias qualidades dentro de uma hierarquia.
O objectivo de “Génio”, é simples: “despertar o génio da apreciação nos meus leitores, se puder”.
Para despertar esse génio de apreciação, foram escolhidos somente escritores já falecidos. Entre autores como Cervantes, Montaigne, Dante, Virgílio, São Paulo, Maomé, Shakespeare (o autor mais amado por Bloom) existem Luís Vaz de Camões (VII Nezah-Lustro 13), Fernando Pessoa (VIII Hod- Lustro 15) e José Maria Eça de Queirós (IX Yesod - Lustro 17). Note-se a necessidade de justificação por parte de Bloom sobre a ausência de Saramago: o autor português estava vivo (o livro foi escrito em 2002). Sintomático da qualidade e importância da Literatura Portuguesa, quando se pensa na densidade demográfica em Portugal.
Apesar de divididos em capítulos, o autor de “Génio” faz questão de sublinhar as muitas e prolíficas dependências entre vários autores.
A interacção entre escritores implica um processo de interpretação gerador de valor estético. Essa “arte de pedir emprestado” existe e obriga a que, na apreensão do significado, se avalie um autor em contraste e comparação com outros.
Esse processo de influência pode deslizar para a já mencionada angústia. É curioso perceber que o próprio Bloom sente o peso dessa influência:
“O meu herói particular entre estes cem é o doutor Samuel Johnson, o deus da crítica literária, mas não tenho coragem de enfrentar o seu julgamento.”
A grande escrita, segundo Bloom, é sempre reescrita que abre as obras antigas aos sofrimentos recentes. A ansiedade da influência elimina os mais fracos, mas motiva aqueles que se inscrevem no cânone.
A obra canónica sobrevive independentemente da época em que foi escrita. Se há necessidade de contextualizar a obra de um autor para confirmar qualidade, então essa obra está ultrapassada. Daí, a avaliação do historicismo ser, por Bloom, negativa. De acordo com o seu pensamento, o historicismo deve existir na sua forma mais minimalista, pois é quase irrelevante.
Harold Bloom é um autor indispensável na crítica literária. Será lido, arrisco a pensar, durante muitos e muitos anos. Talvez tantos como o seu mestre Samuel Johnson.
“Génio - os 100 autores mais criativos da história da literatura” é um livro indispensável para os estudiosos do milagre da linguagem: a Literatura.
publicado por oplanetalivro às 12:43

03
Abr 14
Um grande Livro!

http://p3.publico.pt/cultura/livros/11481/quothabitante-irrealquot-de-paulo-scott


http://p3.publico.pt/cultura/livros/11481/quothabitante-irrealquot-de-paulo-scott
publicado por oplanetalivro às 14:11

27
Fev 14

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=685775

«Nove Histórias»: o sexo e outras formas de poder


“Nove Histórias” (Quetzal) reúne os contos publicados por Jerome David Salinger (n. Nova Iorque;1919-2010) em diversos jornais e revistas entre 1948 e 1953. O interesse destes contos reside, essencialmente, na caracterização psicológica das personagens que protagonizam alguns episódios. No entanto, essa caracterização não pode ser dissociada do contexto do pós-guerra, anos 50, época em que existe a ascensão da classe média, ansiosa de sucesso e de poder de compra.
O conforto material esconde um lado manipulador exercido pela sociedade. Nessa socialização ditatorial, há os indivíduos, tal como o autor, desajustados com a realidade imposta. A incompatibilidade manifesta-se de diversas formas. O papel da mulher, por exemplo, altera-se no pós-guerra. A luta pela educação superior e emancipação é substituída pela educação utilitária. A mulher é vista como mãe de filhos e dona de casa. Ao homem cabe o perfil de trabalhador e sustento da família. A falsidade desta imagem é destruída, meticulosamente, pelo autor norte-americano através de episódios demonstrativos da subterrânea infelicidade do indivíduo. Em “Nove Histórias”, o realismo coabita com o absurdo.
Salinger, ele próprio um inadaptado ex-combatente da II Guerra Mundial, afasta-se do expectável e escreve sobre as vigentes regras de conduta. O autor afasta a nebulosa hipocrisia. Os seus textos viriam a marcar a literatura norte-americana.
“Um dia ideal para o peixe-banana”, primeira narrativa breve do livro, dá o mote para as restantes ficções. Este conto foi, também, o primeiro a ser publicado pelo autor (em “The New Yorker”).
Em “Um dia ideal para o peixe-banana”, o leitor é confrontado com esse desajustamento individual e colectivo que estará presente, sob diversas formas, nos outros oito contos:
- O papel da mulher, o abandono das carreiras profissionais em detrimento da família, a frustração causada pelas escolhas erradas (“Pai torcido no Connecticut”, por exemplo); a decepção e o comportamento indefinido com crianças (“Homem que Ri”); a conflitualidade matrimonial, a projecção de necessidades e a inevitável decepção (“Teddy”); o narcisismo (“A fase Azul de De Daumier-Smith”); o adultério e a imagem  de homem de sucesso (“Linda boca e verdes meus olhos”); o ressentimento, a pacificação   (“Pouco antes da guerra com os esquimós”); a autobiografia  (Para Esmé - com amor e sordidez), a solidão de uma criança, isolada num simbólico bote, e a relação com a sua mãe (“Em baixo no bote”. Talvez o conto mais optimista do livro).
As narrativas breves de Salinger são de complexo conteúdo e de simplicidade narrativa. Todas as histórias são muito mais do que uma só leitura apreende.
Em “Um dia ideal para o peixe banana”, a relação entre a subjectividade e a objectividade atinge um grau elevado de complexidade. Seymour Glass, cuja família pode ser acompanhada noutros textos do autor, está na praia junto a um hotel onde se reúnem muitos agentes publicitários. Seymour conversa com uma criança chamada Sybil sobre “peixes-banana”, enquanto a sua mulher conversa com a respectiva mãe ao telefone.
Salinger desafia o leitor a desvendar as diversas e subjectivas camadas de significância dentro de um episódio objectivo e até banal.
Repare-se na impossibilidade de fuga em Muriel, fechada no quarto devido a uma insolação, e em Seymour, preso dentro da sua loucura. O sexo está sempre implícito. A relação entre Seymour e a criança sugere a pedofilia, Muriel comprou uma blusa numa loja Sacks (lê-se sex) e, sozinha no seu quarto, lê um artigo intitulado “O sexo é o paraíso...ou o inferno”. Depois há os tão mencionados peixes-banana, que se inserem e se escondem num orifício.
Dentro das características inerentes ao conto, como a da brevidade, Salinger consegue aliar a análise social (realismo) à análise individual (psicologia).
Em todos os contos, o autor gere a velocidade da narração de forma exímia. Salinger acelera ou abranda a narração de forma a optimizar o suspense, o humor, a tensão e o drama. O leitor tem a estranha sensação de que algo de dramático está prestes a acontecer. 
Os espaços em branco (intervalos na narrativa) permitem a mudança de acção e a introdução de lacunas que aumentam a estranheza.
A adopção da pluralidade de pontos de análise é uma obrigatoriedade para o leitor aproximar-se da total significância na escrita do autor de “Franny e Zooey” e “À espera no centeio”.
O exílio de J.D Salinger resultou no invulgar interesse pela sua personalidade. Salinger partilha características com as personagens dos seus contos. A principal é a permanente inadaptação.
O simbolismo presente e a proximidade de diversos episódios ficcionados à vida real do autor são parte da riqueza literária de “Nove Histórias”.
A canonização dos livros de Salinger tem sido efectuada tanto pelos estudos académicos como pela recepção dos leitores.
“Nove Histórias” merece releitura e estudo aprofundado, pois é um exemplo de excelência dentro deste género narrativo.
publicado por oplanetalivro às 13:53

28
Dez 13

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=672042

Hamsun: Uma ferida ainda aberta na Noruega


“Mistérios” (Cavalo de Ferro) dá a conhecer Johan Nagel, uma das mais complexas e marcantes personagens na obra de Knut Hamsun (1859-1952; Noruega).

A obra de Knut Hamsun é a essência da sua vida, desde a infância à velhice; desde o humanismo ao nazismo.
As suas palavras são o negativo dos seus imediatos antecessores.
A capacidade literária foi louvada por Gide, Mann e até Gorki. A postura política levou-o ao banco dos réus e a ser repudiado pela sua nação, a Noruega.
Knut Hamsun é um assunto mal resolvido pelo consciente colectivo do seu país. A sua complexidade como homem é visível na sua obra e na comparação da mesma com a sua vida.
Outrora visto como figura patriarcal, o autor viria a espalhar uma sombra muito negra sobre a sua escrita, pois foi um acérrimo defensor de Hitler (apelidou-o de “guerreiro e profeta da justiça para todas as nações”) e ofereceu, para escândalo de uma nação sofredora com a invasão alemã, a medalha de Nobel da Literatura a Goebbels.
O Homem e o Autor são duas entidades interdependentes, em maior ou menor grau. Em Hamsun (ou Céline, ou Soljenitsin) a autobiografia é indissociável da ficção; ele é Johan Nagel de “Mistérios” e é o jovem escritor em “Fome”.
Estes dois livros partilham a quintessência da psicologia hamsuniana: o desmantelamento da rede social formadora da psicologia de cada indivíduo. O autor opõe o homem incoerente, plural, complexo, modernista à visão de um homem uno e à visão social e moral de Ibsen.
O enredo, com todas as suas peripécias, é minimizado para dar lugar à evolução psicológica, à revelação, camada por camada, da construção psíquica de um individuo.
Os impulsos individuais, muitas vezes animalescos, confrontam a Moral, enquanto construção social. O homem regateia a sanidade mental na obscura fronteira entre a realidade e a irrealidade.
Hamsun procura encontrar o seu espaço, distanciar-se da sombra de outros grandes escritores.
A experiência do personagem de “Fome” encontra paralelismo com a experiência do indivíduo Knud Pedersen (nome de nascimento do escritor).
Knud Pedersen foi obrigado a ir viver com o tio, por causa das dívidas dos pais. Tinha 9 anos. A partir daí, a infância feliz foi substituída por períodos de violência física e emocional. Simultaneamente, tinha a possibilidade de aceder a obras literárias até ali impossíveis de serem por ele acedidas. A noção de complexidade psíquica, de ausência de maniqueísmos, começa, desta forma, muito cedo na sua vida. O tio tanto lhe causa sofrimento como lhe proporciona novas oportunidades.
O escritor está em formação.
Já jovem adulto, ele colecciona episódios de sofrimento, experimenta dificuldades e sofre humilhações.
Estes episódios serão transformados em mais do que património pessoal; serão transformados num dos principais monumentos literários da sua extensa obra: “Fome” (1890).
É este o livro onde consegue conciliar a coerência narrativa com o entendimento poliédrico do homem, sobre o homem e sobre a natureza. Do mais ínfimo detalhe, é realçada a beleza; da amargura e da dificuldade, é extraída a alegria.
Com “Mistérios” (1892), a editora Cavalo de Ferro consegue editar as mais importantes obras do autor: “Fome” (1890), “Pan” (1894) e “Victoria” (1898).
Dos quatro livros mencionados, os já referidos “Fome” e “Mistérios” conseguem romper com o rumo canónico de Ibsen e de Tolstoi. “Victoria”, um grande sucesso comercial, apresenta-se no século XXI como um livro datado na relação de forças com a contemporaneidade. “Victoria”, editado em 1898, é um retrocesso formal; é o início da saída do modernismo.
 “Mistérios” dá a conhecer Johan Nagel, uma das mais complexas e marcantes personagens na obra do autor.
O desconhecido Johan Nagel chega a uma cidade situada na costa da Noruega. Simultaneamente à sua chegada acontece uma morte misteriosa.
Aproveitando-se da amizade com Grogaard, a quem chamam “Anão”, e da sua própria ascensão social, Nagel vai expondo-se e expondo as idiossincrasias sociais e as dos habitantes daquela pequena cidade.
Depois, Nagel desaparece da cidade tão misteriosamente como entrou.
Com um enredo simples, “Mistérios” é um romance de personagens. A perspectiva narrativa incide sobre as diversas camadas psicológicas de Nagel. Em simultâneo, e de forma mais indirecta (perspectiva de Nagel, essencialmente), é exposta a identidade de cada habitante, sob a “face” social, e analisados os rituais sociais em que todos se envolvem. Mas a grande riqueza está precisamente na competência com que é conseguida a revelação da psique do personagem principal. O monólogo interior, o desdobramento de Johan Nagel, quando se debate com ele próprio, são estratégias narrativas reveladoras da capacidade literária deste incontornável escritor norueguês. Além disso, a constante miscigenação entre realidade e sonho (Freud explicaria, mas mais tarde) permite ampliar a autognose do personagem.
Nagel é um provocador e um manipulador inteligente.  Ele inventa-se, reinventa-se, e baralha as pessoas. Ele recria-se conforme as circunstâncias; muda de “face” conforme o papel a desempenhar. Mas nem tudo é sobre Nagel.
Hamsun aproveita para debater as diferenças literárias e filosóficas entre Maupassant, Ibsen, Tolstoi e Bjornsson. Numa reunião intimista em casa de Nagel (das págs. 160 a 180), os intervenientes mostram os seus argumentos a favor e contra os autores e suas criações. É o momento ideal para o autor norueguês vincar as suas diferenças perante o pensamento canónico da época.
Nesse debate entre amigos é ensaiada a filosofia hamsuniana sobre a literatura.
“Mistérios” é um marco importante na consolidação do modernismo na literatura europeia. Juntamente com “Fome”, “Mistérios” demonstra a capacidade literária de Knut Hamsun.
publicado por oplanetalivro às 18:48
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03
Dez 13

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=671633


Raramente o leitor tem possibilidade de presenciar o aparecimento de um autor capaz de fazer sobressair a sua voz no meio das suas respectivas influências.
Um escritor capaz de se inscrever na realidade começa por ser um excelente leitor. Ele é, essencialmente, um recriador. Steiner (figura central no pensamento do escritor português) afirma, em “Gramáticas da Criação”, a inexistência de inícios. “Já não temos começos”, disse. É possível.
A mortalidade leva-nos a pensar no inevitável submergir do ser humano no esquecimento. Provavelmente todos seremos esquecidos pelos nossos pares.
Mas estas possibilidades ficam suspensas quando entramos no universo de Gonçalo M. Tavares. Durante a leitura dos seus livros, o leitor é levado a acreditar na reduzida, se houver, possibilidade de estar perante o começo de uma memória perene.  
O autor de “Jerusalém”, ou “Uma Viagem à Índia”, terá captado o essencial das suas leituras. A partir dessas bases, ele chama à sua escrita todas as influências presentes em si. Sentimos a presença de outras vozes (Robert Walser, Barthelme, Örkény, Steiner, Wittgenstein, Deleuze, Llansol, Arendt…) manifestando-se e tentando emergir. E aqui, etapa onde a maioria se vê esmagada pela sombra dos canónicos, o autor português faz-se ouvir. Muitas das suas influências são a sua sombra, pois ele as suplantou.

Há escritores que informam, entretêm e até promovem a fruição dos seus textos. Depois, há os que se inscrevem, no sentido referido por José Gil, na realidade dos leitores ou mesmo na identidade de uma sociedade.
O relevo dado à sua escrita ganha fulgor quando a comparamos com a dos escritores portugueses já consagrados pelo público e pela crítica. Ele é autor “forte”, no conceito bloomiano, entre muita qualidade. A literatura portuguesa tem a excelência de Mário de Carvalho, Agustina Bessa-Luís, Hélia Correia… e tem a de Gonçalo M. Tavares.
A adjectivação à sua obra tem sido profícua. O reconhecimento com prémios também. A Literatura Portuguesa ganhou um importante difusor da importância por si conquistada há séculos. Uma das línguas mais faladas do mundo tem um invulgar representante na conquista de leitores desrespeitadores das falsas fronteiras da literatura. A receptividade por parte do público e crítica também o confirma. Os seus livros estão traduzidos em 45 países; ganharam prémios em França (Prix du Meilleur Livre Étranger 2010; Grand Prix Littéraire du Web – Culture 2010; Prix Littéraire Européen 2011), Itália (Premio Internazionale Trieste Poesia 2008, Sérvia (Prémio Belgrado 2009), Brasil (Prémio Portugal Telecom 2007 e 2011), em vários géneros literários – narrativas curtas, poesia, ensaio, romance.
Para “The New Yorker”, “Gonçalo M. Tavares é um escritor diferente de tudo o que lemos até hoje”. Saramago disse haver um antes e um depois do aparecimento de Tavares. Hélia Correia adjectivou “Jerusalém” de sublime e “se nada mais aparecer durante o século XXI, ela [obra] já preenche os cem anos”. Para “The Times Literary Supplement”, “a notoriedade de Tavares em breve será global”. E poderíamos continuar…
A sua prosa tem características invulgares.

A denotatividade da frase é posta em causa. Cada palavra é uma interrogação. Com uma construção simples, muitas vezes mantendo-se na organização sujeito-verbo-objecto, a frase tem muitas camadas e sentidos, dificultando a assimilação numa primeira leitura.
O ritmo imposto é enganador. O leitor tem de voltar atrás. Deve reler e reler. A literariedade dos textos assim obriga.
A literatura de Gonçalo M. Tavares não se vincula a nada além de si mesma. Não tem reivindicações nem causas. Não batalha por direitos sociais. Sustenta-se no melhor em si construído: um universo literário criador de uma realidade paralela. O autor não procura o ambiente do leitor em busca de pontos de contacto, de empatia. Não. O leitor é aliciado a habitar um novo universo.
Neste universo, a dialéctica entre o corpo, o pensamento e o espaço é crucial. O corpo conta como no mundo visível; o corpo indica o interior ou exterior, a afirmação ou a negação, o estar perto e o estar longe. O espaço define-se em relação ao corpo de quem o analisa. A conjugação entre o pensamento (incorpóreo) e a matéria visível mostra a impossibilidade de se afastar a filosofia do corpóreo.
A visão depende do movimento, de para onde se olha. A realidade física estimula o pensamento, excita os sentidos, e promove o exercício criativo e comunicativo. A abstracção depende da posição do corpo. A desfragmentação do indivíduo, enquanto ser pensante, tem limites.

“Atlas do Corpo e da Imaginação”é, além do muito por si e em si representado, uma chave de leitura na descodificação da ficção e não-ficção da obra do seu autor. A sua natureza permite abrir a textualidade da série “O Reino” e da colecção “O Bairro”, por exemplo, ao entendimento. A fruição por parte do leitor é exponenciada. Há um antes e um depois desta obra de não-ficção do escritor português. O conhecimento da textualidade em Gonçalo M Tavares será mais profundo depois da leitura/releitura do livro apresentado por António Guerreiro e Delfim Sardo.
 Este singular objecto literário interroga-nos, espanta-nos.
Segundo Steiner, mencionado na pág. 025 (entre tantas outras menções), “ a fonte do pensamento genuíno é o espanto, espanto por, e perante o ser. O seu desenvolvimento é essa cuidada tradução do espanto em acção que é o questionar”

Interrogar é activar esse espanto, esse deslumbramento.
Gonçalo M Tavares é um ser espantoso; é alguém surgido das suas influências, como tudo e todos, como um deslumbrante fruto de combinações intelectuais e sensitivas.
É um grande escritor ainda com algo para dar, em potência, e portador da capacidade de deslumbrar, de interrogar…de espantar.


Mário Rufino

Mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 14:00

04
Nov 13
Kapuściński : Um jornalista com alma de escritor.

Ryszard Kapuściński (1932, Pinsk-2007, Varsóvia), escritor e jornalista polaco, testemunhou diversas revoluções e momentos decisivos da história contemporânea (queda dos impérios coloniais, por exemplo) de diversos países (Bolívia, Chile, Angola…). No entanto, a sua obra não se resume às reportagens de guerra; ele foi, também, um ficcionista. Kapuściński era um jornalista com imaginação de escritor. Foi com obras como “The Emperor: Downfall of an Autocrat”, “Shah of Shahs”, ou “Imperium” que se tornou célebre como jornalista e ficcionista.
Uma das questões que uma obra como “mais um dia de vida - angola 1975” (Tinta-da-China) impõe é, precisamente, sobre a fronteira entre o facto e o fingimento.
O leitor tem a possibilidade de aceder a um documento importante sobre o período transitório de Angola de colónia portuguesa para nação independente. Até que grau o documento está somente vinculado aos factos é uma incógnita. A partir de quando, ou onde, é que o autor “desliza” para o fingimento é quase impossível de detectar. Kapuściński parece optar, por vezes, pela literariedade em detrimento da informação factual.  
Para escrever sobre esse conturbado período de Angola, o jornalista sai do conforto da redacção e vai para Luanda. No seu entender, “é incorrecto escrever sobre as pessoas sem passar pelo menos um pouco pelo que elas estão a passar” Pág. 84.
Por este motivo, o autor experiencia o quotidiano citadino de Luanda e a frente de combate para relatar, por telex, as suas experiências para a redacção, em Varsóvia.
Quando chega ao território africano, o autor polaco depara-se com o caos.
Há falhas de água, de electricidade e de saneamento básico. Os boatos percorrem as ruas de Luanda, alimentando o medo, a violência e, em consequência, a convulsão social. A corrupção domina o quotidiano dos habitantes.

Não se sabe quem controla o quê. Ao longo do país, existem vários postos de controlo que denunciam quem domina (FNLA? MPLA? UNITA?), mas o viajante só sabe quando lá chega.
“ Se as sentinelas forem pessoal de Agostinho Neto [MPLA], que se saúdam entre si com a palavra camarada, sairemos dali com vida. Mas se forem pessoal de Holden Roberto [FNLA] ou de Jonas Savimbi [MPLA], que se tratam por irmão, teremos chegado ao fim da nossa existência terrena.” Pág. 67
Além dos postos militares, existem outros montados por camponeses ou povos nómadas que procuram, simplesmente, defender os seus rebanhos.
É uma guerra de guerrilha, sem quartel, que passará, pouco tempo depois, a regular. Muitos interesses se movimentam dentro do território: há movimentações russas, cubanas, sul-africanas. Angola é um país rico povoado por gente pobre.
A perspectiva de Ryszard Kapuściński sobre uma capital em convulsão, fermentando no próprio medo, é demonstrativa da simbiose entre ficção e descrição factual.
A narração dos boatos e da transferência do interior da cidade de pedra para a cidade de madeira (caixotes), demonstrando as diferenças sociais e materiais entre habitantes, é exemplar para a avaliação da qualidade literária desta obra.
Segundo os dados disponibilizados pelo autor, no período em que viveu os acontecimentos narrados, Angola, “A Mãe Negra do Novo Mundo”, era dos países menos densamente povoados do planeta. A sua área equivalia a 14 vezes Portugal. Foi muito utilizado como país de exportação de escravos durante 3 séculos. O analfabetismo era de 90 %. A população dividia-se em mais de 100 tribos.
Angola era um território fragmentado em clãs e cujas fronteiras existiam nas línguas. Era um país que só existia no mapa.
“Mas eles [tribos] não sabem que este país se chama Angola. Para eles, a terra termina na última vila onde as pessoas falam uma língua que eles entendem. Essa é a fronteira do seu mundo. Mas, perguntámos nós, o que há para além dessa fronteira? Para lá dessa fronteira, há um outro planeta habitado pelos nganguelas, que significa não-humanos. Tem de se ter cuidado com esses nganguelas, porque são muitos e usam uma língua incompreensível que oculta os seus maus intentos.”
Durante séculos, Angola foi um território, segundo o autor, martirizado por guerras conduzidas pelos portugueses que buscavam as riquezas (incluindo escravos) do território.
Aliás, Kapuściński é muito duro na sua análise da presença portuguesa em território angolano:
“Ao longo de vários séculos, Portugal canalizou os seus melhores elementos para o Brasil, os piores para Angola. Angola era uma colónia penal, o lugar para onde era deportado todo o tipo de criminosos e de párias, todos os que estavam nas margens da sociedade. (…) A mediocridade dos colonos contribuiu para que Angola se tornasse um dos países africanos mais atrasados.” Pág. 178
Esta tensão, chamemos-lhe assim, ainda está presente nas relações políticas e culturais entre Portugal e Angola. Podemos verificar isso mesmo com o episódio do cancelamento do programa “Reencontro” (Antena 1), com a edição de “Diamantes de Sangue” (Tinta da China), de Rafael Marques, e com o episódio protagonizado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Machete, nestes primeiros dias de Outubro de 2013.
A edição da Tinta-da-China vem enriquecida com um prefácio do escritor e jornalista Pedro Rosa Mendes (prémio PEN 1999 e 2010), autor de “A Baía dos Tigres”, livro considerado pelo jornalista polaco como “um trabalho vivo e fascinante de literatura”.
Esta (cuidada) edição de “mais um dia de vida - angola 1975” (Tinta-da-China) impõe-se devido à qualidade da escrita de um dos mais importantes repórteres da história do jornalismo.



Sobre o autor:



Sobre o livro: (vídeo)


A polémica crónica de Pedro Rosa Mendes sobre Angola:


Diamantes de Sangue (Rafael Marques):

publicado por oplanetalivro às 07:10

28
Jul 13


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=646559



«Maldito seja o Rio do Tempo»: o silêncio das palavras de Per Petterson

Por Mário Rufino

Per Petterson (1952, n. Oslo), autor do aclamado «Cavalos Roubados» (Independent Foreign Fiction Prize,em 2006, e International IMPAC Dublin Literary Award, em 2007), editado pela Casa das Letras, vê lançado em Portugal o seu romance «Maldito seja o Rio do Tempo» pela Dom Quixote. No seu segundo romance editado em português, Petterson conjuga a fluência da sua prosa com uma relevante corrente interior, que faz deste seu livro algo mais do que uma simples história entre mãe e filho.

Ao enfrentar o possível fim da sua vida, pois sofre de cancro, a mãe de Arvid parte numa viagem para a Dinamarca. Apesar de viver há 40 anos na Noruega, ela sente-se dinamarquesa. As suas viagens de Ferry desde a Noruega até à Dinamarca haviam sido frequentes. É no seu país natal que ela quer ser internada. Prestes a divorciar-se da sua mulher, Arvid decide acompanhar a mãe.
Baseando-se numa história simples, Per Petterson construiu uma narrativa com diversos planos temporais. Arvid, o nosso narrador, desconstrói a sua memória em procura de compreensão e absolvição. A culpa que o inibe prende-se com a relação nada empática com os seus pais, principalmente com a sua mãe.
A demanda emocional da mãe e do filho é complexa e com vários pontos de contacto. Enquanto eles se tentam reencontrar com eles próprios, procuram eliminar ou limitar o espaço emocional que os separa. O diálogo entre mãe e filho é dominado pelo silêncio, pelo que fica por dizer. As palavras não saem e o contacto físico é mínimo devido à incapacidade de ambos demonstrarem o que sentem um pelo outro. Aliás, nem os próprios conseguem reconhecer os sentimentos que os unem. Mãe e filho assistem, em margens opostas, ao decorrer do rio do tempo.
Um ponto essencial do livro de Per Petterson é a perspectiva edipiana de Arvid.
A ausência física do pai é sufocante... mas nunca deixa de estar presente nos diálogos e nos silêncios tanto do filho como da esposa.
O aspecto mais forte de «Maldito seja o Rio do Tempo» é a construção psicológica do personagem Arvid.
Analisando através da perspectiva freudiana, o recalcamento da relação de Arvid com os pais é responsável pela respectiva formação reactiva.
A ansiedade do filho em relação à mãe influencia decisivamente as escolhas sociais e emocionais. O Arvid adulto não renunciou a ser substituto do pai.
«Ela [mãe] iria olhar pela janela e ver de imediato aquilo que mudara enquanto ela dormia, e depois iria perceber que eu fora capaz de fazer aquilo que o meu pai não conseguira» (pág. 58)
A inconsequência dos actos deste filho, irmão de dois ainda vivos e um já falecido, é interpretada com maior ou menor condescendência por parte da mãe. A perspectiva dela sobre o seu casamento e sobre o filho não é definida pelo autor.
A relação dela com o seu amigo de infância que, ao contrário do marido, a acompanha – por vontade dela nos últimos dias antes do internamento - é aberta a várias interpretações.
Já quanto ao filho, a mãe parece não permitir que ele se emancipe.
«O problema foi quando vesti aquelas roupas com movimentos tímidos e embaraçados porque daquela vez a minha mãe não me virou as costas, elas serviam-me como uma luva, como se tivessem sido feitas especialmente para mim. Mas não o tinham sido. Pertenciam ao meu pai e tinham sido especialmente compradas para ele há vinte anos ou mais. (...) -Foi o que me pareceu - disse a minha mãe. - Que a roupa te iria servir» (pág. 124)
Entre a notícia da desistência da faculdade, contada por ele à mãe enquanto estão no café, e a notícia do divórcio, contada por ele em circunstâncias idênticas, passaram 15 anos. No entanto, Arvid precisa, em ambos os casos, da aceitação e compreensão da mãe. E nas duas situações ele apresenta-se como o derrotado.
A contextualização histórica da narração, que compreende (essencialmente) o período entre a divulgação do comunismo pós-guerra e a sua queda com o desmantelamento do muro de Berlim, a Perestroika de Gorbatchev e a revolta de Tiananmen, é mais do que um enquadramento temporal do desenvolvimento do enredo. A evolução de Arvid, tanto no aspecto racional como emocional, acompanha as mudanças políticas.
As suas escolhas reflectem a sua personalidade. Ele procura, através do comunismo, a subordinação do individual ao colectivo, mas não como procura do bem comum. O seu caminho é o da diluição do “eu” num grupo.
«Fiz aquilo que os outros faziam, porque me faltava a força para me destacar na multidão com o meu medo e a minha liberdade» (pág. 61)
Até neste aspecto, o filho não sai da sombra dos pai. O respeito que merece advém, em grande parte, do que foi conquistado pelo labor do pai na divulgação dos ideais comunistas, quando mais novo.
Ao ser chamado a intervir individualmente (na propaganda, por exemplo), Arvid confronta-se com as suas limitações.
Outrora influenciado por Mao, de quem tinha um poster na cabeceira da cama, ele deixa, passivamente, esmorecer as suas ideias com o declínio do comunismo.
Per Petterson sugere e não define. A concretização, ou motivo, das acções é deixada à responsabilidade do leitor. É a este que cabe completar as acções interrompidas, os caminhos por trilhar, as frases que ficaram por acabar.
Os silêncios terão de ser preenchidos pelo leitor.
Só assim as correntes visíveis ou interiores da prosa de «Maldito seja o Rio do Tempo» chegam à foz do sentido. Ou sentidos.
mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 12:08

18
Jun 13


http://p3.publico.pt/cultura/filmes/8234/luz-antiga-de-john-banville



publicado por oplanetalivro às 09:07

28
Mai 13

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=633061




“Irmão Lobo” é lobo com pele de cordeiro.

A falência de uma família, sobrecarregada com dívidas e castigada pelo desemprego, é dramática. Quando a mesma família é composta por um filho adolescente, uma filha quase adolescente e uma menina ainda criança, além do pai e da mãe, então o dramatismo intensifica-se.
Carla Maia de Almeida (n. 1969, Matosinhos), no seu 6º livro, utiliza este cenário tão contemporâneo na construção de uma narrativa que incomoda e contraria o comodismo do leitor. Ao contrário do que se possa supor, “Irmão Lobo”, editado pela Editora Planeta Tangerina, não é um livro infantil. “Irmão Lobo” é um livro sobre o amargo mundo dos adultos visto através da perspectiva fantasista e doce de uma criança.
“Bolota”, a filha mais nova, conta a lenta destruição da sua família, utilizando, para tal, dois tempos paralelos (passado próximo e passado mais distante) que virão, perto do fim do livro, a juntar-se. Os diferentes tempos são bem geridos pela autora, pois esta estratégia clarifica acções e intensifica os aspectos emocionais. Se tal não bastasse, a produção gráfica do livro denota o cuidado em ajudar o leitor na descodificação do enredo: páginas azuis para o passado mais recente; páginas brancas para o passado mais distante.
O facto de ser uma menina que se debate com sentido dos acontecimentos atribui maior complexidade emocional à história.
“Tenho 15 anos e estou a um passo de começar a minha vida, mas ainda não tive tempo de compreender tudo o que me aconteceu até agora” pág. 11
Será com ela que o leitor chegará ao fim do que a própria denomina de “Grande Travessia no Deserto da Morte”. Durante esse trajecto, o leitor assiste à morte do mito e ao triste desaparecimento da ingenuidade. Lentamente, Bolota vai desmantelando a fantasia, tão bem demonstrada pelas alcunhas que atribui a cada estado anímico de cada membro da família, até ter de enfrentar a realidade tapada pela teatralidade.

“As outras famílias colecionavam festas de aniversários, fotografias de Natais felizes, férias no Algarve, eletrodomésticos, que faziam tudo e cartões de desconto do hipermercado. Nós colecionávamos alcunhas. E créditos bancários. Eram as únicas maneiras de mantermos o nosso teatro a funcionar” pág. 21
Nesse “teatro”, o pai é, para “Bolota”, o chefe da “tribo”, a quem ela chama de “Alce Negro”. O pai representa a força moral, a coragem e o sonho. Ele é capaz de vencer todas as dificuldades, apesar do alheamento adolescente dos irmãos e do frio pessimismo da mãe.
O território da família vai diminuindo conforme se mudam para apartamentos cada vez mais pequenos, mas Bolota mantém a idolatria pelo pai. Ele é o líder da tribo. Até cair.
E é aqui que Malik, o husky que vive com a família, ganha importância fulcral no livro.
Quando Malik, o “Irmão Lobo”, ladra a “Alce Negro” e este recua com medo, a queda do mito inicia-se. A partir desta ocasião, as circunstâncias vão sendo clarificadas e afastadas da perspectiva romântica. O fim já havia começado, mas só nesse momento “Bolota” ganha consciência disso.
A prosa de “Irmão Lobo” sugere mais do que aquilo que mostra. A autora deixa na penumbra o que cabe ao leitor descobrir.
É, de facto, um jogo de luz e sombra muito bem ilustrado por António Jorge Gonçalves.
Carla Maia de Almeida, autora já publicada no Brasil, Holanda e Colômbia, apresenta um livro muito diferente do anterior, “Onde Moram as Casas” (Caminho, 2012). “Irmão Lobo” mostra que o maior drama pode residir nas coisas mais simples, ou nas pessoas que lhe são mais próximas.
Depressa o leitor chegará à conclusão de que nada é o que parece.
“Irmão Lobo” é lobo com pele de cordeiro.




Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com


Irmão LoboIrmão Lobo by Carla Maia de Almeida

My rating: 4 of 5 stars


O meu texto, para o Diário Digital, sobre o livro de Carla Maia de Almeida.
Ide Ler, ou sereis chicoteados.



http://www.diariodigital.sapo.pt/news...



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publicado por oplanetalivro às 11:26

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