02
Nov 13

Por vezes, somos deslumbrados por um livro que nos faz sentir pequenos.
“Para onde vão os guarda-chuvas” (Alfaguara) é um dos mais belos livros que li nos últimos anos.

Baseando-se num episódio passado com Gandhi, Afonso Cruz (1971; Figueira da Foz) recria uma história tão pura quanto isto: um muçulmano (Fazal Elahi) vê o seu filho (Salim) ser assassinado por soldados americanos.
Ele não consegue suportar a dor pela perda do filho. Decide oferecer a sua fortuna (fábrica de tapetes) a quem o ajudar a acabar com esse sofrimento. A solução é apresentada por um hindu (Nachiketa Mudaliar): adoptar uma criança americana.
Fazal Elahi parte à procura de pacificação. Ele precisa de se completar.
São 620 páginas de procura da bondade pela bondade, do perdão pelo perdão, sem recompensa nem retribuição além do acto em si. Desta forma, a ligação entre tudo e todos poderá ser o mais pura possível. É que para Elahi, tudo o que acontece na vida das pessoas está ligado “como se fosse um tapete, o primeiro ponto não está separado do último, e se alguém mexer num deles mexe inevitavelmente nos outros.” Pág.202
Ao longo do livro, o leitor será acompanhado por Badini, Isa, Ilia Vassilyevitch Krupin, Salim, Bibi, Aminah e muitas outras personagens concebidas pela intensa criatividade do autor português. São muitas personagens e muitas histórias que evoluem em narração intercalada. Os vários fios da narrativa são urdidos com a mestria de um hábil artesão. Afonso Cruz pega em cada personagem, em cada história, e tece um tapete voador como o do pai de Fazal Elahi. O progenitor do nosso personagem principal via magia no tapete de oração. “Para onde vão os guarda-chuvas” é isso mesmo: um mágico tapete de oração. É sobre ele que nos debruçamos para seguir uma prece ao amor, à tolerância, à Literatura.

As personagens são peças, com diferente importância, num tabuleiro de xadrez (metáfora da vida). No entanto, a dicotomia entre Bem e Mal, entre peças negras e brancas, entre espaços brancos e negros não é nítida. O Bem não elimina o Mal; incorpora-o e domina-o.
As acções, sejam com intuitos bondosos ou maldosos, têm, por vezes, o efeito contrário ao pretendido, e o sujeito passivo, mergulhado na incompreensão, reage o melhor que consegue.
O tímido e “invisível” Elahi sobrevive como pode, debatendo-se sempre com essa incompreensão. As suas interrogações são a sua maldição. Ele gostava de ser uma sombra numa parede, mas as perguntas que lhe surgem perante o mal que sobre ele se abate não o deixam sossegar, pois as “perguntas são a porta da rua. Quando nos interrogamos, quando duvidamos das nossas paredes, é porque estamos a passar pela porta. O facto de nos espantarmos com o que se passa à nossa volta é sinónimo de vida” Pág. 318.”

“Para onde vão os guarda-chuvas” captou esse nosso espanto, esse deslumbramento perante o que nos rodeia.
O universo de Afonso Cruz não se limita a criar empatia entre as palavras e a pré-existente sensibilidade do leitor. Não. O seu universo expande-se a cada livro. O leitor é transportado para sítios desconhecidos, “mentiras” com verdade no seu interior, ficção que quebra limites da realidade.
As personagens vão aparecendo, com maior ou menor relevância, em diversas obras. Elas não habitam um livro; elas visitam o leitor quando ele menos espera.Há intertextualidade entre vários livros do autor. Uma obra reflecte algo de uma obra anterior e, pode, inclusive, abrir uma janela para o leitor espreitar o que vem a seguir.
A filosofia é a essência da escrita de Afonso Cruz.
A sua linha de pensamento vai dar a outra linha pensamento. E a outra. Há uma miscigenação de ideias cristãs, islâmicas, judaicas, hinduístas.
Em “Para onde vão os guarda-chuvas” tanto podemos estar perante o esoterismo e misticismo da Cabala, ou os ensinamentos do profeta Maomé, ou a reencarnação hinduísta, ou mesmo perante a manifestação da dor como purificação cristã. Estranhamente (ou não) tudo faz sentido. Tudo se reflecte em tudo. É a rede mencionada pelo escritor em entrevista ao Diário Digital:
“A noção de fora e de dentro é uma ilusão. Os budistas têm uma maneira muito interessante de descrever isto: a rede de Indra. Eles descrevem uma rede, onde, no cruzamento dos fios, há umas pedras preciosas. Essas pedras reflectem todas as outras pedras preciosas. Cada uma reflecte todas as outras, ou seja elas todas estão dentro daquela. Apesar de estarem todas separadas, estão dentro e fora da pedra preciosa.”
Elahi é uma pedra muito preciosa neste xadrez. O autor construiu um personagem que sofre perdas irremediáveis, sente revolta, medo, cai, se ergue e… perdoa.
A sua fé parece curar tudo. No entanto, ele nunca deixa de se interrogar sobre o “equilíbrio absurdamente/moralmente/esteticamente desequilibrado” vigente no mundo.
Badini, o dervixe (monge muçulmano) mudo, também é uma figura inesquecível. O dervixe de cabelo, pestanas e sobrancelhas rapadas “fala” com as mãos. É através dele que Afonso Cruz substitui o fonema pela acção. As mãos de Badini agem para o bem do ser mais próximo. Longe está o tempo em que Badini era espancado pelo pai.
“Olhou para o filho, que estava ainda agarrado à porta, e pisou-lhe a perna. Badini não se mexeu, nem quando sentiu o tornozelo a estalar e o osso a aparecer de fora, como se espreitasse pela janela.”Pág154
A violência, nas suas diversas facetas (exploração infantil, maus-tratos a crianças, violência sobre a mulher, delito de opinião, intolerância religiosa, terrorismo), exerce uma posição angular neste livro. As formas de expressão escolhidas na abordagem destes assuntos vão além da prosa. No interior deste livro existem ilustrações sarcástimas, em “Histórias de Natal para crianças que já não acreditam no Pai Natal”, existe a prosa em que nos é apresentado Elahi, enriquecida com fotografias tiradas pelo autor, e ainda um livro de citações intitulado “Fragmentos Persas”.
 Afonso Cruz, em entrevista ao Diário Digital, fez suas (ou ao contrário?) as palavras de uma personagem ao afirmar: Em relação às histórias, penso também que as histórias são uma espécie de reencarnação hinduísta porque se me perguntarem qual é a coisa mais importante ou qual é a coisa que quero salvar minha, não penso que queira salvar o meu corpo ou o carácter. Isso não está sequer em questão. Gostava de preservar as minhas ideias.”

Pode ser este O Livro que preservará as ideias do escritor. O Tempo o dirá.
A história de Fazal Elahi, o “cego”, poderá ficar por muitos anos: “Disse Ali: A bondade é um cego a segurar uma lâmpada. Não lhe serve de nada, mas ilumina o caminho aos outros”Pág. 618

Por agora, pode-se afirmar que “Para onde vão os guarda-chuvas” alimenta a crença no poder redentor da Literatura. Já não é pouco.

Mário Rufino



Entrevista:  http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=624640

Para onde vão os guarda-chuvasPara onde vão os guarda-chuvas by Afonso Cruz
My rating: 5 of 5 stars
o meu texto sobre "Para onde vão os guarda-chuvas", de Afonso Cruz.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp...


"Por vezes, somos deslumbrados por um livro que nos faz sentir pequenos. “Para onde vão os guarda-chuvas” (Alfaguara) é um dos mais belos livros que li nos últimos anos."



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publicado por oplanetalivro às 08:43

27
Ago 12

Os Livros que Devoraram o meu Pai
Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009
Afonso Cruz



O livro de Afonso Cruz está para um leitor como uma loja de doces está para uma criança.
“Os Livros que devoraram o meu pai” é, sobretudo, um livro sobre livros.
Afonso Cruz abre portas para outras obras, fala de quem lê, fala de quem escreve, sempre com paixão e simplicidade.

Tudo começa quando Elias Bonfim, personagem principal, decide sair do mundo real, “desprovido de literatura”, e, no sótão, senta-se na antiga poltrona do seu pai, Vivaldo Bonfim, para ler as obras que ele lhe deixou.
Elias assume a herança/biblioteca que lhe foi entregue e entra no mundo onde a geografia e o tempo são delimitados pelo acordo entre escritor e leitor.
“O nome da cidade era Vladivostok. Consultei um atlas para saber, mais ou menos, onde ficava esse lugar. Não era nada perto de casa.
Tomei uma decisão para o dia seguinte: atravessar a Sibéria e chegar a Vladivostok, mesmo que isso custasse chegar atrasado para jantar” Pág. 81

 Podemos, desta forma, observar que a herança é muito mais do que o legado genético.
“porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias” Pág. 27
Elias Bonfim (EB) (repare-se no nome de família) dedica-se a viajar, procurar, descobrir, compreender… dentro de uma biblioteca.
Os livros encostados uns aos outros, numa prateleira, são universos paralelos.” Pág. 96
Visitamos vários autores de épocas diferentes, conhecemos ou revisitamos personagens de universos diferentes, tudo isto conduzido por uma história policial e montada de forma simples.
A estrutura narrativa é linear e tanto o aspecto sintáctico como semântico são dotados de autenticidade, sem construções frásicas demasiado complexas e léxico menos acessível. A narração mantém-se no essencial. O narrador não entra em descrições paralelas que afastam o leitor do que é fundamental na história. Estas características dotam a obra de capacidade para abranger diferentes faixas etárias.
Um dos aspectos mais interessantes, e devidamente sustentado pela simplicidade narrativa, é a diluição da fronteira entre obras literárias. Devido a isto, o autor oferece-nos a possibilidade de perceber que tudo é intertextualidade e que, afinal, quase tudo depende da interpretação por parte de uma identidade: o Leitor.
A fronteira entre a ficção e a realidade dilui-se no mutável espaço da interpretação.
O leitor (EB) afasta-se da passividade, liberta-se do voyeurismo inerente a qualquer acto de leitura que não consegue, por natureza, eliminar a distância inerente à visão de uma 3ª pessoa fora do texto, e envolve-se activamente na acção. Ao sentir que o seu neto já estava maturo, a avó entrega-lhe as chaves da porta do sótão que dá acesso a vários universos.
Elias Bonfim transforma-se em parte integrante e interfere no desenvolvimento da acção.
Até certa medida, é o que acontece quando “entramos” numa história.

Afonso Cruz transformou o leitor numa personagem que, de forma coerente e verosímil, dialoga com outras personagens de outros livros de séculos diferentes. Tudo isto num único espaço e num único tempo criados em “Os Livros que Devoraram o meu Pai”.
Esta obra vale por si própria, mas é, também, uma excelente apresentação do tanto que existe por descobrir nesses universos paralelos que são os livros.






Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 09:35

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