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Abr 14

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João Tordo: «No fundo, escrevo para não estar sozinho»


“Biografia involuntária dos amantes” é o caminho ficcionado e introspectivo de João Tordo em relação ao “outro”, ao ser humano tão próximo, mas desconhecido. Falámos do seu novo livro, editado agora na Alfaguara, no Festival Literário da Madeira (FLM). O local e a ocasião dificilmente poderiam ser mais adequados. O livro e o evento partilharam a mesma essência: a Alteridade.

Tens seis romances que obtiveram muito sucesso. Vários foram finalistas de prémios e um ganhou o Prémio José Saramago. O que te levou a mudar de registo ao sétimo romance?
Eu não mudei muito de registo. Tentei coisas novas, que eu nunca tinha feito antes. Por exemplo: aquela secção intermédia que é fundamental para a história do livro e que é contada no ponto de vista feminino. Nunca tinha tentado fazer uma coisa semelhante porque alguns dos meus romances eram contados na 3ª pessoa, e a maior parte deles eram contados na 1ª pessoa masculina. Foi com aquela voz da Teresa que eu comecei a escrever o livro.
Este romance foi o que mais tempo me levou a escrever. Foi um ano e meio. Fui parando e recomeçando, o que não é um método habitual. Normalmente, sento-me e escrevo os livros de “rajada” porque sei que tenho aquele tempo disponível e porque gosto de não parar até chegar ao fim. Neste, fui intercalando os tempos narrativos. Comecei por escrever a parte que diz respeito à Teresa e que é contada pela voz dela, o que já em si era um desafio, pois não sabia se conseguiria escrever no ponto de vista feminino.
As mudanças são esta [ponto de vista feminino] e a estrutura, que tem mais interrupções, é menos linear, em que partes do livro são telefonemas, cartas, outras são narração. No fundo, são técnicas narrativas que não têm nada a ver umas com as outras. Uma coisa é estares a narrar os acontecimentos no passado na 1ª pessoa, outra é estares a descrever ou, como jornalista, a parafraseares um telefonema.
Acabei por experimentar essas coisas novas neste romance e gostei de o fazer. Gostei de sair da minha zona de conforto, experimentar algo novo, e também centrar o livro numa personagem feminina, o que não tinha acontecido antes.

Que dificuldade é que essa opção te criou, como escritor?
As dificuldades foram as de verosimilhança, de não cair na tentação de escrever na voz feminina como se estivesse a escrever numa voz masculina, mudando apenas os acontecimentos e não a voz. Quando comecei a escrever, demorei três ou quatro dias a arrancar. Não conseguia arrancar bem, voltava para trás, arrancava outra vez. Mas conhecia bem aquela personagem. A personagem Teresa, em torno de quem o livro todo gira, é inspirada notoriamente em duas mulheres que conheço muito bem porque são da minha família. Tive dificuldade em ter de olhar para elas de uma maneira com que nunca tinha olhado: sem o afecto do parente, mas com o olhar mais minucioso e mais escrutinador de uma pessoa que escreve. As dificuldades foram surgindo, mas ao mesmo tempo que surgiam foram sendo eliminadas pela minha crença de que aquela personagem era verdadeira. Isso acontece-me muitas vezes. As dúvidas que eu tenho, enquanto vou escrevendo, vão sendo eliminadas pelo facto de aquela história ser tão verdadeira, ou aquelas personagens daquela história serem tão verdadeiras para mim.

A adopção de uma voz que nada tem a ver contigo é uma forma de alteridade? De compreenderes o “Outro”?
Sim, eu acho que faço uma literatura do “Nós”, como dizia na “mesa” de hoje [“Conversa Cruzada” - Homens que são como lugares mal situados- Festival Literário da Madeira], que é uma coisa que eu tenho pensado nos últimos tempos. São raros os meus livros que dizem respeito ao próprio narrador, embora grande parte deles tenha um pendor autobiográfico, como  “O Ano Sabático”, por exemplo,  que parte de uma história verdadeira.
Só me consigo rever pela identificação. Só consigo relacionar-me com outro ser humano, com os seus sentimentos, emoções, as coisas pela qual essa pessoa passa, se ao mesmo tempo identificar certas coisas que são comuns a todos nós. Se fores a uma sessão de terapia de grupo, aquilo funciona porque as pessoas se identificam umas com as outras. As partilhas nesse grupo só funcionam porque os outros se identificam com sentimentos, com faltas, com ausências, com angústias, etc. Nesse aspecto, eu não sou um escritor nada “umbiguista”. Quero compreender-me, mas quero compreender-me por identificação com o “Outro”. Essa alteridade talvez tenha a ver com o facto de eu quando nasci ter tido um gémeo idêntico que não sobreviveu. No fundo, passei a minha vida toda à procura de uma identificação que desapareceu. Daí essa necessidade de eu escrever sobre o “Outro”.
«Em nada era diferente daquele homem vestido a rigor no comboio, cuja ilusão se propagava indefinidamente, a ilusão de uma ária de Puccini que, na verdade, não passava de um programa de rádio destinado àqueles a quem a vida oferecia frigoríficos, viagens a Benidorm e a morte» (pág. 72)
O narrador criou uma imagem muito afastada da realidade do outro.
Um dos problemas da vida é esse.
É uma história verdadeira. Eu estava no comboio para o Porto e ao meu lado, mas na outra fila,  estava sentado um senhor bem vestido muito compenetrado, de olhos fechados, com um “smartphone”. Achei um gesto bonito o facto de um homem, dos seus sessenta anos, estar assim ali sentado. Às tantas, ele deve ter carregado num botão errado e eu percebi que ele estava a ouvir um relato qualquer de futebol. E eu tinha a certeza de que ele estava a ouvir música clássica, uma ária qualquer. Deu-me vontade de rir. Aquilo só o tornou ainda mais humano aos meus olhos porque eu estava a imaginar uma coisa que ele não era. Estava a imaginar que aquele homem teria uma vida como eu acho que gostaria de ter quando chegar à idade dele. Provavelmente não vou ter. Provavelmente vou ser exactamente igual a ele. Vou estar no comboio a ouvir um relato de um jogo de futebol do Benfica em vez de estar a ouvir uma ária de Puccini.
Isso para explicar o quê? Philip Roth tem uma frase muito engraçada: “O grande problema da vida são os outros”. É nós não compreendermos os outros. E como não compreendemos queremos compreender. Fracassamos sempre, ou quase sempre nesta tentativa de compreender o “Outro”. O “Outro” é fundamental para nos compreendermos a nós próprios, não tenho dúvidas. Mas claro que nos vamos equivocando. Podemos olhar para esses equívocos de duas maneiras: uma é de ficares de certa forma revoltado por os outros não corresponderem às tuas expectativas; outra maneira de olhares para as coisas é a de que as tuas expectativas são sempre irreais. A realidade mostra-nos constantemente que as nossas expectativas saem goradas porque nós tendemos a procurar o absoluto e a perfeição, quando se calhar deveríamos estar muito mais à procura das falhas dos outros que também temos em nós. Isso é algo que eu tento mostrar nas minhas personagens. Acho que elas quando chegam ao final dos romances, ou a certa parte dos livros, começam a perceber que os seus defeitos são aquilo que as une às outras pessoas.

Redenção?
Há redenção, sim. E a redenção passa por tu te aceitares. E claro aceitar o “Outro”, também. Tu não te podes aceitar se não tiveres muita gente que te aceite também. É algo que acho ser fundamental para qualquer tipo de alegria ou de felicidade que tu possas ter nesta vida.

O narrador acaba por aceitar Saldaña Paris. Apesar de todas as transformações pelas quais Saldaña vai passando, o narrador é compreensivo, quando o mais provável seria afastar-se…
O mais provável seria afastar-se, sim, mas repara que há uma certa parte do livro em que ele passa por ser um antagonista, porque ele olha para o Saldaña, em Paris, como um tipo estranho que não se compreende bem. Há uma cena fundamental no livro em que ele passa pela praça à noite, e o Saldaña Paris está a afagar a estátua e ele em vez de parar e dar atenção ao seu amigo prossegue e vai dormir com a colega da filha. E essa cena é fundamental porque significa que ele escolheu o caminho como todos fazemos. A partir desse momento, essa culpa- e a culpa é talvez a impressão mais pesada que nós carregamos. Fomos criados nesta cultura judaico-cristã em que a culpa está presente- é usada como elemento transformador. Se tu alimentares a culpa, estás tramado. Mas se usares a culpa para deixares de alimentar o passado e deixares de recear o futuro e começares a tentar perceber o presente, aí podes ter essa tal redenção de que falámos.

Há uma grande dependência afectiva entre as personagens. Vi a tua “mesa” e ouvi-te falar em liberdade. Qual é a relação entre o vínculo afectivo e a liberdade individual? São antagónicas?
Não são antagónicas. Tenho descoberto que liberdade não é vontade própria. É algo que eu acho que é muitas vezes confundido. Achamos que temos direito às coisas; temos esta vontade própria que nos diz para fazermos determinadas coisas.  A nossa vontade própria, muitas vezes, tende a enganar-nos no sentido em que há os actos por nossa vontade própria e os actos que estamos a usar na nossa liberdade, mas que estamos no fundo a cortar a liberdade a outras pessoas. Para mim a liberdade tem muito mais a ver com solidariedade. Eu sou tanto livre quanto me conseguir identificar com o próximo. Isso sim, é ser livre. A minha vontade própria até agora trouxe-me mais problemas do que soluções. Ao exercer a minha vontade, ao fazer as coisas à minha maneira, ao fazer aquilo que eu quero e ao não considerar aquilo que os outros querem, incorri frequentemente em egoísmos, nesse encerramento no “eu” que é tão contrário ao “nós” que eu procuro nos meus livros. Tem que haver liberdade, necessariamente, mas é uma liberdade que se confunde com solidariedade. É isso que se passa no romance. É um romance que é profundamente solidário com um homem que dá a mão ao outro e que em troco recebe algo que não estava à espera de receber.

E é possível chegares ao "Outro", à essência das pessoas e das coisas, através da ficção?
Não sei se é possível na ficção, mas também duvido que seja possível na realidade. Na vida quotidiana, somos pessoas a viver de um modo fragmentário, pois estamos condicionados por uma série de circunstâncias exteriores.
Na ficção, tu não tens esses condicionamentos, ou seja tu podes relacionar-te com os outros. Mais uma vez, os meus livros são quase autobiográficos. Admiro escritores que escrevem desta maneira, a começar por Henry Miller, Javier Cercas. São escritores que escrevem como se a ficção fosse mais forte que a realidade, ou que fosse mais importante. De facto, em ficção temos o tempo e o material e talvez a sabedoria necessária para compreender aquela personagem como raramente conseguimos compreender uma pessoa. E com isto não estou a tentar substituir personagens por pessoas. De facto, Saldaña Paris existe. Quando o conheci, havia muitas coisas que não compreendia nele e se calhar com este livro compreendo melhor. Ainda que não seja a história dele!

É um instrumento de reflexão?
Sim, é exactamente isso. É espantoso este poder que os livros têm em nos abrir portas e de nos abrir emoções, que são contrárias à razão, porque a razão tem os seus limites; a razão está sempre a tentar justificar as nossas acções. Nós, como seres racionais, estamos sempre a tentar justificar o que fizemos. Mesmo quando fizemos uma coisa errada tentamos achar uma justificação para essa coisa errada que fizemos. Os livros que eu leio e os livros que eu escrevo -mais os que eu leio porque eu leio muito mais livros do que aqueles que escrevo. Gosto muito mais de ler- abrem-me portas que eu não consigo racionalmente abrir. Se eu estivesse fechado, sozinho, a tentar resolver um problema racionalmente, passaria o tempo todo a arranjar desculpas. Os livros abrem portas que eu não sabia que estavam lá. E são portas emocionais; não são portas racionais.
Temos estado a falar da literatura como um meio de chegar aos outros. Pergunto-te se não será, também, um meio de ser reconhecido pelos outros. Leio as seguintes frases do teu livro. Diz o pai de Saldaña Paris: «Afinal de contas, os escritores vivem do ego, ou não é assim? Querem ser lidos e que digam bem deles. Ou que digam mal ou que digam alguma coisa. Não, senhor. Eu nunca andei cá para alimentar vaidades» (págs. 253/254)
O pai de Saldaña Paris é uma espécie de Cassandra; ela está a avisar sobre a destruição de Tróia e ninguém lhe dá atenção. Ele é um personagem cínico e que ergueu muros muito sólidos na sua relação com o filho e com o exterior, mas dentro desse onanismo ele consegue dizer algumas coisas que são verdadeiras.
Nós, como escritores, evidentemente que dependemos do reconhecimento alheio. Se eu não vender livros, se não der entrevistas, se não aparecer, eu continuo a ser escritor, mas deixo de ser uma figura reconhecida publicamente como autor. Escritor serei sempre e já o era antes de publicar livros.
Se me dá prazer que muitas pessoas leiam os meus livros? Dá-me imenso prazer, obviamente.
Quando alguém me escreve, ou quando alguém vem ter comigo e diz que se identificou com isto ou aquilo, e temos uma conversa sobre isso, é o maior prazer que eu posso ter porque significa que não estou sozinho.
No fundo, escrevo para não estar sozinho.

Nas páginas 228/229 fazes a comparação entre Miguel e o namorado da filha, ou seja entre o pós-doutorado em literatura e o mecânico de automóveis, em que o académico inveja quem suja as mãos: «Carlos sujava as mãos todos os dias, e o fruto do seu trabalho era visível no mundo»Na página 260, o pai de Saldaña diz: «para que é que interessa a poesia agora? Vai resolver o nosso problema?»
A Literatura tem alguma utilidade?
É uma velha questão. Isso recorda-me Aristóteles. Detesto citar, mas recordei-me de Aristóteles. No primeiro ano de filosofia, estudámos Aristóteles. Ele escreveu num livro que a filosofia só é possível quando estamos bem alimentados, bem vestidos, confortáveis.
 Um tipo que está num campo de concentração não tem tempo para pensar em Ética. Não tem capacidade física para se preocupar com as coisas com que nós, que estamos alimentados e bem vestidos e temos uma vida “normal”, “perdemos” tempo. Nessa passagem, o que eu quis mostrar foi que a vida de um professor ou de um académico pode ser muito enriquecedora, mas também pode ser uma forma de te afastares da vida, refugiando-te nos livros. Os livros não são a vida. Os livros são uma reflexão posterior que só quando já tens alguma vivência, ou quando passaste por uma série de problemas e inquietações, podem vir em teu auxílio, ou podem dizer-te alguma coisa.

Saldaña cavou o seu fosso por causa de mentiras, ou verdades incompletas, e acabou por sair desse fosso com a ajuda de mentiras, também. 
É moralmente aceitável mentir para salvaguardarmos alguém?
Se é moralmentea aceitável mentir para salvaguardarmos alguém? Sim. Tenho quase a certeza de que sim e tenho quase a certeza de que se eu estivesse na posição do narrador, faria o mesmo. Todo o romance assenta nessa mentira, e essa mentira vem no tal poema do Dylan Thomas sobre a mentira. Ele mente para salvaguardar o amigo, embora eu tenha a sensação de que ele mente para melhor lhe dizer a verdade. O mundo está tão cheio de maldade e de coisas que são incompreensíveis por estarem carregadas de mal! Neste festival [Festival Literário da Madeira] falou-se imenso disso; Auschwitz, por exemplo. Às vezes não podes encarar esse mal de frente. Não creio que o ser humano consiga encarar esse mal de frente, nem o mal que sucede neste livro, através do personagem Franklim, o tio da Teresa.

Por que razão Saldaña deixa e espalha os seus poemas por onde passa?
Isso é uma espécie de “comic relief”. Conheço o Saldaña Paris, o verdadeiro, o poeta; ele escreve de uma maneira muito curiosa e deixa poemas por toda a parte. Escreve nos cafés e esquece-se dos poemas lá. Tem a gaveta cheia de coisas que nunca publicou. Achei engraçado que o personagem também fizesse isso. Achei que era uma maneira de o fazer mais livre. Ele, que é um tipo tão preso aos seus fantasmas, precisava dessa liberdade.
publicado por oplanetalivro às 18:33

04
Abr 14


Ndalu Almeida, ou seja: Ondjaki. Escritor angolano nascido em 1977. O seu pseudónimo significa “Guerreiro” em Umbundu, uma das línguas mais faladas em Angola.

Licenciado em Sociologia, Ondjaki desde cedo despertou para a Literatura. Os prémios depressa apareceram. Em 2007, recebeu o “Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco” com a obra “Os da minha rua”. Na Etiópia, foi galardoado com o prémio “Grinzane for best african writer”, em 2008. No Brasil, foi vencedor do “Prémio Jabuti”, na categoria juvenil, com o livro “AvóDezanove e o segredo soviético”.
O seu livro “Os Transparentes” ganhou o “Prémio José Saramago”, em 2013.
O Diário Digital entrevistou o autor na Póvoa de Varzim, durante o festival literário “Correntes d`Escritas”. Era cerca de uma da manhã, quando a conversa começou. Ondjaki tinha terminado um debate literário com Miguel Sousa Tavares, Manuel Jorge Marmelo, Rui Zink, Carlos Quiroga e Manuel Silva Ramos. A fila para lhe pedir um autógrafo e uma fotografia era extensa. Quando o autor conseguiu sair, já o auditório estava vazio e a Feira do Livro, adjacente ao auditório, fechada.
O Povo angolano sabe que a Senhora Ideologia [personagem de “Os Transparentes”] morreu?
Não sei se o povo angolano sabe. Não é que eu no meu livro matasse a Senhora Ideologia. O que no meu livro acontece é que finalmente se dá a notícia às pessoas de que a Senhora Ideologia já morreu. Mas realmente, para te responder à pergunta, eu não sei se o povo angolano sabe que a Senhora Ideologia já morreu.
Na minha opinião, em Angola a Ideologia morreu.
E foi substituída por o quê?
Não faço ideia, nem sei se quem a matou tinha a noção do que estava a fazer.
Fiquei com a sensação de que há mais uma violação da terra e da gente do que um esforço de desenvolvimento? É isto que se passa em Angola?
- Não sei se o povo está a ser violado ou violentado, mas o que há ali [“Os Transparentes”] – claro que o livro é uma ficção- é o ponto de vista da minha preocupação pessoal como autor- é uma tentativa de chamada de atenção para que, de facto, não se confunda o modernismo do cimento, ou até o modernismo do dinheiro e do petróleo com o desenvolvimento social. É verdade que um país como o nosso esteve 40 anos em guerra. Evidentemente que há reconstrução de pontes e de estradas, mas para mim seria preciso dar prioridade à reconstrução moral,  cívica, da cultura e da educação. Para mim, é onde o dinheiro devia estar a ser usado prioritariamente.  Onde eu vejo o dinheiro ser usado prioritariamente é no betão e na reconstrução de estradas. Muito bem, mas a reconstrução de uma ponte é ter dinheiro, que o governo angolano tem, chama o chinês e o chinês faz a ponte. Isto até nem precisa de muita planificação: chamar o engenheiro e os trabalhadores e fazem.
A reconstrução... não é bem uma reconstrução, é um reinvestimento na cultura e na educação, que também há, mas eu vejo mais a nível do cimento. Sim, há novas escolas. Sim, há novos postos de saúde. Sim, há novas universidades, mas a prioridade - repito- devia ser dada à qualidade do ensino e não aos prédios onde ensinam. É preciso repensar a qualidade dos professores que temos e do nível de ensino. O mesmo se aplica à cultura. E isto não é visível, porque não é como uma ponte que aparece daqui a 6 meses, mas talvez daqui a 6 anos ou daqui a 60 pudéssemos então- oxalá possamos- ver um país a renascer. Claro que os países se reinventam, e Angola está a renascer e está a reinventar-se. Eu acho é que tem de se pensar que maneira é que todos nós, cidadãos e políticos, queremos que Angola se reinvente. Como é que a queremos? Que Angola queremos nós, cidadãos, para o nosso futuro?
Está tudo a acontecer muito depressa…
Depressa é inevitável! O depressa está em todo o lado. Está em Nova Iorque, está em Joanesburgo e em nós também, mas o depressa tem de ser contrariado, o depressa não existe, o depressa não funciona. O depressa traz defeito. O depressa é perigoso...mas enfim… eu não sou político. É uma mera reflexão pela via da ficção.
A tua literatura é uma arma de combate social?
Eu acho que não, ou seja eu não uso com essa intenção. É óbvio que o livro pode ter várias leituras; é óbvio que “Os Transparentes”, dentro destes livros que eu escrevi, é talvez o livro com uma carga política um bocado mais forte. Existe ali qualquer coisa de inquietação política, mais do que crítica ou outra coisa qualquer. O que eu quero transmitir é inquietação; a minha pessoal, acho que transmito a de algumas pessoas também, é a minha pessoal e assumo-a. O livro está assinado por mim.
Eu só chamo a atenção para coisas que eu gostaria que fossem passíveis de reflexão e de discussão aberta.
Em “Os Transparentes”, Luanda é a personagem principal?
Eu acho que sim. Acaba por ser. Não é a primeira vez. Há um livro chamado “Quantas madrugadas tem a noite” em que o pano de fundo e uma das personagens principais é a cidade. Aqui em “Os Transparentes” é mais evidente. Luanda aparece com os seus tentáculos e esses tentáculos são as pessoas, desde o vendedor de conchas ao ministro; desde a avó, que veio de Huambo e que vive em Luanda enclausurada numa outra língua que não é a dela, até ao menino que transporta baldes de água e lava os carros. Estas pessoas fazem uma certa Luanda. Evidentemente que outros escritores poderão optar por uma outra visão de Luanda.
Angola, tal como Luanda, é um país permanentemente em obras/reconstrução?
Ainda é e ainda será. Lá está! É preciso ver que a reconstrução está a ser feita a vários níveis: do ponto de vista de quem manda, que é o governo, mas do ponto de vista também de quem lá vive e tem o seu próprio conceito de reconstrução. Luanda, especificamente, é uma cidade que vive em função do dinheiro- e onde há dinheiro isso tende a acontecer; onde há menos dinheiro as pessoas vivem menos em função do dinheiro- ali há muito dinheiro e toda a gente gira em torno do dinheiro, seja o dólar seja o kwanza.
Isto é uma coisa que me deixa triste. É Natural? Bom, talvez, mas deixa-me triste; é uma outra Luanda em relação às luandas que já houve e às luandas que eu conheci antes. Havia menos dinheiro, ou pelo menos circulava menos dinheiro.
O ministro tem gelo enquanto a população sofre com a falta de água. É possível escrever sobre a classe média? Ela existe?
Está a aparecer devagar uma classe média. Não é, sociologicamente, a classe média típica, se analisarmos vários indicadores, porque a classe média não se faz só por valores monetários. Eu acho que, neste momento, se eu te falar de uma classe média, eu vou estar a falar exclusivamente no salário das pessoas. Nesse sentido, sim; há uma nova camada que está nos bancos, há uma nova camada que está a ganhar melhor. Isso vai ser a nossa classe média, mas é preciso atenção porque sociologicamente a classe média deveria compreender outros indicadores: aptidões intelectuais, aptidões sociais, acesso a determinado tipo de bens e de direitos. Isso não sei se existe porque está tudo muito ainda em função do dinheiro, tanto a oportunidade quanto o acesso. Isto complica. Não deveria ser só o dinheiro a permitir o acesso a determinado tipo de serviços ou de bens. A água é um exemplo: mesmo quem tem água em casa é porque tem tanques de água e quando a água vem, que não é todos os dias, armazena a água e depois tem água que parece corrente. Mas a água não vem todos os dias para toda a gente em Luanda. No caso de Luanda; já nem falo nas outras províncias. A meu ver, é uma das prioridades. Seria interessante ver um político ou governante dizer “Vocês já viram que já resolvemos o problema da água?” Isto para ele seria um trunfo político; para mim seria uma coisa normalíssima que os políticos estivessem preocupados. Num país com o número de rios que nós temos- há províncias com mais de 3 rios- seria incrível se conseguíssemos finalmente que a população… Eu até digo prioritariamente a água! Mais do que a luz porque a água faz mais falta a toda a gente.
Em “Os Transparentes” procura-se petróleo, mas falta água. A que se deve esta inversão de prioridades?Isto é na ficção. Não há petróleo “onshore”, digo eu… É simbólico, mas essa simbologia estende-se a muitos políticos no mundo que raramente adoptam como suas prioridades  as prioridades de quem conta com eles. É muito raro um político adoptar como prioridade aquilo que realmente faz falta. São outras agendas! Isto é incrível!
Estou a ouvir-te e, tirando alguns aspectos particulares, consigo identificar a Europa.
Claro! Estás a ver a França, estás a ver a Espanha, a Itália e estás a ver Portugal. Claro!
Angola teve uma guerra civil, houve uma “catarse” de sangue. Dá-me a sensação- obviamente que é ficção- de que há uma constante destruição e reconstrução na Luanda de “Os Transparentes”. É necessária uma nova catarse, uma nova forma de niilismo na transformação da sociedade angolana?
Não sei se a palavra é “Necessária”... Não sabemos muito bem o que vai acontecer. O partido que está no poder está no poder há muitos anos, a pessoa que está no poder como Presidente da República, por variadíssimas razões, está no poder há muitos anos. Angola vai ter que lidar com isso. Um dia, Angola vai ter de que repensar isso; vai ter que se perguntar porque ficou tanto tempo o mesmo partido e o mesmo presidente. É impossível que ninguém se pergunte. As pessoas se perguntam, muitas vezes…
A Literatura é a expressão de uma identidade. Parece-me que a literatura angolana já está consolidada…
Sim, mas é feita por um pequeno número de pessoas. Hoje o Ungulani, de Moçambique, estava a me dizer que nos nossos países o número activo de escritores face à dimensão populacional é curto. Angola neste momento deve estar com cerca de 18 a 20 milhões de habitantes.  Vamos admitir que sejam 200 [escritores], oficialmente. É pouco. 200 escritores para 20 milhões é pouco.
Não podemos mandar para a faculdade e desejar que sejam escritores. Não podemos controlar, mas podemos favorecer as condições para que apareçam, não é? As pessoas vivem em condições que não permite sonhar com o ser escritor. Neste momento, a juventude sonha com ser desportista ou cantor. E porquê? Porque são duas coisas que resolvem o problema das pessoas pela via do dinheiro, pela via da fama, pela via do encosto -encosto-me a este, encosto-me àquele. Escritor, algumas pessoas querem ser, pelo prestígio, mas não é uma carreira promissora.
Então não há uma crise de identidade em Angola?
Não, eu acho que não. De um modo de um geral, os angolanos sabem muito bem o que são; alguns estão equivocados, como noutras culturas.
Eu prefiro pôr em questão e prefiro pensar sempre que não é possível falar em identidade angolana enquanto conceito fechado e que é bom que esse conceito seja arejado e que possamos reconstruir todos os anos, todas as décadas. Se há pessoas que estão convencidas que sabem exactamente o que é a identidade angolana...bom...essas pessoas têm o seu caminho a fazer.
Em “Os da minha rua“ usaste muitas memórias de infância?
Sim, sim…
E em “Os Transparentes”?
Quase nada.
Há pessoas que são baseadas em pessoas que conheço.
Essas histórias não são minhas; toda a gente conhece essas histórias. O meu trabalho é agrupar essas histórias e, claro, dar-lhe um traço de escrita, que é meu. Toda a gente em Luanda sabe daquelas histórias. Toda a gente.

Existem características tuas espalhadas pelas personagens, presentes principalmente em Odonato? Lembro-me do idealismo de Odonato e da frase que disseste na entrega do prémio Saramago “Na palavra cantil guardo a utopia, para que durante a vida eu possa não morrer de sede”; lembro-me também de PauloPausado e a sua mania em coleccionar pessoas estranhas e ouvir conversas…
Há coisas nossas que no momento certo precisamos de usar. Não é “agora vou fazer isto baseado em mim”, mas naturalmente uma ou outra coisa deve saltar; um ou outro personagem deverá falar-nos mais ao coração do que outros. Certamente não me identifico, como pessoa, com o ministro. Também não sei se com o Odonato...Eu conheço pessoas assim que acreditaram numa certa esquerda, a dada altura, e que são de esquerda ao contrário de outros que não sabem bem o que é; tanto não sabiam o que eram como ainda hoje não sabem. E tanto lhes faz. Eram hiper-comunistas, hiper-marxistas/leninistas, mas mal o sistema mudou foram se casar na Igreja. Eu não tenho nada contra uma pessoa que se case na igreja!
Não é como a esquerda italiana que tem a esquerda italiana católica. Em Angola, quando tu eras Marxista-Leninista, em princípio, não eras católico, mas até podia ser que se fosse, pois a pessoa estava escondida. Mas aqueles que diziam abertamente que não eram depois vão se casar pela igreja e depois têm 4 Mercedes em casa, no quintal! Esses que se diziam de extrema-esquerda, hiper-colectivistas e Marxistas-Leninistas! 4 Mercedes… acho que alguma coisa aqui não está bem.
Odonato representa um bocadinho isso. Acho que o Odonato às vezes ainda diz isto: “Eu acreditei naquilo que me disseram; que era para todos, que era para dividir”. E de repente vê que não é nada disto. Isto é uma desilusão não só política como humana. Ele está todo destroçado. Ele não come, o filho desapareceu. Coitado! Também dei-lhe uma conjuntura não muito fácil. Ele tinha que ficar transparente, pois já não aguenta. Ele desaparece de si mesmo! É esta transparência.
Ele tem essa pureza, essa ingenuidade...
Sim, sim… eu achei-o excessivamente puro, no aspecto literário. Aquela pessoa não existe. Não pode existir. Na verdade, era eu que precisava dele para contar uma história e pu-lo assim. Acho que ele não existe.
E o filho Ciente? É um personagem simbólico? Não lhe deste esperança nenhuma. Ele não teve saída.
Não, não… Ele já estava condenado à partida. Na realidade, ele ajudou-me imenso para o pai ficar mais desesperado, ir à procura dele. O Odonato é um frustrado, de buscas frustradas, e tem um filho assim. O filho, não. O outro personagem, amigo do filho, que é um ladrão e que se chama ZéMesmo, é muito mais uma brincadeira simbólica do que o Ciente. O Ciente, simplesmente, ajuda o personagem do pai a dizer certas coisas e a fazer certas coisas.
E qual é o simbolismo de ZéMesmo?
Daqui a uns anos as pessoas vão perceber. [risos]
As personagens são adjectivadas com alcunhas que demonstram traços físicos ou de personalidade. Porquê esta manipulação lexical/semântica?
Isso começou com “O Assobiador”, que é um livro já antigo, e achei interessante. Eu queria um livro em minúsculas porque dão uma certa fluidez no discurso e, ao mesmo tempo, uma certa confusão, que é Luanda. Então não me interessava muito estar preocupado com os pontos e os parágrafos, nem me interessava se a pessoa parava de ler, ou onde parava. Era isto. Essa estrutura gráfica era muito mais até para criar nos nomes uma coesão, pois não é preciso estar a separar e faz-me confusão. Gosto muito de ver os nomes todos juntos: HospitalMilitar, RádioNacional. É o fluxo de Luanda que não pára, ou pára com aquelas divisórias de capítulos que são pausas, na realidade.
No cinema [Os Transparentes], as imagens são dadas, mas os sons são feitos pelas pessoas. Qual o significado da parábola do cinema?
Não sei se tem um significado. Era muito mais um sonho. Acho isso muito bonito. Porquê? Porque no teatro, que é uma arte muito mais humana na hora de ver- no cinema está lá uma tela fria, a gente olha e vê- temos tudo ali:
A voz, a respiração, a falha, o suor do actor.
E eu pensei que aquilo era uma maneira de inventar uma interacção que o cinema não tem. Tu tiras o som, ou o JoãoDevagar [tira o som], e dizes: “Não, não, não… Aqui, neste cinema, cada um vai fazer o som”. Apelar às pessoas a participarem nesse filme. Claro que pode ser o filme da vida, o filme da cidade. No meu caso, ele ainda faz uma coisa “pior”; depois põe um filme pornográfico, à noite. Mesmo no filme pornográfico as pessoas é que fazem os sons. Tu podes optar por fazer o som do filme pornográfico, mas também podes optar por outra coisa, ou seja tu interferes no filme, usas a imagem, mas interferes. E esse é o poder de criação de cada um. Nós podemos interferir mesmo naquilo que aparentemente já está destinado para ser assim.
O som parece-me ser muito importante na tua prosa: jazz, o cinema, a situação (pág. 214) em que o carteiro fica “a ouvir a orquestra de sons brandos que o prédio lhe trazia”. O que pensas que a mistura de línguas e dialectos traz à tua literatura? Dedicas especial atenção na construção dessa melodia?Não, à melodia propriamente não diria. Os projectos, às vezes, conseguem dizer-me que ritmo é que terão; ou seja, “O Assobiador”, como é muito mais lírico, muito mais calmo, muito mais delicado, tem um tipo de linguagem. O Madrugadas [Quantas madrugadas tem a noite], que já é de uma Luanda muito mais dura e rústica, tem outro tipo. E isto varia um pouco porque há zonas ligeiramente poéticas e há zonas mais duras. Por exemplo, o livro tem diálogos muito longos, de 4 ou 5 páginas, que é o que os luandeses fazem muito. É obrigatório falar, não podemos estar calados mesmo que não tenhamos nada para dizer. Às vezes as pessoas diziam-me “Este diálogo está um bocado extenso”; eu dizia “Desculpa lá, mas é mesmo assim. Não é para ser uma perfeição literária; isto aqui é para reflectir um bocado sobre o que se está a viver em Luanda”. Tive essa delicadeza- claro que não é fácil - em tentar dizer “Aqui fala-se à toa. Aqui fala-se por falar”, por um lado. Por outro, é uma homenagem às pessoas que estão sempre a criar! O diálogo é o teatro que os luandeses fazem todos os dias! Esse teatro acontece muito por via do diálogo. Tu vês em qualquer conversa que a pessoa tem necessidade de criar a palavra ou a acção. Ele está a contar-te uma coisa que não aconteceu. Parece uma obrigação. Isso eu acho muito interessante!
Uma pessoa chega atrasada e conta-te uma história. Bom, está bem. É para se justificar. Mas é que não é só para se justificar! É porque ela acha mais interessante estar aqui cinco minutos contigo a inventar-te uma história do que simplesmente dizer-te a verdade, mas não é para se desculpar do atraso! É óbvio que chegou atrasada! Não! É porque já agora tem a oportunidade de te contar uma história inventada ou adaptada! Eu acho fantástico que as pessoas tenham a necessidade de teatralizar a própria realidade! O que os psicólogos dizem acerca disso? Podem dizer muita coisa por que o povo está sempre com necessidade aquilo que vive… Acho que isso pode dizer muito, não é? Quer efabular ou não está muito satisfeito com aquilo que vê. Ou os dois.
Esse “contar histórias”, essa oralidade ainda é base da passagem cultural?
Nas cidades, eu não sinto. Evidentemente que há espaços rurais que, felizmente, estão protegidos dessa invasão do ritmo tanto do tempo quanto do dinheiro. Ainda tem comunidades rurais- as chamadas comunidades étnicas- que preservam as suas tradições de maneira interessante: as festas da circuncisão, o modo como é pedido o casamento, o modo como os enterros são feitos, os cânticos para a colheita, os cânticos para apelar à chuva. Isso existe.
Agora vivo no Rio, mas sou de Luanda, e não tenho acesso às histórias ditas tradicionais.
Eu gosto que essas histórias sejam contadas por pessoas que as conhecem bem porque se não cai-se no exotismo literário e eu não tenho paciência nenhuma para isso.
O que achas que se perde ou que se ganha na passagem dessa oralidade para a escrita?
S
ão universos que às vezes se encontram, mas são universos diferentes. Há histórias que foram feitas, e ainda são usadas há milhares de anos, para serem contadas oralmente. O aproveitamento que podemos fazer dessas histórias, dando-lhes um tratamento literário, é outro caminho. Vale a pena? Vale, se o escritor for bom vale a pena, mas é preciso não esquecer que há histórias que fazem e farão parte da tradição oral. Talvez morram porque as comunidades rurais e o espaço rural do mundo está a terminar.
Foste para o Rio de Janeiro há quanto tempo?
Estou lá há 6 anos.
A passagem do interior para o exterior mudou a tua visão?
Deve ter mudado. Há até o efeito da distância, o efeito da saudade, que nos torna mais críticos ou nos torna mais brandos. Eu procuro ficar numa linha divisória entre a procura da clareza da distância sem querer a frieza do desconhecimento, de não estar lá. Não quero essa frieza. Não quero-me armar em que sou o maior crítico agora que não estou lá. É muita delicada a fronteira entre: critico, porque acho que tenho de criticar, mas eu não estou lá então que direito tenho em criticar?
É uma dúvida que me assombra todos os dias.
publicado por oplanetalivro às 14:01

29
Mar 14

Valério Romão, o lúcido


Valério Romão (n.1974, França) ilumina os lugares onde escondemos os nossos terrores. Ele dá-nos a oportunidade, através da sua criação literária, de observarmos os medos até então recalcados. A dor, não sendo um objectivo, é uma consequência da leitura.

Um dos aspectos mais interessantes da prosa de Valério Romão é o equilíbrio. Em momento algum, o autor cai num lirismo oco e inócuo. Com três livros publicados, “Facas” (Companhia das Ilhas), “Autismo” (Abysmo) e “O da Joana” (Abysmo), Valério Romão conquistou o respeito dos seus muitos leitores.

O Diário Digital teve a oportunidade de acompanhar o escritor durante a sua primeira participação nas “Correntes d`Escritas”, conforme os leitores do Diário Digital puderam constatar.

A entrevista ao autor impõe-se como imprescindível na descodificação do pensamento “valeriano”

DD- “Autismo” e “O da Joana” fazem parte de um conjunto intitulado “Paternidades Falhadas”. Onde é que elas falharam, se é que falharam?
VR- A noção de paternidades falhadas não tem tanto a ver com a falha no sentido de ser mau pai, ou má mãe, mas sim com uma incompletude na assunção de maternidade ou paternidade. No caso do “Autismo”, não se chega a ser pai ou mãe por completo. Então, a falha não está no lado da execução diária da paternidade, mas está no facto de, no caso do “Autismo”, a paternidade ser incompleta porque a criança não é igual às outras. A paternidade não se desenvolve da mesma forma, não é exactamente a mesma coisa do que a paternidade normal. No caso de “O da Joana”, a maternidade da Joana começa muito antes da gravidez- é uma ideia, um projecto, uma razão de vida- e não sobrevive ao choque com a realidade, que é a morte do filho e da ideia que orienta a vida dela. Neste caso, a falha da maternidade não é uma falha que se lhe possa ser imputada, mas é uma coisa que ao ser amputada também acaba por provocar uma derrocada na própria existência dela porque é uma ideia reguladora e fundamental da sua existência.

“Autismo” nasce de uma experiência pessoal. Serviste-te do teu blogue [http://trabalhodecasa.wordpress.com/], onde relatas a tua experiência, como base para “Autismo”?
Não. Servi-me da minha experiência, mas … ainda que de certo modo, na verdade, um escritor se sirva sempre da sua experiência pessoal, mesmo quando o livro é menos pessoal e a sua presença enquanto pessoa está mais diluída; ou seja, a escrita é o resultado de uma experiência no encontro com qualquer coisa. E é o resultado catalisado de várias experiências nessa experiência da escrita. O “Autismo”, claro, tem essa componente de autobiografia em que o que acontece é como se tu pegasses num calendário, onde tivesses uma agenda, umas datas, uns acontecimentos, e aquilo fosse uma estrutura objectiva com poucas anotações e depois construísses tudo o resto à volta do que era importante. A parte biográfica, sendo muito forte,  não é muito presente. São ideias de experiências que ia tendo que depois são catalisadas em estruturas radicalmente diferentes.

Apesar de haver conexões, uma situação é a tua experiência pessoal, outra situação é a ficção. São dois mundos diferentes?
Sim, sim… Claro que há pontos de ligação em “O da Joana”, em “Facas”, onde quer que eu escreva, porque a escrita tem um cunho da pessoa que o faz; é subjectivista e intensamente pessoal. Mesmo que isso se note mais ou menos, mesmo que seja uma escrita mais borgeana, mais para o lado do intelecto e do jogo mental, nota-se que há exposição.

Em “Autismo” há várias perspectivas narrativas, mas em “O da Joana” focaste essencialmente o papel dela. Como é que foi essa passagem de algo pessoal para o papel da mulher?
Quando eu comecei a escrever “O da Joana”, eu sabia que [o livro] ia ser uma mulher e que iria ser aquela experiência. A minha primeira preocupação era que não falhasse demasiado e que conseguisse entrar na personagem, ainda que “a roupa ficasse curta”, pois temos estruturas diferentes: eu sou homem, ela é mulher. Que não fosse grotesco. Nesse sentido, ia dando o texto a ler a mulheres amigas que me asseguravam que não estava a descambar.

De forma a ser credível…
Sim, sim, se era credível. Eu ia relatar uma experiência muito intensa de um universo que ainda hoje, nesta altura da contemporaneidade com a igualdade de géneros e direitos, é muito feminino e que os homens não percebem. O corpo masculino é o limite da possibilidade da sua experiência. Não tem aquele órgão.  Pode perceber de uma forma mediada, mas não pode perceber como a mulher percebe. Este era um jogo arriscado: entrar nesse corpo, fingir que se tem esse órgão e, no fundo, ser guiado por essa voz.
Por que te interessas tanto pelo “mecanismo da dor”?
A dor é uma consequência; não é a parte que me interessa mais. A parte que me interessa mais é a parte imediatamente anterior à dor. É a parte em que existe conflito, choque, sonho. É verdade que nos meus livros as coisas têm corrido mal às personagens. Isso provoca dor nas personagens e também no leitor, provavelmente, mas não é o leitmotiv. Eu vou à procura de outra coisa; vou à procura de uma experiência que possa ser reconduzida com honestidade, justiça e inteireza. Por ser como sou, como sou constituído, é mais empática uma experiência que tenha um registo trágico do que uma experiência que tenha um registo cómico, ou positivo. Acho que há histórias que merecem ser contadas, em primeiro lugar, e sobretudo que há sítios da casa que não estão iluminados. Se eu já passei por eles, se já os vi, não posso ignorar que os vi.

Pões as personagens numa experiência radical para ver como elas se comportam?
Gosto de pensar que posso ter uma espécie de quarto, onde  intensifico a pressão e depois vejo qual é o resultado. O que vem acima, normalmente, é o melhor ou pior de cada um de nós. Interessa-me escrever nessa amplitude, nessa frequência de onda, nos extremos. É que os extremos podem ser o prazer, a dor, a mortalidade, a fragilidade, o êxtase. Há um humor discreto dentro dos meus livros, ainda que isso não os tenha povoado ou respirado muito. Há um bocado de toda a vida dentro dos meus livros. Isso interessa-me.

Vai ser uma trilogia, certo?
Sim.

Deu-me a sensação nestes dois livros [“Autismo” e “O da Joana”] -talvez errada- de que há uma espécie de niilismo, de destruição. O 3º será uma parte de reconstrução? Será no mesmo registo?
Eu não concordo com a tua leitura... São experiências de vida, por mais duras que sejam. Eu não superei a realidade; a realidade supera-nos sempre. São experiências que merecem ser contadas. Nós estamos numa altura da nossa vida enquanto pessoas neste planeta e neste tempo presente em que os registos, normalmente, oscilam- com uma galeria de honrosas excepções- entre a “superficialidade banal”, que tem a ver com aquilo a que se chama momento de entretenimento, e a “violência gratuita”, que tem a ver com aquilo a que se chama também entretenimento, mas que é um horror que tem mais a ver com a paranóia do que com a neurose. Não te mostra para tu inventares os teus próprios medos. E os meus livros não são isso. Não são nem gratuitos nem feitos para provocar essa sensação. São reconduções de experiências que são absolutamente reais, no sentido de que podem ter acontecido, ou são passíveis de acontecer. As experiências traumáticas não podem ser anestesiadas, amputadas, contadas de outra forma, mas não me interessa o choque. Não é para isso que eu escrevo.

Foges do que é inócuo...
Sim, porque não está na minha natureza. Há coisas que não me interessam por natureza, por eu ser assim.
O que é o inferno? A Sala de Espera, tanto num como noutro romance, ou o diagnóstico, o conhecimento? 
Em “Autismo”, o inferno é a espera. Não só a espera antes do diagnóstico. O livro tem a parte do diagnóstico, que é feita de forma surrealista porque o médico é “sui generis”, mas acontece que o diagnóstico em “Autismo” não é apaziguador. E porquê? Porque subsiste a dúvida de o autismo ser aquele guarda-chuva sob o qual cabem imensas condições, variabilidades, pessoas que falam, pessoas que não falam, pessoas que precisam de assistência para o resto da vida, outras que se desenrascam bem e arranjam emprego… O que subsiste depois do diagnóstico continua a ser a dúvida porque não há uma máquina do tempo que permita a estes dois pais acelerarem, chegarem aos 20 anos [do filho], e perceberem se ele se vai desenrascar. O inferno é sempre a espera. Aliás, eles estão sempre na sala de espera. E é também por isso que a consulta é ridícula. Não acrescenta nada. Dá um nome à coisa, mas esse nome não tem uma qualidade positiva. Não é uma baliza, não é um conceito, apesar de ele fazer aquele traçado entre o Asperger e o autista. É ridículo, mas é mesmo assim. É ridículo.

Há medicina e charlatanismo de algumas medicinas alternativas, mas quase nada de religião em Rogério e na sua mulher, quando é uma via pela qual muita gente opta. A que se deve esta ausência? 
É porque neste caso estas personagens não têm esse apelo. Se tivessem tido, provavelmente haveria qualquer coisa no livro em que isso se notava. Mas, de facto, não têm. São muito contemporâneos, são muito irónicos, cínicos, não acreditam em nada.
Por falar em Charlatanismo e medicina, o capítulo com mais ironia é o do “Fabuloso Dr. Miguel Relvas”. O fabuloso falava com os pacientes, que estavam “enterrados” em pufes. Esta personagem simboliza a falência da medicina?
No fundo, penso que simboliza a incapacidade de a ciência, apesar de a reverenciarmos, resolver alguns problemas. Ainda não tem essa capacidade.  Poderá vir a ter. No caso do autismo, não tem essa capacidade de resolvê-lo. Por outra parte, o facto de estarmos formatados para acreditar que a ciência resolve tudo faz com que a ciência, ou a medicina, quando encontra qualquer coisa que não possa resolver tenha de se comportar como se pudesse resolver. Então, o que acontece é que essa figura é trágica e cómica, ao mesmo tempo, porque é portadora de um curso de não-sei-quantos anos… o internato, depois a especialidade… anda a estudar  vida toda para começar a estudar, depois estuda mais 10 anos, começa a praticar, e vai para um emprego numa área e, basicamente, não pode fazer grande coisa. Isso é trágico!

Não pode admitir que, na verdade, não está ali para fazer grande coisa porque o desenvolvimento da criança não depende, em última análise, de si, porque por mais livros que leia não sabe prever como é que aquela criança se vai desenvolver, etc. As ideias acerca do assunto mudam e são revistas constantemente, o diagnóstico em sim não é clínico, mas comportamental. Há um mundo de incertezas num curso que te prepara para a certeza. Isto é trágico. A personagem em si é trágica.
E o nome: Miguel Relvas [político do PSD]? Foi propositado?
Não foi propositado. [risos] A sério…

Faço-te a mesma pergunta que fiz a José Ovejero, pois parece-me pertinente: A escrita é psicanálise?
Serve-me sobretudo de válvula de escape numa bomba de pressão. Serve-me para apaziguar. Não tem o efeito de autoconhecimento. Se bem que os leitores e os críticos interessados podem… diagnosticar-me pelos meus textos. Não sei qual seria o resultado disso… É apenas mais um jogo que resulta do universo da literatura.

Um pormenor: Porquê “Urgê cias”?
Quando estava a imaginar o sítio, estava a imaginar a placa e na placa apareceu sem o “N” e acabei por escrever assim.

Em “Autismo”, a relação do pai com o filho é diferente da relação da mãe com o filho. Pensas que a relação maternal é mais vinculativa do que a paternal?
Na minha opinião, sim. Sobretudo se for um filho, e não uma filha.

Qual a diferença?
A diferença sexual.

Complexo de Édipo?
As famílias que eu encontro têm a noção de que as mães têm uma relação diferente com os filhos. Primeiro porque educam as filhas no sentido de prepará-las para a função de serem mulheres e não fazem isso com os filhos porque não estão dentro desse território como os homens estão e vice-versa. Há, obviamente, uma relação sexual, que não tem a ver com a sexualidade explícita, mas de sexualidade implícita, e, se calhar, aí sim, mais no território freudiano, entre as mães e os filhos e entre os pais e as filhas. Parece mais ou menos aceite e óbvio, se bem que não falado.

Há uma situação paralela com os sogros de Rogério, em “Autismo”. É uma relação também nada saudável. O marido despreza a mulher. Não acreditas no vínculo entre casal?
Claro que sim! Este casal é que correu muito mal! Aliás, sobre o casal desta história, a minha sensação como escritor que acaba um livro é: “se eles não tivessem tido este filho, se calhar ainda estavam juntos”. Essa é a minha sensação, mas no caso dos pais dela, aquela relação já tinha começado e acabado há muito tempo. O que se mantinha ali era uma coexistência nem sempre pacífica. Um modo de ser casal que não tem que ver com o amor, mas com o hábito; não tem a ver com o gosto, mas com o interesse. Simbolizam, no fundo, uma geração - duas gerações anteriores à nossa- em que as pessoas não se podiam separar porque eram mal vistas, em que as pessoas não podiam fazer uma série de coisas porque havia um peso muito grande de repressão a nível moral, a nível do que era o costume, ou habitual. É como se obrigasses duas pessoas a estar num quarto o resto da vida mesmo sem elas quererem. As coisas mais angustiantes acontecem.
Aqueles 3 - pais mais o filho - acabaram por ser 3 ilhas. Vão se separando…
Sim, porque uma relação familiar triangular com um filho constrói-se com setas bidireccionais entre três polos. Naquele caso, a relação dos pais era mediada pelo filho. Sempre. O filho era o polo à volta do qual tudo gravitava. Obviamente que isto vai fazendo com que a relação deixe de existir. Chega-se a um ponto a partir do qual o superior interesse do filho põe em causa o fundamento da relação do casal, dado exercer uma gravidade que esmaga ou nulifica tudo o resto. Deste modo, um diz "temos de fazer tudo pelo miúdo" e o outro não pode em causa alguma pôr em causa esse credo, sob pena de ser considerado egoísta. Não há saída. Basicamente, é uma questão de culpa moral. Estão ainda num processo em que não se querem dar ao luxo de perder qualquer coisa que possa mudar a vida daquela criança. Nesse sentido, a atenção tem de ser total e não pode haver espaço para mais nada. Qualquer distracção é encarada como culpa pelo próprio que se distrai e culpabilizado pelo outro que percebe a distracção. E claro que uma relação assim não sobrevive.
Rogério tenta socorrer-se através do pai. É a ele a quem recorre. Há alguma avaliação Bem/Mal, por ti, à derradeira postura de Rogério?
Não, não gosto de ver as coisas assim. Se virmos as coisas assim, limitamos a história. Teríamos que reavaliá-lo sob uma perspectiva moral. Acho que as pessoas chegam aos limites e podem fazer coisas de incontável maldade que não fariam noutro contexto. Sob pressão, as coisas podem ser muito violentas. Não quer dizer que as pessoas sejam assim. Há aqueles casos em que caem os aviões e as pessoas ficam duas semanas ou dois meses num sítio qualquer onde um morre e depois os outros começam a comê-lo.
O espaço em que o leitor é “fechado” é no da cabeça do/a personagem. Por que escolhes a acção interior em detrimento da acção diacrónica, a acção exterior?
Penso que com o tempo vou começar a fazer o inverso. É mais fácil explicar o que se está a passar do que montar o cenário para acontecer coisas a partir das quais tu percebas o que se está a passar. O cinema é um bom exemplo. Tu não tens uma câmara na cabeça das pessoas. Tens de construir coisas que explicam o que essas pessoas estão a sentir. A literatura é mais fácil, pois podes ir directamente à cabeça das pessoas. Não precisas de montar nada. Mas eu acho que o mecanismo do cinema é mais avançado porque podes continuar a dizer a mesma coisa, a mostrar a cabeça das pessoas, mas adensas o mistério e deixas mais oportunidades.
Como resolves o assunto na composição das tuas peças de teatro? Dás mais dados cenográficos?
Sou muito minimalista. Não percebo muito de cenografia, nem de direcção. Não me meto muito nessas competências, a não ser que tenha uma imagem muito clara na minha cabeça de qualquer coisa fundamental. Normalmente, não tenho esse tipo de visualização, nem tenho noção da idade, da cor do cabelo. Não me interessa muito.
A Peça de teatro “ A Mala” assenta também mais na psicologia do que no enredo?
“A Mala” é uma peça que não é só teatro; também tem dança. É uma bailarina com quem trabalhei que interpreta. Não é uma dança clássica. Enquanto ela fala vai fazendo vários gestos repetitivos e a própria cadência do texto tem a ver com a cadência do movimento dela. São coisas que se completam.

“A Mala” não é uma peça de teatro clássica. É uma espécie de monólogo em vários registos.
É uma série de discursos à volta do próprio conceito de fazer arte, de fazer arte em palco; é sobre a dificuldade, a frustração e o que é que se tem de fazer para que a arte aconteça.
“Facas” surge depois de “O da Joana”, mas foi escrito muito antes, não foi?
Antes, sim.
“Facas” é o escritor a “fazer a mão”?
Riço Direitinho chamou-lhe isso. Eu acho que vale um bocadinho mais do que isso. No fundo, são coisas que eu gosto de fazer. Gosto de unidades temáticas: “Facas”, “Paternidades Falhadas”, “Gatos”… Nesse sentido, “Facas” é: tenho uma motivação, tenho uma imagem e escrevo à volta disto. Gosto depois dos números: 10 histórias sobre facas; 3 histórias sobre…
Parece organizado; parece orgânico.
Um pai cria expectativas ao ter um filho. Achas que o amor incondicional, seja como pai, mãe, ou como indivíduo, simplesmente, é saber ultrapassar essas expectativas e aceitar uma outra pessoa como ela é sem tentar mudá-la?
Acho que isso não existe. A não ser em santos e em pessoas como uma capacidade talvez até não-humana de aceitação.
O amor incondicional de mãe para filho é para mim uma das poucas realidades nas quais eu continuo a acreditar que são realmente meritórias da maior devoção. É um milagre. É uma coisa tão bela, tão indescritível…

Fotografia de Alfredo Cunha
publicado por oplanetalivro às 15:23

24
Mar 14


Adriana Calcanhoto tem a candura na sua voz. O supérfluo não cabe na sua musicalidade. Ela é feita de poesia. E a poesia é o paraíso da palavra

No Festival Literário da Madeira (FLM), durante o showcase dado pela autora a bordo do Cruzeiro MSC Armonia, o tempo pousou nas escarpas madeirenses, e a água atlântica vibrou com os acordes do violão brasileiro. A primeira música, “Olhos de onda”, dá o nome ao concerto do próximo dia 21 no Centro de Congressos – Casino da Madeira, e, devido às circunstâncias da sua criação, inicia um novo ciclo musical. Tudo começa com uma mão magoada, como explica Adriana Calcanhotto: 

“Eu sou um pouco assim, de limões fazer limonadas. Precisei de operar e de fazer a tournée inteira do 'Micróbio do samba' com o Davi Moraes no meu posto de violonista. Nesse processo todo de terminar a tournée, operar e fazer a fisioterapia passou-se um ano e meio sem que eu tocasse violão. Depois, voltei a tocar devagar, tudo muito leve.Recebi um convite da Culturgest, no aniversário da sala, para fazer a mesma coisa que eu havia feito há 20 anos, que era um show a solo de voz e guitarra, como na primeira vez que eu me apresentei em Lisboa. Eu não tinha um concerto preparado, mas achei óptimo. Isso era uma meta. E nos exercícios já de guitarra eu compus essa música.”
Adriana Calcanhoto tem a candura na sua voz. O supérfluo não cabe na sua musicalidade. Ela é feita de poesia. E a poesia é o paraíso da palavra. Há muito de evangelizador ou de pregador num intérprete musical. Ele espalha a mensagem, mas Adriana não se limita a essa característica.

“A minha ideia é mais a transmissão da língua portuguesa do que de uma mensagem. Não persigo uma mensagem. Gosto de transmitir poetas e poemas. E isso existia na Grécia – a poesia era transmitida através de música- depois isso se deu no sec XII, a partir dos trovadores provençais, e deu-se no Brasil de uma forma única, que é a transmissão de uma poesia de alta qualidade através da música popular.”

A poesia é terra de toda a gente, não sendo detida por ninguém. É território literário, oral ou escrito.

A autora brasileira lançou em 2013, no Brasil, uma antologia de autores brasileiros destinada a um público mais jovem. Numa época dominada pela internet, Adriana Calcanhotto fala em “abrir uma porta para o amor aos livros. A escrita tem muitas coisas, principalmente na língua portuguesa, ( você vê muito através da poesia concreta) em que se ouve de uma maneira, mas lendo ela tem um sentido duplo ou triplo.”

Sobre “Antologia ilustrada da poesia brasileira: para crianças de qualquer idade” (Casa da Palavra), a sua preocupação foi com “a ordem cronológica para sentir as influências de geração em geração, de um poeta no outro, as rupturas e a volta”.

“Eu procurava esse livro. Talvez para dar de presente para as crianças ou aos filhos dos amigos, e eu como criança entrava nas livrarias e procurava uma antologia dos nossos poetas em poesias acessíveis às crianças, não necessariamente escritos para as crianças. Fernando Pessoa dizia 'todo o poema escrito para crianças não deveria ser escrito por adultos'.

Eu sentia falta disso. Nas poucas antologias que eu encontrei, a selecção era feita por assunto. Como a poesia não tem assunto, eu entendi que a ordem cronológica ajudava mais a qualquer pessoa que leia a antologia.

Em relação aos desenhos, os desenhos me relaxam do mundo dos sons, tanto da música como da palavra.”

A autora tem a esperança de que seja possível ensinar estética literária/musical.

“Se eu achar que não, nada do que eu faço tem motivo. Eu vivo para isso. Se uma única pessoa, se uma única criança, for atingida pela literatura através de mim, a minha missão está cumprida.”

Ao ouvi-la cantar em português do Brasil, num navio internacional atracado na Madeira, lembrei-me dos versos de Mário Quintana: “O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar. Quem a encontra salva-se a si mesmo”. E a Adriana procura salvação na poesia que lê? “Diariamente”, respondeu.
publicado por oplanetalivro às 08:29

11
Mar 14



José Ovejero (n. Madrid 1958) esteve presente nas “Correntes d`Escritas 2014”, na Póvoa de Varzim, para apresentar o seu romance “A Invenção do Amor” (Alfaguara), recentemente galardoado com o “Prémio Alfaguara 2013”.
Autor de romances, contos, poesia, teatro, livros de viagens e ensaios, José Ovejero tem sido reconhecido com diversos prémios:
Recebeu o prémio “Ciudad de Irún” de poesia pelo seu livro “Bíografia del explorador” (1993); “Grandes Viajeros” de livros de viagens por “China para hipocondríacos” (1998); “Primavera” de novela devido a “Las vidas ajenas” (2005); “Gomez de la Serna” por “La comédia salvaje” (2011); “Anagrama de Ensayo” por “La Ética de la crueldad” (2012); e, finalmente, o já mencionado Alfaguara por “A invenção do amor”
O Diário Digital teve a oportunidade de conversar com o autor madrileno a propósito do romance premiado com o Alfaguara.
Apesar de visivelmente cansado devido a problemas com os voos (o autor não veio de Madrid), José Ovejero mostrou-se muito disponível e demonstrou a sua capacidade de análise e de provocação intelectual.


“Muita gente dá-se conta de que está vivendo de uma maneira que não queria viver, e a crise não é essa. A crise é a de que não se atrevem a mudá-la.”



DD-  “A invenção do amor” é o realismo do amor contra o romantismo/idealismo do amor?

JO- Sim… Comecei a escrever porque gostei da possibilidade de uma história, dessa chamada nocturna, dessa confusão. O que se passou é que, enquanto fui escrevendo e desenvolvendo a personagem, me dei conta de que iria ser uma história de amor. No entanto, era uma história em que eu queria evitar qualquer tipo de tópico romântico, em que se ouve essas coisas de “não há segredos entre nós”, de toda essa idealização de relações que não me parecem muito interessantes, hoje em dia, como tema literário. Interessava-me muito mais falar do amor desde a perspectiva de alguém que não crê no amor, mas em que o amor não deixa de ser algo necessário, também por razões biológicas. É tão inevitável que há uma construção literária ao redor do amor. É o mesmo em relação à morte, ou à verdade e sobre tantos outros temas. A literatura indaga sobre essas coisas. Eu queria uma história realista e, no final, o paralógico é que esse realismo tem lugar através de uma história em que alguém inventa um amor impossível. Parece-me que os amores impossíveis, em literatura, têm sido muito românticos, muito idealizados. Neste, eu queria evitar esse romantismo. No entanto, digo-te que embora pareça um amor impossível é muito mais real do que muitos amores contados de uma maneira romântica.



É complexa a relação amorosa entre dois seres, não é?

Sim, porque abarca quase todas as facetas do ser humano. No amor está a relação sexual, está também a relação de protecção, está a relação de rivalidade, está tudo o que tem a ver com o próprio indivíduo, como se delimita em frente ao outro, que espaço protege numa relação. Uma relação amorosa é uma disputa. Pode ser mais ou menos amigável, mas é também uma maneira de marcar limites: Onde acabas tu, onde começa o outro… A simbiose romântica não existe. Somente existe em alguns momentos muito concretos. Toda a história de uma relação tem que ver com a história dos seus limites. Quando nos enamoramos, quase não pomos limites. Quase parece que podemos dar tudo ao outro, mas é mentira. Podemos fingir que damos tudo, mas chega um momento em que dizes “Não, isto não quero dar, ou isto não quero prescindir, etc.”. Abarca tudo, além do mais vai condicionado por uma tradição muito complexa sobre o que se sabe de amor, sobre como deve ser o amor, e isso é um dos piores venenos para as relações amorosas. A ideia de como deve ser.
A fidelidade: Há que ser fiel. É como deve ser uma relação amorosa. Porquê? Pode haver relações amorosas em que não há fidelidade. Há milhares de possibilidades, e cada casal vive-as de maneira distinta, mas frequentemente com a culpa de que, na realidade, teria de ser de outra maneira. E não. Não teria de ser de outra maneira.


Quando nos enamoramos e pomos esses limites, não nos estamos a reinventar? Não é uma ficção?

Claro que é! Nós somos ilimitados. Não só queremos dar o melhor de nós mesmos, como também damos o que somos. E o outro faz exactamente o mesmo. Por exemplo, a relação que dura leva a essa fase do realismo de renegociação. Na realidade, tudo o que havíamos prometido, explicita ou implicitamente, não pode durar toda a vida. Temos que renegociar os termos. Isto soa a muito cínico, mas não é. Penso que é o contrário. É o tentar compreender as necessidades de cada um dentro de um casal.

Com “ A invenção do amor” tenta confrontar as hipocrisias do leitor?

Sim, sim... Como eu disse, ao começar eu não tinha um objectivo claro, mas conforme se vai desenvolvendo uma personagem que faz e diz o contrário do que se costuma dizer na temática amorosa, fiquei muito consciente de que estava provocando o leitor, no sentindo útil da provocação que é obrigá-lo a pensar, a situar-se, a dizer “Como vivo eu isto?”
Este tipo de coisas em que dizes: “Creio? Não creio? Creio, mas não gosto? Não gosto e por isso não quero crer?” Há um diálogo bastante intenso com o leitor. E, pelo que têm dito os leitores, eles o vêem assim também, como uma espécie de confrontação.

A pluralidade de perspectivas sobre Clara tem o objectivo de “capturar” as diferentes personalidades de Clara?

Mais do que capturar, creio que o que estou mostrando é que cada um de nós é uma multitude. Depende de com quem estamos, de que situação, etc. etc... Parece-me evidente dizer que nós somos uma construção em que elegemos certos aspectos e deixamos outros de lado. Ao mesmo tempo, necessitava literariamente porque Samuel está a passar-se por amante de Clara defronte de gente que conhecia Clara. Se não nos dessemos conta de que uma pessoa é muitas pessoas, obviamente que a impostura de Samuel duraria pouco. Há momentos em que Samuel diz algo de Clara e a irmã diz “Clara não era assim!” E ele responde “Comigo, sim!”.
Todos sabemos que não conhecemos os outros. Conhecemos só uma parte limitada dos outros.
E eu gostava desta construção caleidoscópica desta personagem central e que, no entanto, não está. Esse é um dos desafios do romance: dar peso a uma personagem que nunca aparece, na realidade.
Samuel, de “A invenção do amor”, é a antítese de Neftalí Larraga, em “Añoranza del héroe”?

Sim porque Neftalí, personagem principal de “Añoranza del héroe”, mente e se mente. Samuel se mente muito menos; mente aos outros. Ele tem uma visão muito lúcida de si mesmo enquanto Neftalí se inventa a si mesmo, se crê a si mesmo como personagem idealizado, idealiza a sua relação amorosa e acaba fazendo todo o mundo infeliz. Ele está enganado, está criando uma ficção sobre a qual não se pode construir nada. Há ficções que são construtivas e outras destrutivas. Samuel utiliza essa ficção para chegar a coisas que são verdade. Neftalí utiliza a ficção para ocultar aquilo que não encaixa com a sua imagem ideal.

Somos o conjunto de interpretações que os outros fazem de nós?

Essa é uma parte. Afinal, o que é a identidade? A identidade tem a ver com a nossa própria percepção, com a autoconsciência, mas também com a percepção que os outros têm de nós. Um americano pode não estar de acordo com a política do seu governo, pode aborrecer-se com muitas coisas dos Estados Unidos, mas os demais o vêem como um americano e identificam-no com determinados comportamentos.
Tu podes querer dizer “Não, eu não sou isso.” Sim, sinto muito, tu és também isso. Tu és a própria percepção e a percepção dos demais.

A nossa perspectiva sobre o que vemos é, de certa forma, uma criação ficcional, também?

Claro, não conhecemos nada. No final, a discussão sobre se a verdade existe ou não, é uma discussão um pouco banal porque é indiferente se existe, ou não. Não a vamos conhecer. Só podemos conhecer fragmentos que são cambiantes, não são estáveis. Não tem muito interesse se existe a verdade ou não. É como perguntar se existe a cor roxa. Não existe. É indiferente. O que existe é que o nosso olho está feito para determinadas cores. O de outros animais não. Há animais que não poderiam entrar na discussão de se existe o roxo ou não.
Isso não significa que tudo seja relativo ou arbitrário. Só podemos viver num determinado contexto e para o entender temos que chegar a determinados acordos sobre a realidade. Esses acordos, com tempo, irão variando.

A escrita é um exercício de psicanálise para o autor?

[risos] Não, não…Eu não entendo a escrita como uma forma de “autocurativo” nem sequer de uma forma de aprofundamento psicológico. No entanto, as duas coisas são parte da escrita.
Na escrita há um prazer estético: o prazer da frase bem construída, o prazer do ritmo. Gosto muito de trabalhar no romance em que as frases têm ritmo. É muito mais amplo do que puramente psicológico. Também tem a parte sociológica. As minhas personagens não vivem numa “bolha”; vivem num contexto social, político e histórico. Tudo isso existe no romance. Sim, pode haver parte de “autocurativo”, pode haver parte de aprofundamento psicológico, mas são só fragmentos do literário.

No livro, Samuel tem pouco mais de 40 anos. Ele tem uma crise, pois faz uma avaliação negativa desses 40 anos. É uma avaliação somente individual ou posso dizer que é uma avaliação do nível nacional?

Samuel, como tanta gente da sua idade, chega à situação em que te dás conta de que tomas algumas decisões na tua vida que levaram a determinado lugar e que frequentemente não é o lugar onde querias estar.
Ele não está mal! Está cómodo e confortável. Mas se pensas no que serias ser, fazer e significar, como querias viver, quando eras jovem, depressa te dás conta de que chegaste a outro sítio.
Muita gente dá-se conta de que está vivendo de uma maneira que não queria viver, e a crise não é essa. A crise é a de que não se atrevem a mudá-la.
Há determinada segurança, expectativas dos outros, hábitos e ficas com essa forma não feliz de viver. Na sociedade passa-se o mesmo. Penso que é muito claro na sociedade espanhola onde, durante anos, nós- espanhóis- tivemos a “arrogância” de jovens, pois acreditávamos que iriamos transformar o mundo, e que seriamos os protagonistas de toda a história. Espanha crescia, era dinâmica, era aberta… ou parecia que crescia, porque nos demos conta de estávamos crescendo sobre bases económicas muito pouco estáveis e que eramos muito menos democráticos do que havíamos pensado. Descobrimos isso com a corrupção, com a falta de independência do sistema policial, etc. Então chegámos à situação em que olhámos para trás e dissemos “Nós iriamos ser outra coisa, nós iriamos ser muito melhor, e somos isto: Este país sem esperança, este país apodrecido”. E agora a questão é a mesma. O que se vai passar? Vamos seguir igual para não perder a nossa segurança, ou vamos ser capazes de inventar? Samuel inventa o amor. Vamos ser capazes de inventar uma forma distinta de democracia? Há movimentos, agora mesmo, nas ruas que pensam que sim, que podemos inventá-la; há o pressuposto de que não vão chegar ao que querem, mas entre onde estamos e onde querem chegar há muitos pontos intermédios que podem ser interessantes.



José Ovejero sai transformado no fim do livro, tal qual Samuel no fim da história?

Sim, claro…Ao longo do romance, vou escrevendo coisas que não pensei previamente. A literatura faz-me pensar profundamente nos planos intelectual e emocional, que são parte de todo o pensamento sério. Tão pouco o intelecto vive fora de um contexto, das emoções. Creio que aprendi escrevendo livros sobre as próprias relações, sobre a minha maneira de me situar nesta sociedade, sobre a “bolha” em que eu também vivo como Samuel, sobre esse isolamento em que Samuel se conforma porque é seguro. É um romance que me fez pensar sobre mim mesmo.

 Tem obra premiada em Ensaios e em Ficção.Como decide se determinado tema vai ser tratado como ensaio ou como ficção?
Não há uma decisão. É mais uma percepção de como posso afrontar um determinado tema. No ensaio que escrevi antes deste livro, “La Ética de la Crueldad”, começo a aproximar-me desse tema a partir de um romance que eu escrevi, “La Comédia Salvaje”, que é um livro muito divertido e muito brutal e cruel. Então comecei a pensar desde fora da ficção porque utilizo a crueldade. Porque sou tão violento neste romance? Que função tem a violência?
Os mecanismos de pensamento são distintos. O ensaio é pensar desde fora. A ficção é pensar desde dentro, meteres-te nas emoções e utilizá-las como trampolim, também, para a reflexão. Tem a ver com uma abordagem inicial de aproximação a um tema.

Samuel tem uma vida quase vazia. Inventar uma história enche esse vazio.
Agora é uma provocação: Um escritor é um ser vazio se não escrever?

[risos] Há muita gente que utiliza a escrita como um sucedâneo da vida. E diz que são mais importantes os livros do que a vida. Para mim, não. Para mim o importante é a vida. A literatura é só uma parte dela.
Há leitores que utilizam a ficção para escapar, para evadir-se, para viver fora de suas vidas.
Eu creio que a literatura interessante é aquela que uma e outra vez devolve-te à tua vida; diz-te “ isto é uma representação, não é a verdade, não podes ficar a viver aqui. Depois de ler, tens de regressar aonde estavas”.
Por isso, não creio que a literatura encha um vazio, embora seja verdade que em alguns casos a utilizamos para viver emoções que não nos atrevemos a viver de verdade na vida. É como os filmes de terror. Por que vemos os filmes de terror? Porque são seguros. Fazem muito medo, mas não vai acontecer nada connosco. Os filmes de terror interessantes seriam aqueles que, depois de nós os vermos, nos obrigariam a ir a um lugar obscuro. Arriscando-nos de verdade. Essa é a relação ideal entre a literatura e a vida.

Continua a dar cursos de escrita criativa através da internet?

Sim, mas agora interrompi devido ao Prémio Alfaguara [A invenção do amor]. Como passei um ano a viajar, tive que interromper todos os outros trabalhos.

É possível fabricar um escritor?

Não! E eu tão pouco o prometo aos meus alunos. Eu não lhes digo “vou fazer de vocês escritores”. O que pode fazer um curso de escrita? Primeiro: O que é um escritor? É alguém que tem uma visão original do mundo, e original é uma maneira de dizer profunda, e é capaz de vê-lo como outros não o vêem e que tem as ferramentas para contar. Eu posso ajudar com as ferramentas. A visão profunda do mundo tem a ver com a tua história, com a tua psicologia, empatia, e tantas coisas…
Às vezes é como um ciclo vicioso: se não tenho as ferramentas, não posso dizer coisas complexas; se só tenho ferramentas simples, não posso construir algo complexo. Mas se eu te dou ferramentas mais complexas, podes chegar a formas de pensamento também mais complexas. Tem de haver um fundo que eu não posso cambiar ou interferir.
  

Mário Rufino
Póvoa de Varzim, 22 de Fevereiro 2014



publicado por oplanetalivro às 08:22

02
Out 13




Um dos autores mais emblemáticos da nova geração, Valter Hugo Mãe está de regresso com «A Desumanização», editado pela Porto Editora, uma obra onde a sensibilidade encontra-se ao virar de cada página. Para o escritor nortenho, «no lugar de Deus deve-se colocar a Arte».
Valter Hugo Mãe é um escritor diferente. E isso nota-se na sua escrita, onde as frases ganham um relevo poético. O autor garante que os os livros não o correspondem, mas é impossível não «vermos» VHM nas páginas das suas obras. Como afirma nesta entrevista, Valter Hugo Mãe pretende apenas «proporcionar a felicidade possível aos que amo». Os leitores agradecem tanto amor…

O que é desumanizar?
No contexto do meu novo romance, trata-se de perder sensibilidade, robustecer, não permitir a vulnerabilidade para persistir sendo gente. Para não perecer.

No seu novo livro, mudou de contexto, viajou para a Islândia, mas levou os seus demónios. O que seria diferente se o tivesse escrito em Portugal?

Devo ter levado parte dos meus demónios mas a Islândia é um reduto de fantasias. Um espaço de tradições esdrúxulas, histórias macabras e encantadoras que nunca abdicaram, sobretudo, da permissividade e da intensa imaginação. Vejo a Islândia como uma terra na qual os sonhos e os pesadelos, a euforia e o medo convivem numa inusitada mistura. Sem a Islândia creio que poderia falar dos temas mas nunca chegaria à mesma plasticidade. A Islândia confere um imaginário distinto, como se a estética fosse necessariamente afinada a partir do seu ambiente.

A razão da minha pergunta deve-se à inquietação que o leitor sente ao ver que o autor se expõe imenso no texto; o Valter põe o coração no texto. É possível falar dos seus livros sem estar a falar do mais intrínseco que há em si?

Não estou certo de que isso seja assim. Acho que os meus livros são intensos e sempre aproximam o leitor do que vai escrito. Sugerem uma intimidade. Mas, ainda que incluam parte das minhas mais sinceras preocupações ou desejos, os livros não me correspondem. Eles não contam exactamente a minha ida.
Freud denomina “forças impulsionadoras da arte” aos conflitos do escritor. Quais são os seus conflitos?
Sobretudo uma violenta relação entre a razão e a inteligência emocional. Também uma dificuldade constante em encontrar motivos para a vida e, ao mesmo tempo, precisar de encontrar pontos de esperança e, mais do que tudo, manter quem me ama motivado e feliz. Quero muito proporcionar a felicidade possível aos que amo.

Apesar de toda a sua [autor] exposição, há uma forte carga simbólica no texto (espelho, flores, morte, deus, boca, sangue, fogo) de “A Desumanização”. É uma forma de se proteger?

Creio que é um modo de fazer ver. O texto deste livro é muito feito da carga visual dos fiordes. As imagens são nítidas, ou pretendem sê-lo. Foi-me muito importante investir tudo na força das expressões, porque o estar ali não é nada menos do que avassalador. Um relato qualquer não faz ver a Islândia. Apenas os símbolos e a propensão para um certo absolutismo ou tremendismo.
Crisóstomo e pais de Sigridur. Para eles há a ausência, diferente conforme o caso, de um filho. Há um tipo de amor que tem urgência em se dar, mas não a quem. O Valter escreve sobre o tema para superar essa ausência [filial, paternal, amorosa] que sente?
Não escrevo para superar essa ausência. Escrevo para a entender. Entender a ausência e entender a potencial presença.

A morte é uma presença constante nos seus livros. Não é - para diversas personagens em diferentes livros seus - necessariamente o fim. O que o motiva a falar da morte? Medo? Curiosidade?

Não existem assuntos para além dos da morte e dos da vida. Tudo se divide entre uma coisa e outra. Não há nada mais escondido do que a morte e mais complexo do que a vida. Os livros fazem-se desses temas. É inevitável que me proponha pensar sobre eles. O sentido de todas as coisas, inclusive da literatura, só pode estar na utopia de cumprirmos em esplendor a vida e redimirmos tanto quanto possível a morte.

Qual a relação entre Halla e Valter Hugo Mãe? E entre Sigridur e Casimiro, seu irmão?

Há um paralelo ténue. Tive de crescer respeitando, e de certo modo amando, um irmão que nunca vi. Crescemos com a percepção da ausência, do lugar vazio de alguém. Fiz muitas conjecturas acerca da semelhança ou diferença que haveria de existir entre mim e esse irmão. As semelhanças e diferenças entre a minha vida e a morte dele. A Sigridur e a Halla acabam por ter uma questão assim estabelecida. Que é insanável. Não tem resposta. Nunca tem.

A perspectiva da irmã, pai e mãe sobre a morte de Sigridur é o Valter a colocar-se no papel de irmão e dos pais [em relação ao seu irmão]?

Não. Isso não. Não me coloco no lugar das personagens. Sei sempre que um romance é um percurso pela ficção. No máximo, as personagens coincidem comigo em algum sentimento, mas nunca me iludo ao ponto de achar que me retrato. Na verdade, nunca me retrato, apenas me sirvo do património de estar vivo e sentir para melhor entender o que sentiria uma personagem se vivesse também.

Há ligação entre o Sr. Silva de “A Máquina de Fazer Espanhóis” e o pai de Sigridur? Estamos perante a continuação da homenagem ao seu pai?

Não pensei nisso. Creio que não. O senhor Silva também não será o meu pai, apenas me permitiu reflectir acerca da terceira idade, algo que me propus fazer depois de perceber que não teria o meu pai como exemplo. O pai da Sigridur e da Halla prossegue algumas das minhas fixações relativas à validade dos textos, à capacidade que eles terão de mudar o mundo.

A mãe de Sigridur é o contraponto da ideia que tem da mulher? Parece-me ser uma mulher mais fraca, que cede perante a dor.

Nada. As mulheres são muito mais pragmáticas e resistentes do que os homens. Ao menos genericamente parece ser assim. Quis que a mãe das gémeas fosse como é no livro para criar uma força oposta entre as personagens femininas. A mãe encrudescendo e a Halla urgindo numa redenção. Como se fossem polos distintos, apartando-se, como se uma fizesse a morte e a outra tivesse de fazer a vida.

Na FLIP, 2011, afirma o seguinte: «Não sei se a Arte nos deve salvar, mas tenho a certeza de que pode conduzir ao melhor que há em nós para que não nos desperdicemos na vida». É um assunto presente em “A Desumanização”. A Arte é a melhor forma de comunicar connosco e com o divino? É dádiva em vez de prece?

É a única prece em que acredito. A arte é o melhor que podemos fazer, no sentido em que ela nos conduz ao extremo e mais genuíno de nós próprios. É a construção mais profunda de que somos capazes. Acredito nisso. Sim. No lugar de Deus colocar a Arte.

Em entrevista a Sílvia Souto Cunha (Visão; 22/01/2010), a propósito de “A Máquina de Fazer Espanhóis” afirma: «Há idosos que definham depois de se reformar, outros depois de tratarem de um filho ou neto, ou de perderem o companheiro… é como se a vida deles se justificasse através daquela relação». Halla encontra Einar, mas os pais de Halla vão desistindo de tudo ao perder Sigridur. Ainda é possível, nesta sociedade, morrer por amor? Ou viver para o amor em detrimento do sucesso?

Eu espero que sim. Sou um indivíduo eminentemente afectivo. Preciso de confiar que ainda somos capazes de colocar aqueles a quem amamos no centro das nossas ocupações e cuidados. Só interessa termos arte, e a arte ser divina, se o dividirmos com alguém. Os outros são o resultado de todo o esforço. No romance também se diz isso. Diz-se: “A beleza da lagoa é alguém”. Significa que a lagoa só é bela porque o podemos apreciar com alguém. Porque existe quem connosco possa discutir e partilhar o deslumbre.

Que evolução (temática, estilística…) encontra na sua obra, desde “O Nosso Reino” até “A Desumanização”?
Não serei o melhor juiz, mas tendo a ver uma depuração nas expressões que não sendo simples o parecem. Essa simplificação que melhora os sentidos, clarifica as ideias agrada-me muito e é resultado de muita escrita e reescrita. “A Desumanização”, por exemplo, tem um intenso trabalho de linguagem mas mantém alguma candura, como se as energias do texto fossem conseguindo um equilíbrio entre a aspereza do que se conta e a beleza como tudo quer ser contado. Quero muito a beleza dos textos. Muito.

A obrigatoriedade de publicar regularmente, própria de quem vive da escrita, não fatiga emocionalmente o escritor? Esgotará rapidamente a temática?

É ao contrário. Quero sempre escrever mais e mais. Escrevo coisas que guardo porque não faz sentido publicar mais. É fundamental deixar ao leitor o tempo suficiente para ler, sentir vontade de ler. O autor, por norma, respira pelos textos. Não pensa senão em textos. Quer textos. Viver da escrita, ao menos em Portugal, talvez seja possível apenas para quem tenha essa obstinação. Não sei. Na verdade, não há receitas. Tudo pode acontecer e todos os modos são legítimos. Eu escrevo muito. Passo os meus dias viciado em encontrar palavras que me ajudem a traduzir cada instante.

Mariorufino.textos@gmail.com



publicado por oplanetalivro às 07:11

17
Jun 13

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=636351



Mathias Énard (n. 1972), professor de Árabe na Universidade de Barcelona, estudou Persa, além de Árabe, nas suas longas estadias no Médio Oriente.
É autor de várias obras, das quais 2 estão traduzidas para português “Zona” (Prémio “Le Livre Inter 2009” e “Décembre 2008”) e “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” (Prémio “Goncourt des Lycéens 2010” e “Prix du livre en Poitou-Charentes” 2010).
O autor esteve em Portugal para apresentar “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” na “Feira do Livro de Lisboa” e na “Noite de Literatura Europeia”.
O leitor que aceite o desafio de ler “Zona” (D. Quixote) e “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” (D. Quixote) percebe, imediatamente, a riqueza de recursos narrativos do autor francês.
Os dois livros de Énard são completamente distintos. Enquanto “Zona” é um “stream of consciousness”, com poucas possibilidades de o leitor repousar num ponto final, e onde o tempo narrativo é tudo menos linear, “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” é composto por capítulos curtos, com leitura mais pousada, e muito mais rígido temporalmente.
Foi devido a estes dois livros que o Diário Digital teve a oportunidade de, numa curta conversa, confirmar a inteligência e conhecer a simpatia de Mathias Énard.







“Zona” tem um ritmo e estilo completamente diferentes de “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes”. Por que escolheu contar estas duas histórias de forma tão diferente?

O estilo de “Zona” está ligado à essência da viagem de comboio. Como a viagem não tem paragem, a frase também não. Tem também muito a ver com “Epos”, algo que é épico.
Por outro lado, “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” foi pensado como um “sketchbook” (livro de esboços), como de desenhos do próprio Michelangelo. Simplesmente, vê-se um capítulo curto, de 2 páginas ou 3, como um desenho. Depois, muda-se para outro tal qual num “sketchbook”.
Essa era a ideia que tinha para este livro. O ritmo totalmente diferente tem também a ver com a própria personalidade de Michelangelo.

Fez alguma investigação para este livro?

- Muita, muita… Primeiro, quando descobri esta história comecei a investigar como era Istambul, como era a situação económica, quem esteve lá, quem Michelangelo poderia conhecer, naquela altura, como seria a cidade até aos mais pequenos detalhes. Depois, que mercadorias eram importadas de Itália para o império Otomano? Quais os objectos? O que é que eles comiam? O que é que vestiam?
Foi um enorme trabalho durante um ano ou dois. Foi terrível. Eu não conseguia escrever devido à quantidade de detalhes que tinha na minha cabeça. Eu tinha cinco páginas e não conseguia avançar mais. Tive de esperar mais 1 ano para “esquecer” tudo aquilo. Era demasiada informação.
A personagem de Michelangelo pesava-me imenso devido a tudo o que sabia dele, tudo o que tinha lido sobre ele, todo o seu trabalho. Era difícil fazer dele um personagem real. Então tive de esquecer tudo isso e trabalhar com a minha memória, trabalhar com o que me lembrava acerca de tudo. Isso levou-me algum tempo. No global, “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” foi um trabalho de 2 a 3 anos.

Qual era a importância histórica daquela ponte? Hoje existem 4 pontes…

Estamos a falar do “Corno de Ouro”. Existiu uma ponte romana do tempo de Constantino, mas foi destruída nessa altura.

Foi a ponte destruída no terramoto em “ Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes”?

Não. A ponte destruída, no livro, pelo terramoto era minha. [risos] É ficção. Hoje, existe a Ponte de Gálata, que é uma ponte basculante e situa-se, mais ou menos, onde a ponte de Bayazid teria ficado se tivesse sido construída. Existem agora uma, duas, três, quatro pontes. Exacto. Entre a ideia de Bayazid e a Ponte de Gálata existem 400 anos de diferença. Ninguém tentou construir uma nova ponte.

O que é que o motiva a misturar realidade com a ficção?

Michelangelo zanga-se com o Papa, vai para França, e então recebe um convite do Sultão de Istambul para construir uma ponte em Constantinopla. Eu disse: “Oh! Incrível! Não sabia disto! É maravilhoso!” Depois descobri que era quase impossível ele ter aceitado. Perguntei a historiadores e académicos sobre se ele teria estado lá, e eles responderam que não, não tinha estado. Perguntei “Porquê?” Eles responderam “Nós saberíamos!” [risos] Eu percebi que tinha de enviar-me para lá. Foi como corrigir um “erro” histórico. Eu “vi” Michelangelo lá.


A relação entre Michelangelo e Mesihi é uma metáfora sobre a relação entre Este e Oeste?

Sim, de certa forma. O que me fascinou foi a oposição entre estas duas personagens. Nós sabemos tudo sobre Michelangelo. Existem centenas de páginas escritas sobre a sua vida, sobre a sua arte. Mas não sabemos quase nada sobre Mesihi. O trabalho de Michelangelo é imenso. Nós temos esculturas, pinturas… O trabalho que conhecemos de Mesihi resume-se a 20 páginas.
Michelangelo morre rico e famoso. Mesihi morre pobre e esquecido. Tudo os opunha. Um gosta de álcool e drogas. Michelangelo, não.

A única personagem que tem voz própria é a dançarina exótica. Temos personagens como o Papa, Michelangelo, Da Vinci, Mesihi mas a escolha foi a de uma dançarina. Por que razão?

Ela é uma personagem que vem directamente da Poesia. Ela veio do poema clássico persa. Nós não sabemos se as personagens nesses poemas eram raparigas ou rapazes. Na Pérsia, ou na Turquia, não existe a diferença, na língua, entre ele/ela. Na poesia não se consegue saber se estão a falar de rapazes ou raparigas. Muitos eram rapazes, mas os tradutores, no século XIX, escreveram “ela”. Tinha conotação homossexual. Era realmente complexo. Por isso é que esta personagem é tão incerta.

Li uma entrevista com Charlotte Mandell [conversationalreading.com], sua tradutora de “Zona”, onde ela afirma que o livro “Zona” tem exactamente o mesmo número de quilómetros da viagem de comboio entre Milão e Roma. Foi com esse objectivo que escreveu 517 páginas?

[risos] Sim, foi com esse objectivo. O número de quilómetros de comboio é mais longo do que por estrada. Uma página é um quilómetro.

Em português não podemos fazer isso, são 467 páginas.

Em francês e em inglês conseguimos…

“Zona” é mais espacial do que temporal? A narrativa segue os lugares por quais o comboio passa. Não segue uma linha temporal rígida.

Tem duas linhas temporais: a real linha temporal da viagem de comboio e outra não linear que são as histórias que conto na viagem.

Em “Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes” lemos, na página 119, “É verdade, Nós todos macaqueamos Deus na sua ausência”.
Somos sombras platónicas? Sombras imperfeitas?

Sim! Isso é o que Michelangelo pensa. Ele tem uma educação neoplatónica. No século XV, os últimos dos filósofos platónicos vão para Florença, Itália. [A educação de Michelangelo foi feita, em grande parte, em Florença]. A sua educação é baseada em ideias neoplatónicas. É ele dizendo isso.

No período da Renascença, escritores e pintores criaram muitas obras de arte porque eram contratados para isso. Neste caso, por exemplo, Michelangelo foi contratado por Bayazid. Eles estavam dependentes do mercado. Hoje mantém-se essa dependência?

Sim, os escritores mantêm-se dependentes, mas os patronos são menos…políticos. Continuamos com patronos: as Editoras e o mercado.
Michelangelo foi um dos primeiros artistas europeus a conseguir ser um artista livre. Ele ganha a sua liberdade, no fim da sua vida. Mas a sua vida é uma luta por isso. Michelangelo ama duas coisas: dinheiro e liberdade. E ele consegue-os no fim. Ele podia dizer “Não” às pessoas.

Necessita, como escritor, da aceitação que Michelangelo necessita no seu romance?

 Provavelmente, provavelmente…
Não sou só eu… Se vamos entrar nesta arte ou criação, todos necessitamos de público. De alguma forma, nós dependemos dele, também.



Mariorufino.textos@gmail.com

publicado por oplanetalivro às 08:04

29
Mar 13

ENTREVISTA COM LUÍS CARDOSO

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=619978 


"A Língua Tétum funciona em metáforas. Eu quando digo “praia”, em língua portuguesa, em Tétum eu digo “tasí-ibun”, [significa] “boca do mar”.
Como construir esta língua portuguesa dos timorenses utilizando em vez da “praia” “boca do mar”? Em vez de dizer “vou à praia”, que é uma coisa tão sem jeito, “vou até à boca do mar”.
Nós podemos construir esta língua, dessa forma, utilizando essas metáforas todas que existem na língua tétum. Eu vou até à boca do mar. Não é maravilhoso?"

Luís Cardoso.



Luís Cardoso (n.1959), autor de “O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação” (Sextante), nasceu em Cailaco, Timor-Leste.
Dentro do actual período formativo da literatura timorense, o 5º romance de Luís Cardoso pode ser visto como contextualizado por uma temática pós-colonial.
Desde a introdução da escrita no território, pelos malaios, chineses e javaneses, até às recentes obras de autores timorenses sobre Timor passaram cerca de 5 séculos.
Com a entrada dos portugueses, entre 1511-1515, a produção escrita intensificou-se. Foram escritos livros de orações, monografias, relatos de viagens por, essencialmente, viajantes e missionários. Estamos na fase da “Literatura Colonial”, ou “Literatura Portuguesa” cujo tema era as colónias.
Até chegarmos a Luís Cardoso, é de salientar a contribuição de vários autores inseridos em diferentes géneros e temáticas.
Grácio Ribeiro, com o romance “Caiúru”, é o mais destacado representante da “Literatura Colonial”.
Na poesia, nomes como Fernando Sylvan, com “A Voz Fagueira de Oan Timor”; Xanana Gusmão, com “Mar Meu - poemas e pinturas” escrito quando o autor era prisioneiro; João Aparício, com “À Janela de Timor”, Abé Barreto, e, principalmente Ruy Cinnati, que construiu considerável obra sobre a sua relação com Timor.
Pecando por defeito, pois existem outros autores que merecem ser nomeados, chegamos a Luís Cardoso. É considerado o autor mais importante na fase do Pós-Colonialismo.
O seu recente romance,“O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação”, editado em 2013, é um texto cheio de fantasmas. Luís Cardoso aborda a culpa, a construção de uma identidade nacional e a violência que acompanhou a evolução política no território.
Luís Cardoso, apesar da sua agenda preenchida, acedeu a conversar com o Diário Digital nas “Correntes d´Escritas” (Póvoa do Varzim). Falou-se dos seus livros, de Pedro Rosa Mendes, Silvicultura, Literatura e de Timor. Falou-se muito de Timor.



A primeira “pergunta” é mais uma provocação do que propriamente uma pergunta. Estudaste Silvicultura. Agualusa, também. E Riço Direitinho, também.
Tinham alguma tertúlia, ou simplesmente não prestaram atenção às aulas?

Em Agronomia parece que as pessoas estão viradas para a batata [risos] para o feijão... não. Na Agronomia havia um “background” muito grande com homens como Ruy Cinatti e Amílcar Cabral
Agronomia foi sempre um centro de intelectualidade. O que acontece é que o Agualusa e o Riço Direitinho já estavam a despontar. Foram primeiro eles a despontar e abrir o caminho. Fui atrás deles como amizade e depois comecei a escrever também. Até que um dia o Agualusa disse assim : “Olha! Eu levo isto para a D. Quixote”. Foi o Agualusa que levou “Crónica de uma Travessia” para a D. Quixote.
Éramos quase irmãos. Sabíamos o trabalho de uns e de outros relativamente à escrita, o que é que cada um estava a fazer. Depois, foi somente um empurrão dado por um colega de faculdade.

- Hipoteticamente, não tem nada a ver com literatura, e eu pensei “bem... eles não prestaram nenhuma atenção às aulas e estiveram a discutir literatura o tempo todo.”

[risos] Não... Em Agronomia, no nosso tempo, estava lá estudando Tim, dos Xutos e Pontapés. O Engenheiro Agrónomo Tim! Era bom aluno. O Sr. Engenheiro Tim! E outra pessoa que também estava na Agronomia era o João Afonso, o cantor.


Quando leio sobre literatura em Timor, leio, quase sempre, literatura colonial ou pós-colonial. Já faz sentido falarmos numa literatura timorense, como falamos de uma literatura portuguesa, ou angolana?

A Literatura Portuguesa está construída; a Literatura Angolana também. A Timorense está em construção. Provavelmente daqui a alguns anos falaremos de uma Literatura Timorense. Tanto pode ser em língua portuguesa como em Tétum ou pode ser no próprio bahasa indonésio que muitos estudantes timorenses vão estudar na Indonésia. Dominam melhor a língua indonésia do que o próprio Tétum e a língua portuguesa. A língua em que eles escreverão será a língua que eles próprios dominam.

Dentro do território qual é a língua mais falada?

Tétum.

Língua Portuguesa é a língua oficial?

Exactamente. Estamos a tentar construir uma língua portuguesa dos timorenses. É preciso trabalho! Podemos fazer aproveitando até o próprio Tétum nesta construção. A língua portuguesa dos timorenses será uma língua entre o Tétum e a língua portuguesa.

Não será Português Europeu...
...será como Português de Angola, de Moçambique...

Há ligação temática entre “O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação” e as suas obras anteriores?

Há. Há sempre coisas que estão no primeiro livro, no segundo, no terceiro, no quarto e que vou transportando... Certas coisas que não pude dizer nos outros livros tenho construi-las nos livros seguintes. Há uma continuidade.

Este livro parece-me abordar a noção de culpa e construção de identidade nacional.
A literatura é um meio de catarse?

Eu qualifico-me sempre de contador de histórias. As histórias que conto são as histórias das pessoas, que são reais.
Sou um bom ouvinte. Ouço muito as pessoas quando vou a Timor. Ouço sempre muitas pessoas que me contam histórias. Então, tento dar voz a essas pessoas. O meu papel é dar voz a essas pessoas. Não sou eu, mas são elas que fazem essa catarse.
Há muita gente que teve essa consciência de que Portugal abandonou Timor. Ficou magoada!
Obviamente que, politicamente, eu teria uma outra apreciação, mas essas pessoas reais... essa mágoa que existe nessas pessoas... Não sou eu. Estou a dar voz a estas vozes.

É também uma afirmação como timorense o facto de escrever sobre Timor?

Sou escritor timorense e pretendo fazer uma literatura timorense em língua portuguesa.

Não se vê a escrever sobre outra temática?

Não, provavelmente não teria tanta acutilância.

Sobre Portugal, por exemplo?

O amigo Pedro Rosa Mendes [antes da entrevista falámos sobre “Peregrinação de Enmanuel Jhesus”, de Pedro Rosa Mendes] provavelmente escreveria muito melhor do que eu. Eu agradeço imenso ao Pedro Rosa Mendes ter posto o dedo na ferida de Timor que me fez doer. Há muitas coisas que são lá utilizadas que me fazem doer como timorense.
Poderia escrever sobre Portugal, sobre o problema dos portugueses mas eu não teria tanta … sensibilidade para abordar o tema. Os portugueses provavelmente ficariam chateados comigo porque sei que os portugueses são assim. Dizem “nós podemos falar mal de Portugal, mas ai de ti que fales mal de Portugal” [risos]
Quando Pedro Rosa Mendes põe o dedo na nossa ferida, sentimos essa dor, mas achamos, muitas vezes, que nós é que deveríamos ter feito esse papel que Pedro Rosa Mendes fez. Devíamos ser nós a fazer isso.

...como é uma visão exterior consegue ter uma outra distância...

É. Eu gostaria de meter o dedo na nossa própria ferida. Nos meus livros tenho feito isso. Em todas as minhas entrevistas também. Nós temos uma ferida muito grande relativamente a todo o aspecto político, todo o aspecto da construção da identidade e da nação.
Obviamente que não teria tanto à vontade a escrever sobre Portugal. Gostaria! A matéria é igual, mas... o meu amigo português vai dizer “ouve lá! Não fales por aí, não vás por aí que tu não sabes nada disso. Vives cá em Portugal, fica por aqui, escreve sobre a tua terra, mas não fales sobre a minha” [risos] Este é o meu receio que me faz não escrever sobre Portugal. Talvez um dia o faça...

Timor tem muitas culturas: portuguesa, indonésia... como é que um timorense consegue conciliar estas culturas?

Timor, pelo facto de ter vários grupos etno-linguísticos, sempre viveu neste “caldo”. Os timorenses sempre souberam relacionar-se uns com os outros em diferentes línguas. Então, têm esta facilidade de absorver outras línguas. Por exemplo, se tu fores falar com um timorense em língua portuguesa, ele tem muita honra em que fales em língua portuguesa. Ele sente que sabe. Se eu falar em Tétum, ele sabe. Podes falar em língua portuguesa que ele fala muito bem.
Nessa história toda de ocupação de Timor, primeiro a ocupação japonesa, depois a ocupação das Nações Unidas...isso tudo...faz com que os timorenses sejam poliglotas, por natureza. Se fores ter com um timorense, ele fala língua inglesa, fala bahasa indonésio, fala mal, mas fala alguma coisa de língua portuguesa e outras línguas quaisquer, se estivessem lá, ele falaria.
Há essa capacidade de absorver. Mas ao mesmo tempo, falando de crianças, as crianças têm a construção do seu imaginário feita em Tétum.
A Língua Tétum funciona em metáforas. Eu quando digo “praia”, em língua portuguesa, em Tétum eu digo “tasí-ibun”, [significa] “boca do mar”.
Como construir esta língua portuguesa dos timorenses utilizando em vez da “praia” “boca do mar”? Em vez de dizer “vou à praia”, que é uma coisa tão sem jeito, “vou até à boca do mar”.
Nós podemos construir esta língua, dessa forma, utilizando essas metáforas todas que existem na língua tétum. Eu vou até à boca do mar. Não é maravilhoso?


Como é que transferiu a imagética timorense, do Tétum, para a língua portuguesa?

Todo o imaginário Tétum é oral. Nós falamos Tétum, e toda a tradição da literatura oral timorense é, sobretudo, feita de sonoridade. Eu tento ir buscar essa sonoridade no Tétum, principalmente, e reconstruir essa sonoridade na chamada literatura escrita; fazer essa transposição. Quando escrevo, normalmente leio em voz alta.

Nota-se o ritmo poético. Vem da literatura oral?

Isso.

Podia escolher contar a história de várias formas. Escolheu contar através de uma sandália, a esquerda do lado do coração e que começa por ser maior do que os pés. Porquê essa simbologia?
Porquê colocar a sandália como narradora?

Eu julgo que vocês, os críticos literários, fizeram uma bonita apreciação sobre isso. E adorei imenso porque compreenderam perfeitamente o que eu queria dizer quando utilizei a sandália para ser a narradora. De facto, é sobre os pés que nós colocamos o nosso peso. E o nosso peso traz a história de cada um, com as nossas frustrações, com as nossas esperanças. Tudo isso prostramos sobre os pés. Ora bom, normalmente o peso cai sobre uma sandália que, provavelmente, teria durante esse tempo o acumular de uma série de coisas que gostaria de contar.
Através disso seria a posição directa do coração e do outro lado a razão. Funciona sempre esta duplicidade. E então tento dar voz a um objecto que, provavelmente, nunca teria voz. Acho que é por cima da sandália que nós apresentamos todas as nossas esperanças, ilusões.  Foi assim para contar a história de Timor. É apenas um objecto que me serviu maravilhosamente. E estou agradecido às sandálias [risos].


Que dificuldades é que teve, a nível de técnicas narrativas, quando estava a escrever?
Não pensou em mudar, enquanto escrevia, devido às dificuldades?

Obviamente que foi uma questão muito bem estudada. Quando partimos para a escrita, no pensamento para a escrita já está tudo estudado. Ao colocar, precisamente, a questão das sandálias, é preciso conter um bocado a voz das sandálias, da narradora, porque há histórias que contam-se por elas próprias: a história do Pigafetta,  a história do Sakunar, a história das vozes femininas, da avó Aurora, da tia Isadora. Essas vozes depois têm voz própria no livro. Mas a sandália tem de conter um bocado a voz. Também serve de ligação entre as vozes.


Há uma componente sexual muito forte no livro. Essa componente sexual tem relação entre colonizador/colonizado? É uma relação de força?

A subjugação através do sexo. Aliás, disseste muito bem no teu artigo: tentar dominar o outro através do sexo.

Como é que se sente a ser estudado numa tese de doutoramento no Brasil?

É uma maravilha. Eu acho que qualquer escritor gostaria que a sua obra fosse conhecida no meio universitário. É fabuloso. É uma honra e uma coisa única, mas ao mesmo tempo uma responsabilidade porque às vezes  sinto que entrei neste mundo literário para não ter essa responsabilidade, mas afinal tenho essa responsabilidade.
Estudam até ao mínimo pormenor, escalpelizam tudo...ontem vinha a falar com ela [doutoranda que esteve em Portugal para estudar a obra de Luís Cardoso] e disse-lhe “vou aproveitar as tuas ideias para falar sobre o meu livro. Não me tinha lembrado disso...” [risos] Ajuda o próprio autor a falar da sua obra.

...é a tal visão do exterior...

É isso mesmo, mas uma visão estudada. São académicos que estão a estudar certos traços...com respeito. Ainda bem que nos ajudam a compreender.

Não se sente um pouco “despido”?

Obviamente, mas isso é saudável.




Mário Rufino



publicado por oplanetalivro às 14:22

21
Jun 12
A minha entrevista com Tânia Ganho, sobre " A Mulher-Casa", para o Diário Digital.

Tânia Ganho sobre «A Mulher-Casa»: «Este livro é uma homenagem às mulheres»


DIÁRIO DIGITAL: http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=578666


Christos Tsiolkas apresentou-me, em “A Bofetada”, a tradutora Tânia Ganho. Foi devido a este livro que conversámos pela primeira vez. Algum tempo depois, saiu “O Filho do Desconhecido”, de Alan Hollinghurst, com outra excelente tradução da mesma tradutora. Antes destes dois livros, já Tânia Ganho havia traduzido John Banville, David Lodge, Ali Smith, Nicholas Shakespeare, entre outros…No entanto, é a sua própria produção ficcional que aproxima ainda mais Tânia Ganho dos leitores. É pela sua própria voz, pelos mundos que cria, que se dá a conhecer.
Vencedora, em 2011, do Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba, a escritora lançou, em 2012, “A Mulher-Casa” (Porto Editora).
Tânia Ganho propõe-nos, no seu 4º romance, um exercício de interpretação literária sobre o problema da libertação do indivíduo.
Neste livro, a atenção recai sobre o papel da mulher na sociedade. A Moral, o Hedonismo, a Fidelidade são temas sobre os quais a autora propõe a reflexão.
Todos nos identificamos, em algum aspecto, com a família de Mara, mesmo que sigamos caminhos diferentes dos que os seus elementos seguiram. Daí a inquietação que “A Mulher-Casa” provoca.

Quem é a mulher-casa? Qual é a origem deste título?  

A “mulher-casa” é o título de uma série de desenhos e pinturas que a artista plástica Louise Bourgeois (1911-2010) fez em 1946-7 e cujo tema – a casa como refúgio ou prisão – desenvolveu até ao final da sua vida, nomeadamente na série de instalações “Células/Celas” que criou nos anos 90. Estas obras de Louise Bourgeois interpelaram-me em especial pela sua ambiguidade e vejo nelas a expressão inquietante do conflito identitário de tantas mulheres actuais, divididas entre os papéis de mãe e de mulher que, infelizmente, continuam, em muitos casos, a ser difíceis de conciliar.


Tânia Ganho, a tradutora, segue o Acordo Ortográfico [“A Bofetada” de Tsiolkas; “O Filho do Desconhecido” de Hollinghurst], mas Tânia Ganho, a escritora, não segue. Qual a razão dessa diferença?

Eu, que na vida sigo o lema da constante mudança, tenho muita dificuldade em adaptar-me a uma nova forma de escrita, por isso continuo a escrever à moda antiga, quer como tradutora, quer como escritora, até porque não concordo com algumas das alterações que o Acordo impôs. As editoras que publicam as minhas traduções é que se encarregam – na fase de paginação e revisão – de fazer a adaptação dos textos, poupando-me a muitas dores de cabeça.


Mais do que a cronologia, são os momentos que marcam o tempo na vida de Mara. Refiro-me aos botões de madrepérola e, principalmente, aos chapéus. Os livros funcionam para a autora como os chapéus para Mara?

Não. Os chapéus da Mara são traduções imediatas dos estados de espírito dela, são transposições criativas das emoções que a assolam no presente, são projectos imediatistas. Os meus livros são projectos de fundo que reflectem a minha noção da vida como uma colecção fluida de momentos que não obedecem necessariamente à cronologia. Não gosto de datas, baralho as datas da minha própria existência, mas tenho uma memória incrível para preservar imagens, gestos, cheiros e momentos, sobretudo os momentos felizes, porque são esses que servem de balizas na minha vida. 


Até que ponto a escrita deste romance a interrogou a si própria enquanto mulher e mãe?

A escrita do romance não me suscitou interrogações, foram as interrogações já existentes na minha mente sobre a condição da mulher e a maternidade que deram origem ao romance.

O enredo tem o eixo em Mara, nas necessidades de Mara, nos problemas de Mara… É uma visão feminista sobre a individualidade e o casamento?

Este livro é uma homenagem às mulheres. A minha intenção foi trazer as mulheres – os seus problemas, necessidades, desejos e sexualidade – para a escrita, como defenderam as feministas francesas Hélène Cixous, Luce Irigaray e Julia Kristeva, nos anos 70, quando apresentaram o conceito de écriture feminine, que infelizmente foi completamente deturpado.

Porque optou por uma narração tão próxima à visão de Mara?

Foi um mecanismo literário premeditado para criar uma maior relação de identificação do leitor com a personagem. Eu queria que as pessoas se identificassem com a Mara, ou pelo menos que conseguissem entrar na cabeça dela e perceber as suas motivações, mesmo não concordando com elas. A Mara tem suscitado reacções fortíssimas nos leitores e é essa é a maior alegria que este livro me tem dado.


Qual é a razão de haver uma diferença de ritmo entre o período antes de Mara conhecer Matthéo e o período depois de Mara se envolver com Matthéo?

Imprimi um ritmo mais pausado à primeira parte do romance de modo a reflectir a lenta degradação do casal e da estrutura familiar, o desgaste gradual da relação e o ruir das expectativas da Mara. A partir do momento em que Matthéo entra em cena, o livro assume o ritmo da paixão, que é por natureza acelerada, irracional, impulsiva.


O leitor é confrontado com vários egos, várias individualidades, que se afastam entre si para satisfazer as próprias necessidades. Estamos perante o “culto do Eu”?

A sociedade actual é pautada pelo culto do eu, pelo individualismo, o egocentrismo, e o livro é a expressão disso mesmo, mas o meu objectivo era mostrar o oposto: tem de haver valores superiores às necessidades mesquinhas do indivíduo.


Na verdade, ela não chega a tomar nenhuma decisão. É levada pelos acontecimentos. Mara é uma personagem reactiva?

Mara é uma pessoa como tantas que eu conheço, que assumem o papel de vítimas passivas dos acontecimentos e ficam sentadas à espera que Deus, o destino ou simplesmente os outros lhes dêem as respostas e as mudanças de que necessitam para serem felizes. A Mara é o oposto de mim, nesse sentido: eu sou uma pessoa que age, a Mara reage.


A personagem Mara segue a doutrina do Hedonismo?

Uma doutrina implica um sistema estruturado de ideias, uma filosofia subjacente ao comportamento. A Mara não tem essa sofisticação mental, limita-se a reagir a encontros e desencontros, sem reflectir. E é demasiado afectada pela noção de culpa para a podermos considerar hedonista.


Na construção das personagens teve algum modelo real/alguns modelos reais?

A Mara é a soma de muitas mulheres com que me tenho cruzado na vida, é uma amálgama de sentimentos e pensamentos que fui coleccionando ao longo dos últimos seis anos. Para a criar, roubei frases a algumas amigas (“eu não durmo, faço sestas”) e utilizei emoções que eu própria senti quando tive o meu filho (a dificuldade em encontrar espaço para a escrita numa vida regida pelo horário dos biberões). O Thomas tem muito de mim, no sentido em que vive no seu mundinho feito de palavras e às vezes tem dificuldade em desligar do trabalho e concentrar-se nos aspectos mais domésticos da vida. O Ministro é uma espécie de Dominique Strauss-Kahn. O Matthéo é um rapaz como tantos outros, mas é uma personagem por quem tenho muito carinho. 


As imagens proporcionadas pela relação sexual entre Mara e Matthéo são muito sugestivas. É difícil escrever sobre sexo?

Dizem que sim. No meu caso, sinceramente nem pensei nisso. Para mim, escrever sobre sexo é muito mais natural do que descrever a Mara a moldar um chapéu de feltro ou o Matthéo a preparar um magret de pato com mel. Cresci numa família de médicos, ainda por cima com um pai urologista, por isso o corpo sempre foi um tema natural e constante à mesa do jantar, sem tabus. Acho que isso ajuda a falar da intimidade de uma maneira espontânea e descontraída.

Há uma simbiose entre Thomas (marido de Mara) e o ministro. Ele, como ghostwriter, é ou influencia a “voz” do poder. Por outro lado, começa a comportar-se, socialmente, como o ministro. Em algum momento, sentiu que estava a suceder a mesma situação entre personagem (ns) e autora?

Não, a fase de simbiose entre a autora e a personagem precede o livro. É antes de escrever o livro que me meto na pele da personagem e vejo o mundo através dos olhos dela. Ou seja, antes de começar a escrever, andei meses a olhar para as coisas à minha volta como se fosse a Mara: escolhi as exposições que fui ver em Paris em função dos gostos da Mara-modista de chapéus, interessei-me pela moda francesa, passei horas a mexer em plumas e feltros e palhas, a analisar os motivos arquitectónicos do 7º bairro e a observar a vida no Campo de Marte. A partir do momento em que senti que a Mara já existia de facto na minha cabeça, já era uma “pessoa” de carne e osso, voltei a ser apenas a Tânia Ganho.


E com que olhos vê o mundo, neste momento?

Com os olhos da personagem do meu próximo romance: um homem na faixa dos 40, com uma profissão ligada ao mar.


Mário Rufino



publicado por oplanetalivro às 13:38

05
Jun 12

Entrevista com J. Rentes de Carvalho
sobre “O Rebate” -Quetzal

-O respeito pelo leitor implica que você não vai julgar que o leitor é estúpido porque ele não é. O que você vai ser é muito humilde e saber que o leitor é muito competente e muito capaz. Claro que há uns – inclusive os críticos- que não serão capazes de acompanhar, mas a culpa é deles não é minha.-http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=574593


Cheguei ao hotel e vi J. Rentes de Carvalho a observar um grupo de ingleses que, às 10 da manhã, bebia champanhe no átrio. De braços cruzados, rosto impávido e sereno, concentrado no grupo, não me viu chegar. Assim que me apresentei, foi ele que fez a primeira pergunta: “Você percebe alguma coisa de computadores?” e apontou para o seu portátil.
José Rentes de Carvalho é um contador de histórias. Sempre afável e conversador, não perdeu a vertente pedagógica formada pelas décadas de ensino universitário na Holanda. O motivo da nossa conversa era a edição do seu romance “O Rebate” (Quetzal), mas falámos sobre muito mais do que isso. Através desta entrevista, podemos conhecer o trajecto pessoal e o caminho que o escritor teve que percorrer até ser reconhecido em Portugal. J. Rentes de Carvalho leva-nos até outros autores. Os seus livros levam-nos até outros livros.
Começámos por falar sobre a sua colectânea de contos “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia” e continuámos por muitos mais temas. “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”, também editado pela Quetzal, foi o livro que antecedeu “O Rebate”. No começo da nossa conversa ficámos a saber a razão de o livro ter o título de um dos contos que o integram.
Como ele gosta de dizer, “Eu vou contar-lhe outra história.”:
JRC- O livro [“Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”] eram dois livros. Na Holanda foi editado como dois. Um com o título de “O Milhão, recordações e outras fantasias” e “O Joalheiro”. Mas quando estive a falar, cá, disse que aquilo era tudo o mesmo e para fazermos um livro só e juntei, porque gosto muito de Dalton Trevisan… -não conhece, não? Vá comprar já! Dois títulos: “A guerra conjugal” e “O cemitério de elefantes”. O Dalton Trevisan é ainda vivo e é um pouco mais velho do que eu. É director de uma fábrica de cerâmica em Curitiba (fábrica da família). Nos Estados Unidos, na Alemanha e na Holanda é considerado o melhor contista do mundo, mas no Brasil é só um bocadinho amado. Nos anos 60 escrevia, no máximo, um conto de página e meia, e muito excepcionalmente duas páginas, mas a força dele está no conto de uma página só. Os personagens masculinos são sempre José e as femininas são sempre Maria. Outro título: “O vampiro de Curitiba”. Agora está a ficar velho ou meio-tonto porque já tenta fazer um conto em 6 ou 7 linhas. É um bocado exagerado. Quer dizer…ele tem razão, mas a cabeça dele funciona de outra maneira do que a do leitor. Ele está-se nas tintas para o leitor. Esses 3 livros: “A guerra conjugal”, “Cemitério dos elefantes” e “O vampiro de Curitiba”. Eu tinha um colega, que foi meu tradutor e colega da Universidade, que era um fanático de Dalton Trevisan. Ele deu-me os livros todos e eu fiquei vendido. -Quando fiz esta junção de dois livros, escrevi o conto que dá o título ao livro “Os lindos braços da Júlia da Farmácia”. É uma página e ele está aí por uma simples homenagem ao homem que é fantástico! Eu nunca vi um escritor que seja capaz de dizer de alguém “Ele levantou-se e tinha caspa nas sobrancelhas” [Risos]. Uma filha que foi abusada pelo pai (não sabemos que foi), mas o pai morreu… Ele está no caixão; ela está sozinha com o pai, olha para ele, põe um cigarro e vai queimando-o aos poucos…Toda a gente devia ler Dalton Trevisan.

Tenho de lhe fazer uma pergunta que faço a mim e talvez seja a mais difícil. Por que razão só agora está a ser tão lido em Portugal?

A resposta é simples. O meu primeiro romance, “ Montedor”, foi aclamado de uma maneira “tonta” para aquele tempo. Saramago, que ainda não era uma pessoa com esta categoria, mas era um bom crítico e era respeitado, escreveu na Seara Nova uma pequena recensão…talvez de cem palavras… e deu-me uma quantidade de elogios e lançou-me no “meio” de Lisboa. Eu estava na Holanda e não segui isso. Depois houve umas tentativas de aproximação dos neo-realistas, mas tudo muito discreto. Eles disseram logo “Este sujeito não é de cá, nem quer ser de cá…”…não é no sentido da nacionalidade, ou da sensibilidade mas de não ser de cá da “capelinha” O livro foi editado pela antecessora da “Caminho”, pela “Prelo”, que era do Partido Comunista, toda a gente sabia, e três anos depois, em 71, saiu o segundo romance [O Rebate] e então caiu-me a malta em cima. Eu até pus no meu blogue [Tempo Contado] aqui há uns tempos. Entre outros, o Sr. Nelson Matos, que naquela altura era crítico: “..este gajo nem sequer sabe conjugar os verbos…isto não é linguagem…devia ter cabeça”. Eu tenho com muito orgulho aquilo no meu blogue. E depois tive uma sorte do caneco. Tinha um amigo que, por acaso, era editor holandês, director de uma grande editora, e juntávamo-nos a conversar, de vez em quando, num café. Ele bebia muito, eu bebia menos, fumávamos ambos muito, e demorávamos muitas horas a conversar. Nesse belo dia eu estava maldisposto com a vida e com a Holanda e dei uma “catanada” nos holandeses e ele ouviu, pois era um homem educado, cultivado e muito inteligente. Ao fim daquilo (demorou mais de uma hora; devo ter perdido a cabeça…) ele diz assim: “Porque é que não escreves isso?”
[acenou a cabeça negativamente] Eu estava tão arreliado com eles e com a vida… Fomos embora.
No dia seguinte ou talvez dali a dois dias recebo uma carta.
A carta trazia um cheque muito generoso e tinha um cartãozinho a dizer “e agora este é o pagamento dos direitos de autor”. E foi assim que o livro [Com os holandeses] nasceu.

O Rebate” foi publicado agora, mas foi escrito quando?

Em 71

…e foi antes e depois de que livro?


Primeiro, foi “Montedor”, que o Saramago elogiou. Depois foi este [“O Rebate”] que toda a gente deitou abaixo. Teves umas críticas feitas por um sujeito que trabalhava para a Gulbenkian…”..isto não é moralidade…” enfim..
Depois, veio o livro “Na Holanda”…

…quando diz “Na Holanda” [edição holandesa] será “Com os holandeses” [edição portuguesa] cá ?

Sim, sim…Tem um título “Onde mora um outro Deus”, mas eu achei que esse título não passava em Portugal.
O êxito foi enorme na Holanda. Foi espectacular. Tive três anos de edições consecutivas e tive um ano quase inteiro em páginas de jornais inteiras. Nunca tinham tido um sujeito a dizer aquelas coisas… [risos]. Eu não devo nada a ninguém, não tenho partido nem tenho dívidas…
Esta gente aqui… mudou depois porque tudo o que é nome na literatura portuguesa desde 1960 até hoje todos me conhecem, todos me cumprimentaram já alguma vez e mais! Uma grande parte, quando estive na universidade 32 anos, era convidada para ir lá dar uma conferência e nós instalávamo-los no Hilton. Agora acontece uma coisa: desde há dois anos essa gente que em trinta e tal anos não me conheceu diz assim à mocidade: “Diga-lhe lá! Eu conheço-o! Somos muito amigos! Ele que venha…” O único que fugiu dessa miséria foi o Alçada Batista. Se eu lhe contar…houve uma visita de Estado do Sampaio à Holanda. A Rainha, que já me convidou para sua casa, convidou-me a mim e à minha mulher para o jantar. E disse assim “Conhece o Rentes de Carvalho, seu conterrâneo…” E o Sampaio… [abriu muito os olhos demonstrando um ar atrapalhado] [risos]
Tenho um outro testemunho: esse jantar era oferecido pela Rainha ao Sampaio, depois o Sampaio ofereceu um jantar à Rainha numa espécie de igreja. Está o António Esteves Martins, está o Jaime Gama e estou eu. Estamos a conversar, tinha acabado o buffet, a Rainha passa com o Sampaio, olha para mim e faz assim [acenou com a mão]; e o Jaime Gama diz assim: “Ela conhece-o????” [risos] e o rapaz da TV disse que sim, conhece…
Tenho cartas muito bonitas do pai da Rainha a agradecer…ele gostou muito do livro, ele próprio era alemão, por isso compreendia muito bem…Na Holanda, tenho uma situação que não tem nada a ver. Isto tudo interessa-me só pelo lado do afecto e da sensibilidade, mas a gente que é das literaturas…ah…
Não me interessa por uma quantidade de coisas…
Agora, estou a gozar este êxito. Eu soube ontem que depois do Peixoto sou o escritor que vende mais. Neste momento, o Peixoto vende um pouquinho mais do que eu, mas isso não… O carinho de ser editado na minha terra e de ser lido pela gente para quem estes livros foram escritos! Não foram escritos para a Holanda, menos “Com os Holandeses”… os outros não foram.
Tenho um guia de Portugal [Portugal, een gids voor vrienden (Portugal, Um Guia para Amigos)] que ultrapassou os 200.000 (duzentos mil) exemplares. Depois de ano e meio de ter saído a seguir de Portugal, foi espectacular. Esteve dez semanas acima de “O Nome da Rosa” do Eco. O ISEF fez um estudo e concluiu que no ano anterior cerca de 300.000 (trezentos mil) turistas holandeses tinham vindo a Portugal por causa do guia ou com o guia. Então o governo foi muito gentil e perguntou o que podiam fazer: “Você aceitaria uma condecoração?” Lá me fizeram Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Mas fizeram outra coisa…

…foi com Sampaio?

…não, foi com Mário Soares. Outra coisa que fizeram, que eu achei muito gentil, foi que o governo ofereceu trazer nove jornalistas holandeses durante dez dias para Portugal, com “carta branca” de despesas. Foi muito bonito. Depois, o meu editor holandês, que me tinha mandado o cheque e que ganhou muitos milhões de florins naquela altura, disse “A Editora quer fazer alguma coisa por ti. O que é que tu queres?”
Pedi para se editar pelo menos 5 romances de Eça de Queiroz. Fizeram uma edição de luxo. E eu pus Eça de Queiroz, como já tinha posto Fernando Pessoa, na literatura holandesa. Aliás, Pessoa desde 1992 já vendeu para cima de 150.000 (cento e cinquenta mil) exemplares na tradução do meu colega. Não tem ideia do impacto de Fernando Pessoa na literatura holandesa! A tradução é genial.

O que é que traduziram na Holanda?

Traduziram o “Livro do Desassossego”, “ A Mensagem” e traduziram uma colectânea grande de poemas… O essencial de Fernando Pessoa.
Sabe… A vaidade está satisfeita, a parte financeira também está satisfeita….

Perguntei-lhe quando é que tinha escrito “O Rebate” porque há uma grande diferença entre a forma de escrever de “O Rebate” para “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”[penúltimo livro editado] …

…aí há vinte anos de diferença.
O meu sonho na vida era ser realizador de cinema. Ainda fiz dois anos no IDHEC, em Paris, mas descobri uma coisa triste. Eu sou muito individualista e tenho horror a estar dependente, a precisar de [algo] para funcionar. O cinema não é feito pelo realizador; é pelo homem do dinheiro. O homem do dinheiro é que diz “Eu não quero essa cena. Deita fora.”. Alguém estar a dizer-me…um editor que me dissesse “Isto tem de mudar. Põe um bocadinho mais de sexo…”! Eu tenho tido uma sorte do caneco até agora: dois editores na Holanda e o da Quetzal são gente que me compreende e que se pegam [no livro] não vão mexer. Essa história do “Editor” [escola americana] … mas de quem é o livro? É meu ou é dele?
Por exemplo, O John Grisham não escreve. A Editora tem uma colectânea de cinco ou seis ou dez sujeitos.

Ghostwriters…

É assim. É um produto industrial. Por isso, todos os seis meses vem um livro e o homem anda de férias.
Eu sou da fase simples, do artesanal, e de eu próprio. Já vendi tanto livro que me deu aquele consolo: ”fizeste uma coisa bonita” [risos]

Já deixou a sua marca…

Portanto, o meu sonho era o cinema. O meu sonho era escrever guiões para o cinema. Não tinha muito interesse na literatura. A literatura era uma coisa que me parecia tão superior, tão acima daquilo que eu podia alcançar. Li muito principalmente Eça, Camilo, Zola, Balzac e esta gente deixou uma marca tão importante em mim que eu olhava lá para cima.
“Montedor” foi escrito numa espécie de revolta contra a situação familiar e social portuguesa, depois veio “O Rebate” e esse era mais feito para ser um guião de filme porque é muito visual.

E segmentado, não é? Tanto a nível da estrutura, que é muito segmentada e plural (estamos com uma personagem e logo a seguir estamos com outra), como a nível de linguagem, que é como que “cubista”, ou seja fala da chuva e depois fala do cão depois fala da senhora… salta de imagem em imagem sempre com uma ideia em comum. Há coerência entre a estrutura e a construção frásica. Foi pensado assim?

Foi, foi propositado. É muito visual. Qual foi uma crítica importante que me fizeram? “Não se sabe quem é que está a falar!” [risos]
E eu disse “Você entra no livro e não está a pensar no que é que a Joana disse.” Esse é o costume dos maus escritores: “Então ele disse…e ela disse…e eles saíram”. Não! O respeito pelo leitor implica que você não vai julgar que o leitor é estúpido porque ele não é. O que você vai ser é muito humilde e saber que o leitor é muito competente e muito capaz. Claro que há uns – inclusive os críticos- que não serão capazes de acompanhar, mas a culpa é deles não é minha.

Passando do nível estrutural para o nível lexical. Há palavras que já caíram em desuso e há muitos regionalismos…

A menina da Câmara Clara, ontem, disse assim: “Ai! Eu gostei tanto do seu livro e sabe porquê? Tem lá tantas palavras que eu ouvia da minha avó, inclusive «cu de arroba» ” [risos]
Outro senhor disse “Que carinho! Pela primeira vez em cem anos eu vejo uma frase em que diz “Vós tendes lume? ”
O Você nos anos cinquenta e sessenta era insultuoso! Agora vieram as telenovelas brasileiras e limparam a coisa pelo mais baixo.

O Vós desapareceu da oralidade… e da escrita também. Não sei se foi por escolha, mas vi que o livro não seguiu o acordo ortográfico.

Ai não! Por amor de Deus! Eu não sou do Acordo…É uma bandalheira, é uma coisa tosca. Tudo aquilo que na língua, na ortografia, era sinal e ajudava… ai não sigo, não…

Enquanto estava a ler o livro dei comigo a pensar que era uma tragédia transmontana. Ninguém morre, mas também ninguém se safa. Há aridez e azedume em relação à sociedade. Porquê essa visão tão pessimista?

Não é nada pessimista. É carinhosa. Eu já vou explicar… De vez em quando digo e não é brincadeira: Nasci em meados do século XIX. Vila Nova de Gaia, o lugar onde nasci, em 1946 ainda não tinha luz eléctrica. Nós íamos, nesse século XIX em Agosto e Setembro, para Trás-os-Montes, e eu caía de imediato no Império Romano. Já tenho dito várias vezes… Os instrumentos da lavoura que nós tínhamos até aos anos sessenta do século passado, em Trás-os-Montes, eram os mesmos que você encontra nas gravuras romanas inclusive o arado de pau. Isso deixaram os romanos. O carro-de-bois, que em Trás-os-Montes ainda se vê e que as pessoas agora põem no quintal, é o mesmo que você vê nas gravuras romanas inclusive o tamanho das rodas.
Ora bem…eu vinha de Vila Nova de Gaia, em meados do século XIX, e chegava ao império romano.
A Margarida [Ferra] esteve lá ontem na casa que foi do meu avô. Atrás da casa está um bocado de terreno que é de um primo, mas naquela altura era, sem vergonha de ninguém, o cagadouro público. As pessoas vinham ali atrás daquela parede, as mulheres levantavam a saia e os homens arreavam as calças e, conversando, faziam ali as suas necessidades. O ânus, quem o limpava limpava-o com uma pedra com pó ou levava um bocadinho de palha. Você não vai acreditar nisto, mas é assim. Da minha infância, nos anos trinta, até quando me fui embora (tinha 19 anos), até 49, era assim. Por isso, não sou eu a “pintar” mal a situação! Você não imagina! As pessoas iam de porta em porta com uma pinha na mão… sabe o que é uma pinha, não sabe? Com uma pinha na mão, as mulheres iam às vizinhas: “Tens o lume aceso?” Para poupar o fósforo! Um fósforo!

Obviamente que havia muita pobreza. O imigrante que vem [de França] com a esposa traz hábitos completamente diferentes e…

Primeiro, ele teve pouca sorte. Eu vou-lhe contar outra história. A Maria Isaura Pereira de Queirós, que morreu há 4 ou 5 anos, era socióloga brasileira, professora na Sorbonne, e conhecida em todo o mundo como socióloga. Quem via a Maria Isaura julgava que era criada de servir. Ela foi à Prefeitura da Polícia, em Paris, para renovar o visto e estava sentada ao lado de um sujeito e às tantas perguntou-lhe a nacionalidade. Era português. E falou com o rapaz e disse-lhe assim “Então…está contente?”; “Estou contente, estou contente»; “É casado?”; «Não, não sou porque eu tinha uma rapariga em Aveiro e queria casar com ela, gostava muito dela, mas ela foi muito leal comigo e disse que o patrão já lhe tinha feito o mal”;
E então diz a Maria Isaura assim “Mas lá na sua aldeia deve haver raparigas”; “Há minha senhora, mas não fazem nada”; “Mas então case com uma francesa!”; “Mas aqui fazem tudo!!” [risos]
É a tragédia do sujeito que vive em dois mundos totalmente diferentes! Ou tem a sorte de casar com uma mulher que traz dinheiro e fecha os olhos ao resto…mas depois é confrontado…

…com aquelas situações.
Ora…Encontra-se a si mesmo e a única coisa é fugir.

[O Rebate] Tem muitas memórias suas?
Não tem memórias. A única coisa que tem de real é uma cena de mulheres cheias de moscas, com os xailes, no verão e no fontenário. É tudo invenção.

Anda à volta com o morto, ainda? [sobre o novo romance]

Não. Eu ontem dei a boa notícia. É um milagre. Estou à volta com o morto há mais de dez anos e anteontem de manhã, quando acordei, estava a tomar café com a minha mulher e estávamos a conversar e eu de repente tive um “salto” na minha cabeça e “já sei o que vou fazer ao homem”. Não estávamos a falar de coisa nenhuma em relação a livros, estávamos a falar de coisas domésticas, e de repente descobri o que vou fazer. Para o ano tem livro novo.


Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com



Entrevista J. Rentes de Carvalho para a SIC Notícias (Link)




publicado por oplanetalivro às 12:14

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