“É verdade. Nós todos macaqueamos Deus na sua ausência”[i] Mathias Énard
Imitação da Vida
Como é possível terem cortado a árvore? Como é possível terem eliminado o tronco, os ramos, as folhas que cabem na palavra “árvore”?
A palavra é a mesma quando o objecto já é diferente ou não existe?
Não posso rachá-la como racharam a árvore. Caiu seca no chão. Braços a rangerem com as folhas nos dedos até se confundirem com o pó. E depois a sombra. Uma mancha negra dentro da nuvem amarela e intoxicante.
Uma sombra que se diluiu na terra quando, antes, pousava nela. A luz do céu olhava para os ramos e desenhava-os no solo.
Os doentes gostavam de se sentar na imitação da árvore. Os babantes, senhor doutor, e os não-andantes são imitações deles próprios. Seres imateriais. Como a sombra. Nós, os depositados, somos imperfeições de um logro, de uma enorme imitação.
E o que faço agora com esta palavra? Mantenho-a? Por que razão a cortaram?
- Penso que estava doente.
Não estamos todos?
- Poderia cair em cima das pessoas.
Por isso estamos aqui. Para não cairmos estupidamente em cima de alguém que não quer ser incomodado.
- Estão aqui para serem tratados.
Não me lixe. Querem tratar-me da saúde...
- Por que se preocupa tanto com isso? Praticamente não sai do edifício.
Por que razão haveria de sair?
- Veria pessoas, falaria com elas…
Doutor, sofro de esquizofrenia. Já tenho muita gente dentro da minha cabeça. De qualquer forma, não me preocupo com a árvore. Preocupo-me com a falência da palavra. É tudo o que tenho. Vejo que me trai. Árbol, Albero, Baum, Drvo, Tree… para um só ser.
As palavras multiplicam-se, mas o objecto é só um. Entende a minha ansiedade?
Se o objecto desaparece, a palavra deveria morrer.
- Mas há mais árvores…
Não para mim. Esta era a única que via. Não vou ver mais nenhuma. Não sairei deste sanatório. Mato a palavra que há em mim. Recordo-me dela, do objecto dela, mas não a utilizarei mais.
- Mas existe em si. Recorda a imagem….
Mesmo matando a palavra, o objecto mantém-se independente…é o que me diz? Então está viva.
- Como assim?
A partir da palavra construo o objecto. Se a palavra não é o objecto, então eu posso providenciar o que é requerido pela minha realidade. Se a realidade é construída pelas palavras, então posso sair daqui. Mais! A partir da palavra posso contruir um bairro, uma cidade, uma nova realidade! Posso dizer que estou livre!!!
- Mas não está.
Não no seu mundo. Estou livre desta merda de sanatório, das suas sessões, das fraldas, dos comprimidos, das velhas sem dentes, dos purés…
- Ficciona-se.. Acha que está mais perto da verdade, dessa forma?
Verdade… se estamos a falar de alguma coisa, não é de verdade. As palavras não mostram a verdade. Mostram o que conseguimos ver. Elas são o limite da nossa percepção; o horizonte do nosso conhecimento. Não lhe estou a contar verdade segundo os seus termos.
- Então o que me está a contar? A história da árvore?
Não há nenhuma história. Há sombras e margens.
Mário Rufino
[i]“Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” Pág. 119
publicado por oplanetalivro às 09:02
"Last man standing"
Quando tudo se move, não há nada mais perigoso do que a imobilidade.
Todos os dias saio do metro e corro para o comboio, atravesso o túnel de acesso à estação, valido o bilhete e entro numa carruagem. Conheço algumas pessoas que comigo viajam à mesma hora. Ouço as suas histórias, sei onde trabalham, lembro-me do que dizem, mas só de uma ou duas é que consegui memorizar o nome.
Tenho inveja dos passageiros que adormecem no comboio. Não consigo cair naquela inconsciência. As bocas abertas, a cabeça encostada ao vidro, o livro no colo, aberto, mas inacessível…
Temos de correr atrás do tempo. Não podemos parar. A máxima aplica-se: “Tempo é dinheiro”
Aquele dia não era diferente. A porta do metro abriu, comecei a correr devagar, olhei para o relógio pendurado no tecto, eu estava atrasado, corri mais depressa, ultrapassei algumas pessoas, comecei a transpirar, e, de repente, uma anomalia. As pessoas desviavam-se, cambaleavam, houve uma ou duas que caíram, mas depressa o medo do ridículo as levantou
«Mexe-te idiota!!»
e elas continuaram a correr.
Um homem mantinha-se imóvel, de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu sentido.
A inacção interrogava a velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão mecânica. Aquela peça havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas desviaram-se e rejeitaram a anomalia. Não podia ser de outra forma. Tudo nele era falibilidade. E eu, como todos, evitei-o e continuei no meu caminho. A máquina tem de funcionar. As peças que não funcionam como indicado são substituídas por outras.
Os seus dedos roçaram na minha roupa. Tive quase a certeza de que ele esticara o braço, pois tentei passar o mais distante dele.
Voltei para trás, olhei para ele e parei.
Uma rapariga chocou contra mim, interrompendo o seu trajecto predefinido. Surpreendida, olhou para os meus olhos e seguiu a linha que os unia àquele homem. Ele, ela e eu não nos movimentámos mais e, desta forma, contrariámos tudo o que de nós era esperado.
Uma peça avariava outra peça que avariava outra peça…
Os braços puxavam-no para baixo, de mãos abertas. A gravata amarrava-lhe o pescoço e o fato colava-se à pele que transpirava.
Eu não conseguia prever o comportamento, as reacções. Há padrões que são necessários para sabermos o que fazer. Fiquei parado, só isso, e percebi que mais e mais pessoas se juntavam a mim. Os acessos à estação ficaram bloqueados, ninguém passava e cada vez menos pessoas se moviam. O som foi diminuindo e diminuindo até quase desaparecer. O túnel ficou cheio de gente, cheio de silêncio somente rasgado pela chegada e partida do metro. Mas até isso deixou de acontecer. As buzinas dos carros calaram-se, os motores desligaram-se e o trânsito parou. Muitas pessoas ficaram nos passeios e na estrada a olhar umas para as outras. Pararam. Saíram dos cafés e espreitaram pelas janelas para ver. O trânsito foi acumulando e formaram-se enormes caudas metálicas. Os carros ficaram vazios e cada pessoa olhou para a pessoa mais próxima que olhou para outra e para outra até chegar a ele. O som foi caindo devagar até deixar de existir. Vilas e cidades e depois regiões e depois países e continentes suspenderam a acção.
O olhar convergia para aquele homem. Um pequeno perímetro de espaço vazio protegia-o do contacto físico. Somente ele se distinguia na multidão. Então reparei que os seus olhos mexiam-se. O seu olhar observava tudo o que estava à sua frente. Nós éramos observados por aquele indivíduo.
Todos nos olhávamos e sem saber como, a solidão encheu-nos as mãos e o peito. Deixámos de ter pressa e o tempo pareceu ausentar-se. Ficámos sem mais nada para fazer senão pensar… O pensamento libertou-se e começou a criar ligações entre informação e recordações que eu julgava não ter. Havia demasiada luz, queria levar as mãos aos olhos, parar aquela angústia, preencher aquele vazio que se instalou no meu peito. Mas não conseguia. Ouvia a minha respiração, ouvia a respiração da rapariga que estava ao meu lado e reparei na sua agonia, nos olhos cheios de lágrimas e nos lábios comprimidos. Tinha de me mexer. Não aguentava mais aquilo. Tornou-se insuportável, ninguém aguentou.
Um bebé chorou, uma mulher debruçou-se para o corpo do bebé, ouviu-se a voz maternal, outra pessoa olhou, e outra e outra e os corpos começaram a movimentar-se e todos ficaram aliviados quando a mancha humana começou a confluir para a estação. Uma buzina rasgou o ar, o trânsito lento e rezingão desaguou nos diversos destinos e todos voltaram a andar rapidamente. O som de cada voz foi enrolado naquele novelo de sons.
Comecei a correr, também. Fugi daquele espaço, daquele olhar que parecia saber mais de mim do que eu próprio. Não olhei mais para trás. «Se o corpo pára», pensei, «o pensamento emerge».
As autoridades explicaram que tinha sido uma quebra de energia. Algo em rede que tinha afectado todo o mundo. Talvez uma sabotagem que queria parar a movimentação social, os transportes, os serviços…. As imagens foram escassas. Ninguém protestou. Por um instante, cada pessoa viu-se por inteiro e jamais alguém quis falar sobre isso.
Só agora me atrevo a imaginar o que aconteceu.
O homem ficou entregue à sua alienação lúcida.
Mário Rufino
publicado por oplanetalivro às 11:45
Cicatriz
(de "O Engano")
Os meus dedos dobram a carta pelos mesmos vincos, agora frágeis e enegrecidos pelo tempo. Visito esta folha, esta única folha com uma só frase, e resgato, ritualmente, as suas palavras ao passado.
«Quando te quiseres vingar…»
Trago-as sempre comigo, desenhadas no papel dobrado e marcado pelas sombras sanguíneas dos meus dedos, dentro da carteira, dentro cabeça, dentro de tudo o que faço.
«… estarei à tua espera.»
Enfiou-me a carta no bolso e encostou-me a faca à cara. Eu pensei que ele tinha roubado o dinheiro e não quis saber, pois estava aterrorizado pela lâmina na minha pele. Os meus braços estavam presos, e a força havia sido esgotada numa luta sem glória.
Faca na cara. Ele fazia-a rodopiar sobre a ponta, como se fosse um pião, na minha testa. «Espero por ti» e empurrava devagar.
Finalmente, aliviou o peso do seu corpo que prendia o meu, e comecei a mexer-me devagar. Tentei levantar-me, ergui a cabeça, mas o pescoço sucumbiu ao esforço. Senti os meus cabelos a serem puxados e a lâmina a marcar uma linha vermelha de carne, sangue e medo, desde o ouvido à boca. Antes de ele fugir, sussurrou uma acidez que me tem corroído dia após dia.
«Não morres, porque eu não quero. Viverás em vergonha contigo mesmo até ao dia em que te quiseres vingar»
Durante anos e anos, disse e repeti «não quero vingança! Não quero nada! Só o esquecimento!». Mas todos os dias me olhei ao espelho e todos os dias a linha cicatrizada renovou a memória. As palavras revoltaram-se, «Não quero vingança», libertaram-se da pele de réptil e adquiriram novas tonalidades, «Não quero vingança?», novos brilhos, «Não quero nada?», e surgiram pungentes, cheias de vida e de sede e com o sentido alterado.
«Não! Quero vingança!»
Mário Rufino @copyright
publicado por oplanetalivro às 19:27
O meu conto de Janeiro na Revista "Letras et Cetera"
http://nanquin.blogspot.com/2012/01/colicas.html
Cólicas
As cólicas provocavam-lhe uma agonia sem vómito.
Tentou distrair-se enquanto escrevia mais um texto, mas as guinadas eram cada vez mais agudas. Não havia palavra que não fosse terminada com uma dor violenta que obrigava o corpo a debruçar-se sobre o teclado. Pousou as duas mãos na barriga. Só assim conseguia estar imóvel.
Tinha arrepios de frio, as pernas não conseguiam estar quietas, a boca rasgava-se em dor e uma indefinível inquietação preenchia o seu ânimo.
Os dedos voltaram a insistir nas vogais e consoantes do teclado. Guinada. Dor. Abriu a boca para o corpo expulsar o mal que havia nele, mas nada saiu. Correu para a casa de banho, não sabia por onde sairia toda aquela agonia, e ficou sem saber, pois voltou para o escritório com as mesmas dores, com a mesma obstipação.
Tinha estado numa livraria, de manhã. Lentamente, o incómodo foi crescendo e crescendo até, ao pegar num livro, ter levado uma mão à boca. Não se mexeu. As pernas ficaram amarradas pela vergonha. Olhou em volta, percebeu que ninguém tinha visto, pousou o livro, e saiu. «Preciso de ar fresco»
Telefonou para desmarcar um encontro.
«Tens de fazer dieta e comer melhor», disseram-lhe. Sorriu e minimizou a importância do seu próprio tamanho. «Sou pessoa de três dígitos», respondeu.
«Tens falta de fibra»
«Não digas isso…»
«Bebe chá. Tens falta de chá.»
«De que tipo?»
«Sei lá… vai experimentando.»
O caminho para casa foi demasiado longo. Cada sinal de trânsito provocava um momento de desespero.
«Não vou chegar a tempo, não vou chegar a tempo...». Mas conseguiu chegar a casa sem sofrer qualquer acidente.
Entrou, despiu o casaco e passou a mão pelas gotas que escorregavam na pele do rosto.
Pousou as chaves, foi para o escritório, sentou-se à secretária e ligou o computador. Pousou as duas mãos na barriga .
Olhou para as fotos sobre a secretária, espreitou os jornais on-line e decidiu enfrentar o cursor que aparecia e desaparecia na página vazia.
Começou a escrever palavras ao acaso, sem sentido, à espera de que o texto aparecesse. As frases começaram a surgir e a dor aumentou. Batia furiosamente com os dedos nas teclas, com grande velocidade, empenho, percebendo que havia algo ali de que gostava muito. Os arrepios de frio percorriam o seu corpo, mas não parava de escrever, as dores de barriga aumentavam, mas não desistia. Olhava para o teclado e mal corrigia o que aparecia na folha em branco até lhe chegar um odor desagradável, pestilento, das suas mãos. Cheirou-as, olhou para a cadeira e sem mais demora correu para a casa de banho. Puxou a roupa para baixo e sentou-se com alívio.
Deixara a porta aberta. A casa cheirava a algo morto. O cursor piscava, implacável.
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 12:44
"Last man standing"
http://nanquin.blogspot.com/2011/12/last-man-standing.html
"Last man standing"
Quando tudo se move, não há nada mais perigoso do que a imobilidade.
Todos os dias saio do metro e corro para o comboio, atravesso o túnel de acesso à estação, valido o bilhete e entro numa carruagem. Conheço algumas pessoas que comigo viajam à mesma hora. Ouço as suas histórias, sei onde trabalham, lembro-me do que dizem, mas só de uma ou duas é que consegui memorizar o nome.
Tenho inveja dos passageiros que adormecem no comboio. Não consigo cair naquela inconsciência. As bocas abertas, a cabeça encostada ao vidro, o livro no colo, aberto, mas inacessível… Temos de correr atrás do tempo. Não podemos parar. A máxima aplica-se: “Tempo é dinheiro”
Aquele dia não era diferente. A porta do metro abriu, comecei a correr devagar, olhei para o relógio pendurado no tecto, eu estava atrasado, corri mais depressa, ultrapassei algumas pessoas, comecei a transpirar, e, de repente, uma anomalia. As pessoas desviavam-se, cambaleavam, houve uma ou duas que caíram, mas depressa o medo do ridículo as levantou
«Mexe-te idiota!!»
e elas continuaram a correr.
Um homem mantinha-se imóvel, de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu sentido.
A inacção interrogava a velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão mecânica. Aquela peça havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas desviaram-se e rejeitaram a anomalia. Não podia ser de outra forma. Tudo nele era falibilidade. E eu, como todos, evitei-o e continuei no meu caminho. A máquina tem de funcionar. As peças que não funcionam como indicado são substituídas por outras.
Os seus dedos roçaram na minha roupa. Tive quase a certeza de que ele esticara o braço, pois tentei passar o mais distante dele.
Voltei para trás, olhei para ele e parei.
Uma rapariga chocou contra mim, interrompendo o seu trajecto predefinido. Surpreendida, olhou para os meus olhos e seguiu a linha que os unia àquele homem. Ele, ela e eu não nos movimentámos mais e, desta forma, contrariámos tudo o que de nós era esperado.
Uma peça avariava outra peça que avariava outra peça…
Os braços puxavam-no para baixo, de mãos abertas. A gravata amarrava-lhe o pescoço e o fato colava-se à pele que transpirava.
Eu não conseguia prever o comportamento, as reacções. Há padrões que são necessários para sabermos o que fazer. Fiquei parado, só isso, e percebi que mais e mais pessoas se juntavam a mim. Os acessos à estação ficaram bloqueados, ninguém passava e cada vez menos pessoas se moviam. O som foi diminuindo e diminuindo até quase desaparecer. O túnel ficou cheio de gente, cheio de silêncio somente rasgado pela chegada e partida do metro. Mas até isso deixou de acontecer. As buzinas dos carros calaram-se, os motores desligaram-se e o trânsito parou. Muitas pessoas ficaram nos passeios e na estrada a olhar umas para as outras. Pararam. Saíram dos cafés e espreitaram pelas janelas para ver. O trânsito foi acumulando e formaram-se enormes caudas metálicas. Os carros ficaram vazios e cada pessoa olhou para a pessoa mais próxima que olhou para outra e para outra até chegar a ele. O som foi caindo devagar até deixar de existir. Vilas e cidades e depois regiões e depois países e continentes suspenderam a acção.
O olhar convergia para aquele homem. Um pequeno perímetro de espaço vazio protegia-o do contacto físico. Somente ele se distinguia na multidão. Então reparei que os seus olhos mexiam-se. O seu olhar observava tudo o que estava à sua frente. Nós éramos observados por aquele indivíduo.
Todos nos olhávamos e sem saber como, a solidão encheu-nos as mãos e o peito. Deixámos de ter pressa e o tempo pareceu ausentar-se. Ficámos sem mais nada para fazer senão pensar… O pensamento libertou-se e começou a criar ligações entre informação e recordações que eu julgava não ter. Havia demasiada luz, queria levar as mãos aos olhos, parar aquela angústia, preencher aquele vazio que se instalou no meu peito. Mas não conseguia. Ouvia a minha respiração, ouvia a respiração da rapariga que estava ao meu lado e reparei na sua agonia, nos olhos cheios de lágrimas e nos lábios comprimidos. Tinha de me mexer. Não aguentava mais aquilo. Tornou-se insuportável, ninguém aguentou.
Um bebé chorou, uma mulher debruçou-se para o corpo do bebé, ouviu-se a voz maternal, outra pessoa olhou, e outra e outra e os corpos começaram a movimentar-se e todos ficaram aliviados quando a mancha humana começou a confluir para a estação. Uma buzina rasgou o ar, o trânsito lento e rezingão desaguou nos diversos destinos e todos voltaram a andar rapidamente. O som de cada voz foi enrolado naquele novelo de sons.
Comecei a correr, também. Fugi daquele espaço, daquele olhar que parecia saber mais de mim do que eu próprio. Não olhei mais para trás. «Se o corpo pára», pensei, «o pensamento emerge».
As autoridades explicaram que tinha sido uma quebra de energia. Algo em rede que tinha afectado todo o mundo. Talvez uma sabotagem que queria parar a movimentação social, os transportes, os serviços…. As imagens foram escassas. Ninguém protestou. Por um instante, cada pessoa viu-se por inteiro e jamais alguém quis falar sobre isso.
Só agora me atrevo a imaginar o que aconteceu.
O homem ficou entregue à sua alienação lúcida.
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 11:58
As flores.
Nunca pensei que tudo pudesse ser assim e agora ela está morta, os pés tão juntinhos, as mãos também, o corpo tão formal e distante, com tantas flores à sua volta, com gente lá fora da igreja, tanta gente para se despedir e ela já foi, já se despediu de nós. Só o cheiro e cor das flores tão vivas, tão brilhantes, ficam nos meus olhos e de forma ofensiva e cruel; porquê flores, porquê tanta vida presente na morte parecendo que se ri do que ao seu redor já não há?
Elas não percebem que também nelas o fim está tão presente, tão intenso, na ausência das suas raízes, no chão a que já não se agarram. Elas são parte integrante dessa última viagem e serão deitadas no lixo sem ninguém as lembrar, excepto eu, talvez só eu lembrarei a arrogância inerente às suas folhas que imanam alegria onde ela já não mora.
Já passou algum tempo, anos, mas está tudo tão presente na minha cabeça e nas minhas mãos que se agarram mutuamente para estarem ocupadas, escondendo o transtorno. Quando eu era pequeno, um menino somente, saía da escola, colhia uma flor e dava-lha. Ela ficava contente, tão feliz e punha-a logo num copo. Um malmequer, num pequeno copo, que a alegrava tanto. A flor murchava, mas eu renovava o movimento e trazia outra e outra e não deixava que elas ficassem murchas, tristes na sua mesa. As flores animavam-nos muito. Eram branquinhas, com um pequeno coração amarelo e muitos dedos cheios de pó branco que nos acariciavam a alma. Ela ria-se e dizia «Obrigada, neto» como resposta a uma oração amorosa. Era isso mesmo: uma forma de eu mostrar, sem dizer e perder-me em sons gaguejados, o quanto gostava dela. Fiz o mesmo com uma namorada que nunca foi. Cheguei a casa da minha avó e disse “tenho uma namorada”. Levava uma flor na mão, mas não lha dei, guardei-a para a rapariga que namorava comigo, mas que ainda não sabia. Ela era mais velha, o seu corpo já tinha espantado a meninice, e procurava os beijos que eu ainda não sabia dar. Comi um iogurte e ali, olhando para o seu corpo vazio, vi um pequeno vaso que poderia proteger o que eu queria dar. E coloquei-a lá dentro, mas o malmequer caía, desamparado. Fui buscar um pouco de terra aos vasos lá de casa, «terra caseira», pensei, «vai aguentá-lo», e enchi o copo até quase ao rebordo. Devagar, fiz um pequeno buraco e protegi o malmequer na sua nova casa. Faltava qualquer coisa. Uma carta, um bilhete; tinha de escrever algo para a rapariga saber de quem era a flor. O seu namorado tinha um nome e não era nenhum daqueles vagabundos que tocavam à campainha de sua casa. Peguei numa caneta de que gostava muito, tinha um homem-aranha capaz de derrotar todos os inimigos, e comecei a escrever.
"Para a Débora..."
Muito devagar, voando sobre a folha, escrevi com a caligrafia que havia sido premiada com um rebuçado pela professora da primária. Nesse dia quase chorei, com todos a baterem palmas, quando recebi das suas mãos de dedos compridos, sapientes e engelhados, um rebuçado de caramelo.
A varanda da sua casa era muito alta e eu muito pequeno. Subi para os ombros do Nuno, tirei a carta do bolso e coloquei o pequeno vaso “Yoplait” sobre a folha. A flor era linda. Um malmequer grande e feliz apontado ao céu. O Nuno quase me deixou cair. Já não o vejo há muito tempo e tenho a certeza de que hoje ele não me conseguiria levantar e aguentar nos seus ombros. Não sei o mês, dia e muito menos as horas em que tudo isto sucedeu. Era um dia como outro qualquer. Não me esqueço, no entanto, de, no dia seguinte, ver a flor caída, de apanhar o vaso amachucado e desenrolar a bola de papel em que se tinha transformado a minha carta. Umas semanas mais tarde, ela viu-me e sussurrou aos ouvidos do namorado. O sorriso de ambos queimou-me como só a vergonha consegue queimar.
Ainda hoje passo por ela e sinto a aragem de um amor rejeitado precocemente. Foi ela que me fez sentir o primeiro desgosto de uma flor rejeitada. Depois, quase por distracção, a paixão desapareceu, murchou, repentinamente. Mas se assim o fez, foi para renascer e brotar com mais força, com mais vontade de dominar e mostrar que, sob o seu domínio, não tenho sido mais do que espectador dos meus gestos. E, então, ao longo dos anos, voltei às palavras e às flores, entreguei-me a cada beijo e quis, ansioso, sentir toda a envolvência misteriosa do corpo da mulher.
Não é o que sinto neste momento. Olho para as coroas de flores, tantas de volta do seu corpo, muito brilhantes e coloridas que me põem tão triste porque, sem ela, não têm qualquer significado além de intensificar a dor da perda e a negação da sua permanência.
Num ramo cabem todas as palavras. Podem mostrar-se vivas e frescas que não servem para mais nada, senão intensificar a mudez da boca dela, a imobilidade do corpo e a ausência de cor na sua face.
E mais uma vez sinto-me crescer, obrigatoriamente crescer e envelhecer, e obrigado a deixar de dar uma flor pequena que seja.
Houve um dia, um outro rasgo na realidade, em que deixei de as dar.
Eu colhia-as e guardava-as entre os dedos pequenos de uma mão, numa concha húmida que protegia as flores só para ela. Fui crescendo e continuava a oferecê-las, mas depois veio aquela fase em que é suposto, não sei por quem, nós deixarmos de dar flores e avançar, não sei para onde, mas avançar na idade. Eu senti esse preciso momento em que os meus movimentos cederam perante as palavras, eu senti porque ouvi dizer «ele é esquisito» e comecei a pensar na razão de o ser, pois eu tinha sido sempre assim. Fiquei atento, talvez eu estivesse doente, ou outra coisa qualquer, e só percebi quando ouvi, logo de seguida, «ele é amaricado». «Amaricado?», pensei, confundido, enquanto apanhava flores e eles caminhavam atrás de mim. «Ele é amaricado. Olha para aquilo! A apanhar flores…». E tanto ouvi que fiquei muito preocupado, «Eu seria maricas?». Havia um, segundo me contaram, que morava num prédio próximo do meu e que gostava de flores. E de homens. Eu não gostava de homens, mas gostava tanto de flores! «Seria meio-maricas?»
No meio de uma crise mais aguda em que um rapaz me perguntou «tu gostas de homens?» e em que eu respondi com uma bofetada e recebi três ou quatro ou cinco, decidi não colher mais flores. Ele era só um, mas mais parecia ser dois. Levei tanto pontapé e bofetada que, desde esse dia, especializei-me na arte de fugir rapidamente, a correr, de preferência ainda antes de me verem. Comecei a apanhar lagartixas. Não era tão bom, eu tinha pouco talento para a caça, mas lá conseguia apanhar uma ou outra mais desprevenida. Fazia uma pequena forca com um caule resistente, mas maleável, e agarrava-as pela cabeça e era vê-las espernear e a largar o rabo. Perder o rabo. Elas, sim, eram mariconças, pois davam logo o rabo quando eram caçadas. A primeira que apanhei deu-me uma grande alegria porque todos viram e podiam, finalmente, deixar de pensar coisas tontas. E fiquei tão alegre que a levei para casa, já quieta, imóvel, pendurada pelo pescoço, e mostrei-lhe e dei-lha, «é para ti», com muito amor e orgulhoso da minha perícia. Ela gritou. Não sorriu, não me deu um beijo, não a guardou num vaso, só gritou. Aí eu percebi que nem todo o objecto ou animal pode conter tudo o que queremos dar. A lagartixa não podia guardar o meu amor por ela.
Só voltei a apanhar flores, anos mais tarde, quando o peito me começou a arder. Queixei-me, «tenho aqui qualquer coisa, não sei bem o que é», fomos ao médico e ele disse que estava tudo bem, era só alguma ansiedade que me punha em sobressalto. Já tinha ouvido falar de rubéola, sarampo, varicela, mas daquilo não. E ele tinha razão. Cada vez que me aproximava da Inês, tinha um desses ataques de ansiedade. Começava a transpirar, as palavras tropeçavam todas na língua e caíam desconjuntadas. Um dia...um dia ofereci-lhe flores. Ela gostou, cheirou-as e, sem eu perceber porquê, deu um beijo abrupto nos meus lábios e fugiu. Tão depressa senti os lábios dela como os deixei de sentir. Não foi meigo, não foi a cheirar a rosas e alecrim, nem vi o fulgor das estrelas. Se houve eclipse lunar, solar ou planetas a nascer, eu não dei por isso. Distraí-me! Mas podia acontecer tudo o que nos livros acontece, que nada, mas mesmo nada, seria tão perfeito como aquele primeiro beijo.
O que as flores podem fazer.
II
Eu quero falar, mas a garganta fecha-se e nada vem cá para fora. O sexo, a morte, a alegria, a tristeza são partes complementares de um todo, são integrantes de uma violência emocional, física, explosiva que nos lança desamparados para uma violação cronológica. Todos os acontecimentos, os cheiros, os sabores, tudo o que sentimos nos vem ao cérebro, aos olhos, à boca em simultâneo, em turbilhão, em desordem.
Está com os pés e mãos tão juntinhos.
Está tão quieta como ela queria que eu estivesse, “Pára sossegado”, por vezes, “Tens o diabo no corpo”, quando eu era malvado, só pensava em futebol, e pontapeava bolas de papel e fita gomada que batiam com estrondo, nas paredes, “Põe-te na rua”, e eu não a ouvia, não queria sair, estava tanto calor ou chovia tanto, “Não jogues à bola na sala”, e aquele estádio era coberto, cheio de adversários de porcelana e balizas nos móveis, “Tu ainda partes alguma coisa”, onde por vezes não acertava, “Rapaz do diabo que me partes tudo. Sai daqui”.
O relógio de parede badalava para o fim do jogo, para o silêncio póstumo, tempo da sesta. Eram horas tão tristes! As badaladas aniquilavam os gritos, os remates, os golos que eu tinha marcado. O silêncio impunha-se, lento e pastoso, nos meus ouvidos e olhos que se fechavam contrariados.
Hoje, digo tantas vezes ao pequenito “sai daqui que me partes alguma coisa”, mas ele chuta e chuta e eu grito, “sai daqui!”, e ouço a minha voz como se fosse a dela; ele pergunta porque não pode chutar, “porque podes partir alguma coisa aqui na sala”; e no quarto? “os vizinhos não gostam; faz muito barulho”, então ele sai amuado enquanto ouço-a sussurrar “vai brincar para a rua”. Eu receio, avó, receio mandá-lo para a rua jogar futebol porque, de facto, há realidades diferentes, tudo é mais perigoso, mesmo que a minha cabeça não saiba bem, por vezes, em que tempo está e a que pertence.
Ele gosta de caminhar ao meu lado, quando o vou buscar à escola e quer sempre levar flores para a mãe. «Olha esta tão bonita» e dobra-se e arranca-a pela raiz, mas não fica satisfeito e arranca outra e dá-ma e eu fico mais leve, quase voando, embevecido por aquele gesto tão simples pousar tão forte nas minhas mãos agora mais engelhadas.
III
O ranger das portas da minha casa, no inverno, é o mesmo ranger do caixão a fechá-la no seu espaço muito pequeno e tão medonho.
Ajudei a levá-la, apoiada no meu ombro, para a carrinha. Era a minha vez de o fazer, depois de ela me ter adormecido tantas vezes ao seu colo, ter agarrado a minha mão para irmos ao hospital e me ter beijado e abraçado quando o pequenito nasceu.
Quando a carrinha parou e o cortejo terminou, não fui capaz de a levar lá para dentro, para o fim de tudo. As forças abandonaram as minhas pernas e os meus braços. Vi o fumo sair e desejei que todas as flores murchassem por momentos. E todos os sons se suicidassem nas gargantas e o ruído de tudo se suspendesse. Só por um instante. Assim, todos sentiriam o vazio que se instalou no meu peito enquanto vi o corpo dela a despedir-se de mim numa coluna de fumo em direcção ao céu. Agora, já não a distingo das nuvens.
Um amontoado de flores velhas apodrece junto aos contentores. Se o meu filho aqui estivesse, iria procurar as mais bonitas, desprezando e eliminando a morte que nos rodeia. Escolheria as flores mais vivas entre as velhas e murchas, separaria o novo do antigo, e diria, como disse uma vez quando vínhamos da sua escola: «são para a mãe. São iguais ao ramo do vosso casamento. Aquelas que a mãe tem na mão quando casaram. Naquela foto onde vocês estão muito contentes.» E continuaria a escolhê-las sempre a pensar na alegria que a mãe iria ter.
O amor pousado nas suas mãos, sempre que renova esta vontade de oferecer um malmequer, uma rosa, ou uma simples folha, enche-me o peito de alegria e empurra o vazio para um canto, lá bem para o fundo, de onde virá a sair para ser derrotado, novamente. Sempre.
publicado por oplanetalivro às 19:35