«A Caixa Negra» de Amos Oz
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=560756
Abriria a caixa onde mantém as recordações de uma cicatriz? Amos Oz, em «A Caixa Negra», editado pela D. Quixote, diagnosticou e autopsiou a relação e obsessão das personagens que compõem este romance epistolar.
O autor optou por um prisma emocional e uma prosa muito adjectivada em «A Caixa Negra». A estrutura coral concretiza-se em perspectivas diversas sobre o desenvolvimento de várias relações de dependência. O diferimento da mensagem, num romance epistolar, é mais acentuado. Sabemos a data em que as cartas são escritas, marcando, assim, a diacronia do romance. O autor não se «esconde» na voz de um narrador único e pluraliza-se em várias vozes integrantes da própria história. A desintegração do fio narrativo é um risco enorme, mas Amos Oz constrói um texto coerente.
Além da diacronia da história, as personalidades criadas são avaliadas de forma sincrónica, ou seja, são demonstrativas de uma forte vertente emocional com todas as incoerências e atitudes de quem é controlado pelas emoções.
«Não há recuo depois desta carta. Nunca haverá. Estou a enganar o Michel tal como te enganei tantas vezes ao longo de seis dos nossos nove anos de casados.
Uma prostituta nata» (pág. 54)
Amos Oz leva cada uma das personagens principais até ao extremo, até ao limite da sua moral. Boaz, Ilana, Alex e Michel Sommo são sujeitos a provações que colocam em causa o que sentem, pensam ou acreditam.
«O meu ódio está a morrer e a minha lucidez morre com ele» (pág. 108)
Estamos perante um debate similar a um combate de boxe que só termina quando conhecem os próprios limites.
Em relação à história em si, Boaz é o catalisador do que a seguir virá. Filho de Ilana e de Alex Gideon, que no momento do escandaloso divórcio por adultério de Ilana não reconhece o filho, Boaz virá a obrigar os pais a enfrentar as cicatrizes de uma relação sado-masoquista hipoteticamente enterrada no passado. No meio desta relação encontra-se Michel Sommo, actual marido de Ilana e pai de uma filha em comum. Michel Sommo é um judeu sefardita que ambiciona o poder dos Judeus na Terra.
A dialéctica entre estas personalidades (e outras que aparecem pontualmente como o advogado Manfred Zakheim) é composta por agressividade, compaixão, pulsão sexual e muita ironia.
«Além disso, os sentimentos que a minha pessoa continua ou não a causar-te não me afetam de maneira nenhuma. Ficaria muito satisfeito se vocês os dois [Ilana e Michel Sommo] deixassem de manifestar tanto empenho nas minhas contribuições [dinheiro]: não sou nem o Banco de Inglaterra nem um banco de esperma» (pág.72)
A forma como é conseguida a criação de diferentes registos para cada personalidade é brilhante. Podemos, não só pela construção do texto mas também pelas suas características psicológicas, identificar quem as escreveu sem precisar de chegar ao fim da mensagem e ver a assinatura.
Ao longo da narrativa, o autor parece «jogar» com o favorecimento do leitor. As diferentes escalas de valores afastam-se ou aproximam-se da moral a que o leitor pertence. A repulsa, a comicidade e a empatia são efeitos provocados por uma manipulação emocional muito bem conseguida por Amos Oz em «A Caixa Negra».
«A felicidade, escrevi eu, é kitsch» (pág. 109)
Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com