31
Jan 14

O primeiro parágrafo de “A Missão” é o melhor frontispício que um leitor pode desejar quando entra num livro. Ferreira de Castro demonstra desde as primeiras palavras a excelência da sua escrita.

“A Missão” e “O Senhor dos Navegantes”, que compõem “A Missão” (Cavalo de Ferro), poderiam ter sido escritas em 2013. Não o foram, pois Ferreira de Castro (1898-1974) publicou-as, pela primeira vez, em 1954. No entanto, a actualidade inerente às criações literárias que perduram é característica intrínseca destas duas novelas. Na continuação da edição das obras de Ferreira de Castro, a Cavalo de Ferro continua a reabilitar… o leitor. Estas edições possibilitam-lhe colmatar uma falha nas suas leituras. Ferreira de Castro é um escritor essencial na tão longa e rica história da Literatura Portuguesa.
Nas duas novelas debatem-se temas como a Criação, a Salvação, a Moral. Na novela “A Missão”, um grupo de 14 eclesiásticos discute a possibilidade de pintar a cruz, símbolo de Cristo, no telhado do edifício onde está albergado. Nessa aldeia francesa, sobre iminente ocupação alemã em plena II Guerra Mundial, existe um outro edifício, que é igual ao da Missão. É uma fábrica, potencial alvo de ataques aéreos, onde trabalham cerca de 400 habitantes da aldeia. O interesse dos alemães em destruir a fábrica pode pôr em causa a vida dos eclesiásticos. Por outro lado, a identificação e salvação de uns pode comprometer a vida de outros.
Baseando-se neste dilema, o autor português ensaia um diálogo teológico. Geourges Mounier tem a infeliz capacidade de se interrogar. A religião para si não existe para perpetuar o poder, mas antes para estar ao serviço dos outros. As suas ideias são contrariadas pela retórica dos seus pares, pelas dogmáticas acusações de heresia e pela burocracia. O realismo e humanismo de Mounier são derrotados pelos conceitos vazios. A retórica de púlpito esconde a falta de humildade. O Superior, contrariando o pensamento de Mounier, afirma que “Temos, também, de pensar que os homens não valem apenas pelo seu número e sim pela sua qualidade (…) Aqui, nós somos poucos, é certo, e na fábrica os operários são muitos; mas a Missão é um centro de luz, um lar de onde irradia a doutrina divina…” (pág. 15)
A instituição religiosa separa-se do crente. A opção pela narração através de uma 3ª entidade optimiza as possibilidades demonstrativas tanto do realismo sociológico da aldeia como das características psicológicas (pecados, medos, segredos) de várias personagens. O equilíbrio existente desde a composição do enredo, passando pela construção das personagens até à própria sintaxe e utilização lexical é propriedade da literariedade de ambas as novelas. Tudo o que existe na prosa de Ferreira de Castro existe nas suas proporções exactas, sem excesso nem escassez.
Em “O Senhor dos Navegantes”, a prosa ganha dinamismo devido ao debate de ideias e à desconstrução psicológica das personagens, de quem nunca sabemos o nome. Um homem sobe uma colina para chegar a uma capela. Leva um livro para quando tem necessidade de repousar. Junto à capela, enquanto o caminhante descansa e lê o seu livro, surge um indivíduo carregando nos seus braços muitos ex-votos. O diálogo entre estes dois homens (subsiste a dúvida se um será mesmo humano) é um debate sobre a criação, a incompreensão, o significado e a sensação de incompletude.
Ferreira de Castro não se afasta daquele caminhante, provocando a ideia de que autor e personagem são a mesma entidade. Por sua vez, o misterioso indivíduo conceptualiza-se como um incompreendido demiurgo, que sofre a intolerância dos homens.
“Mesmo os que me adoram, passam a vida a discordar de mim e a tentar emendar o que eu fiz. Quando imploram as minhas graças para as suas infelicidades, não fazem, no fundo, outra coisa a não ser censurar-me, pois o que é uma súplica senão uma revolta que não se pode exteriorizar?” (pág. 80)
O Homem é incapaz de reconhecer o Divino. O Criador é derrotado pelo dogma da criatura. Ambos debatem-se com o absurdo da Vida e da Criação. O autor português tem na literatura uma ferramenta na defesa da libertação do homem.
As ideias humanistas são património comum das duas novelas de “A Missão”. O autor apela ao levantamento da dignidade do Ser Humano perante as adversidades impostas pelos poderes religiosos ou económicos. “Imperfeito há-de ele [mundo] ser sempre e vós também; contudo, em muita coisa podeis aperfeiçoar o mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o fareis; é de pé e a lutar!” pág. 84
“A Missão”, parábola da condição do indivíduo, é profundamente humanista.
publicado por oplanetalivro às 17:50

12
Set 13


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=653971

“Emigrantes”, de Ferreira de Castro

A literatura não tem obrigação de lutar nem de salvar ninguém. A literatura não tem de estar vinculada a qualquer “ – ismo”. Não tem, mas pode.
Ferreira de Castro (n. Oliveira de Azeméis; 1898-1974), escritor e jornalista, é considerado um dos precursores do neo-realismo. A sua produção literária é declaradamente combativa e “engagé”.
“Emigrantes” marca o início da edição de toda a obra ficcional de Ferreira de Castro, pela Editora Cavalo de Ferro.
A ideologia subjacente à prosa de “Emigrantes” é motivo e assunto na construção do respectivo romance. O autor declara-os no Pórtico (prefácio):
“O problema da emigração não é, porém, um problema-causa, mas consequência de outro mais vasto e mais profundo. Assim, sob a forma do primeiro, o nosso romance pretende dar a essência do segundo”. Pág.10
A ambição e a necessidade motivam o Homem a abandonar a sua zona de conforto para aceder a novas oportunidades. A Migração sempre foi característica intrínseca ao Ser Humano. O abandono de território para procurar novos terrenos de caça era uma constante nos primórdios da nossa existência. A evangelização, o “espalhar a palavra”, implicava, também, a peregrinação para terras desconhecidas. Podemos observar estes aspectos em livros (ou documentos) como “Carta de Pêro Vaz de Caminha” “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, ou “Tratados da Terra e Gente do Brasil“, de Fernão Cardim, entre muitos outros nas ricas e plurais “Literaturas de Expressão Portuguesa”.

O que viria a ser França, Luxemburgo e Suíça, anos mais tarde, era então Brasil e os Estados Unidos da América: terra de oportunidades e abundância.
O Portugal do início do século XX é um país rural, pouco desenvolvido. O analfabetismo impera. Dentro destas condições, as pessoas de baixas habilitações têm a ambição de serem ricas, ou de, pelo menos, não passarem dificuldades. É o caso de Manuel da Bouça, personagem que acompanhamos do princípio ao fim do romance. Ele é um homem movido pela curiosidade, mas não só. A necessidade e a ambição empurram-no para uma aventura com objectivos precisos, mas de consequências imprevisíveis. Ele representa a escassez de escolaridade e posses.
Manuel da Bouça hipoteca, no presente, o que tem em Portugal (courelas) e separa-se da sua família (mulher e filha) para, em terras estrangeiras, entregar-se a uma quimera com o objectivo de alcançar uma vida melhor, no futuro. Não era o único. Uma palavra aparece recorrentemente no texto para caracterizar o fluxo migratório (portugueses, italianos, russos…): “Rebanho”.
 “ (...) lares inteiros que se deslocavam, famintos de pão e de futuro” Pág.79
O escritor, emigrante durante muito tempo no Brasil, faz da sua própria experiência, enquanto empregado em diversos trabalhos precários, matéria literária. As “dores” de Manuel da Bouça são, em parte, as do autor.
Também ele sofreu com a divisão de classes que fechava ao pobre as possibilidades de conquistar uma vida melhor. Talvez por isso, a pobreza seja apresentada de forma romântica e honrada.
“Manuel da Bouça pensou: «O urso trabalha para o dono. É o dono que lhe dá de comer, mas dá-lhe de comer com o resultado do trabalho que o próprio urso faz. Se não tivessem preso o urso, ele podia comer sem precisar do dono. Quando eu trabalho para os outros, eu sou, salvo seja, como o urso. Mas, com certeza, no Brasil e na América, os homens não são como ursos, pois lá eles enriquecem em pouco tempo.” Pág. 40

“Emigrantes” mantém, em 2013, a contemporaneidade e a pertinência temática, apesar da sua primeira publicação ter sido em 1928.
Ferreira de Castro construiu uma obra com uma riqueza lexical pouco vista em autores surgidos no primeiro decénio do século XXI. A prosa de “Emigrantes” é densa; nela abunda a adjectivação, os diminutivos e a metáfora. Os diálogos estão próximos da oralidade. As combinações semânticas deste nível “Como de costume, despenhadas as doze na igreja na matriz…” enriquecem o texto literário.
Quanto a Manuel da Bouça, ele é um homem em trânsito. É o pobre, o último do rebanho.
O autor parece amplificar, com “Emigrantes”, a voz do “Velho do Restelo”, no Canto IV dos “Lusíadas”:
"A que novos desastres determinas/ De levar estes reinos e esta gente?/ Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo dalgum nome preminente?/ Que promessas de reinos, e de minas/ D'ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? que histórias?/ Que triunfos, que palmas, que vitórias?

Mas quem seríamos nós, povo português, se optássemos por não procurar?

Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
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publicado por oplanetalivro às 08:58

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