ENTREVISTA A MANUEL MOYA SOBRE “CINZAS DE ABRIL”
Para Revista "Os Meus Livros" de Março (número não editado)
Para Revista "Os Meus Livros" de Março (número não editado)
Enfrentar a memória e a culpa
Manuel Moya conseguiu em “Cinzas de Abril” uma obra literária de elevada qualidade.
A estrutura narrativa maximiza os pontos dramáticos de um enredo muito bem construído. O autor mostra muita segurança em todo o livro e ficamos com a ideia de que se a história fosse contada de outra forma, não teria tanto impacto.
As personagens, psicologicamente complexas, confrontam-se com o que são, com a ansiedade do porvir e, por fim, com a sua própria memória.
É um livro de desencontros entre pessoas, entre ansiedade/esperança e os factos, entre a memória e a aceitação da realidade. Acompanhamos o medo dos interrogatórios da PIDE, o estertor final do período de Marcelo Caetano, a ilusão e esperança que vieram com a revolução, a confusão social e política nos anos seguintes até chegarmos à década de 90.
É neste espaço temporal que Manuel Moya põe diferentes personagens, com distintas posições sociais e políticas, em confronto. A pluralidade de pontos de vista permite-nos acompanhar a evolução individual e, simultaneamente, social.
No fim, cada personagem está entregue a si mesma:
“Creio que chegou o momento de abrir a mala e de começar a liquidar as dívidas contraídas com o passado(…)”
Há uma ligação forte entre si, Lisboa e Literatura Portuguesa. Ao ler, pareceu-me que Manuel Moya tinha um mapa de Lisboa na mão e Fernando Pessoa na mente. Como é que se iniciou essa relação com Lisboa, Pessoa e, também, Sophia de Mello Breyner?
MM- Na realidade, resido muito perto da fronteira portuguesa. Portugal é uma referência natural em mim. Lisboa é uma cidade que frequentei no fim da minha adolescência e que me fascinou. [Fernando] Pessoa é um autor de referência permanente em mim. Li menos Sophia, mas é também uma grande poetisa.
A narração proporciona imagens muito fortes, descritivas, diria mesmo cinematográficas. Captou, também, a melancolia que, muitas vezes, nos [portugueses] domina. Que tipo de pesquisa fez para escrever este livro?
MM- Não fiz nenhum tipo de pesquisa. Nem sequer tomei notas. Tenho Lisboa na cabeça. É uma cidade que frequento e com a qual tenho uma especial relação afectiva.
Existe, hoje, algum afastamento da geração pós-25 de Abril em relação à revolução. O que o levou a contar uma história tão ligada a esse momento?
MM- Bem, conheci Lisboa no momento imediatamente posterior. Todavia era palpável a atmosfera do pós-25 de Abril. Creio que foi um momento mágico, não só na história portuguesa, mas também europeia. Até a história espanhola cambiou a partir desse dia. A nossa transição não é pensável sem a sombra do 25 de Abril. O 25 de Abril foi a última revolução romântica, a filha mais formosa da [Revolução de] 68
“Cinzas de Abril” conquistou o Prémio “XI Unicaja Prémio Romance Fernando Quiñones 2010” para o qual, se não me engano, concorreram obras de diversos países como Argentina, México, EUA, Chile, Alemanha, França, Cuba, Costa Rica e Roménia.
A 1ª pergunta que me surgiu quando comecei a ler o livro foi “Quase 38 anos depois da Revolução o que poderá ser dito que ainda não foi dito?”
Poderá o lugar de onde se vê [escritor espanhol, residente em Espanha] e o tempo passado serem elementos importantes para se contar esta história?
A 1ª pergunta que me surgiu quando comecei a ler o livro foi “Quase 38 anos depois da Revolução o que poderá ser dito que ainda não foi dito?”
Poderá o lugar de onde se vê [escritor espanhol, residente em Espanha] e o tempo passado serem elementos importantes para se contar esta história?
MM- Na realidade, Cinzas não é propriamente uma novela histórica, se bem que, claro, se desenrola em um momento crucial da nossa história, mas eu creio que é uma novela que fala mais de indivíduos presos a um tempo crucial do que outra coisa. Pelo menos assim gostaria que fosse.
A não-linearidade da narrativa potencia a vertente dramática. Noutro prisma, a pluralidade de “ângulos” sobre os acontecimentos narrados dá-nos diferentes perspectivas de um período da história de Portugal. Teve sempre em mente esta estrutura? A incidência da narração sobre diferentes personagens pareceu-lhe sempre a melhor opção? Os “passos” fulcrais estavam presentes na concepção do romance?
MM- Bem, dado que é uma novela coral, de onde operam personagens distintos, cenários distintos e períodos distintos na vida desses personagens, pensei que a estrutura devia adaptar-se a essa complexidade, mas não estava de todo na cabeça. As novelas costumam rebelar-se quando o autor é demasiado rígido nas suas concepções.
Durante o romance, o leitor tem uma perspectiva interior (“eu-narrativo”) e exterior (quando vê Ilídio, por exemplo). De quem é esta “voz” que nos fala na 1ª pessoa e que, se não me engano, não chega a ser nomeada?
MM- Bem, o narrador é só o narrador. É certo que não aparece o seu nome, mas esse é um elemento que aproxima o leitor da narração, pois parece que é ele que conta a história. Interessa-me sempre que o leitor intervenha na leitura.
As personagens sofrem muitas alterações no campo afectivo, ideológico, intelectual. Houve a preocupação em não condenar nem absolver cada uma das personagens?
MM- Na realidade, numa ditadura todos são vítimas. Uma ditadura só pode suster-se com a mentira e o terror. Torturadores e torturados são vítimas do sistema. Com isto não quero justificar nada, nem absolver a tortura nem quem a exerce, mas no fundo uns e outros são “vítimas” da barbárie que representa uma tirania.
Há uma determinante força social sobre a vontade individual. Sophia não se adapta. O narrador adapta-se. Em consequência, os destinos são muito diferentes. É ambivalente: A inadaptação às regras (antes do 25 de Abril) levou à revolução. A mesma inadaptação à realidade teve um desfecho trágico para Sophia. Estaremos condenados, mais cedo ou mais tarde, a nos adaptarmos à realidade, por mais hedionda que seja, para sobreviver? Não foi isso que Ilídio (elemento da PIDE) fez durante o regime de Marcelo Caetano?
MM- Existe algo disso, sim… No fundo não somos mais do que sobreviventes. Uns adaptam-se ao espaço ou ao tempo para sobreviver. Mas, afortunadamente, existem indivíduos que se rebelam, que saltam sobre o estabelecido. Eles são os motores do pensamento e do mundo. Fernando e Sophia são assim. Mas depois da rebelião não há marcha atrás e quando há só pode ser terrível.
Sophia sente muitas dificuldades de adaptação. Em Paris, ela era a estudante estrangeira; em Portugal, a angolana retornada, a africana branquinha, a estudante parisiense. Esta inadaptação capta, de certa forma, várias vertentes de desajustamento (a emigração, o retorno, o exílio). Ela nunca consegue ultrapassar as “cicatrizes” do período que durou desde o período marcelista até à pós-revolução. Sophia simboliza a divisão social e anímica da época marcelista? Terá a sociedade portuguesa ultrapassado a (des) ilusão de Abril?
MM- É uma maneira interessante de situar a Sophia. Sophia é a permanente estrangeira. É estrangeira em todas as partes. Sem dúvida que é uma vítima do Estado Novo, mas não tenho a menor dúvida de que é também uma vítima desses governos burgueses e conservadores que destroçaram as conquistas da revolução. Sempre acreditei que Portugal fez uma revolução para que seguissem mandando, ao fim de dois, três anos, os mesmos que foram derrotados. Ela deu tudo e depois ficou de fora, como aconteceu, também, com Otelo e tantos outros. A sociedade portuguesa devia mirar com maior interesse o seu 25 de Abril. Hoje mais do que nunca o 25 de Abril pode ser um símbolo, uma referência. A sensibilidade do 25 de Abril é algo que os portugueses e os que não são portugueses deveriam manter viva, quando a tirania do mercado ameaça tudo quanto conseguimos nos séculos XIX e XX.
O encontro entre Ilídio e o narrador é um acerto de contas com o passado.
“Creio que chegou o momento de abrir a mala e de começar a liquidar as dívidas contraídas com o passado (..)” Pág. 324
Teremos nós liquidado as contas com o passado? Como escritor e observador atento da realidade portuguesa, qual é a sua opinião?
“Creio que chegou o momento de abrir a mala e de começar a liquidar as dívidas contraídas com o passado (..)” Pág. 324
Teremos nós liquidado as contas com o passado? Como escritor e observador atento da realidade portuguesa, qual é a sua opinião?
MM- Bem, simbolicamente, é assim. O encontro entre o narrador e o velho colaborador da PIDE supõe uma espécie de trégua, de liquidação de um tempo passado. Há que mirar em direcção do futuro, parecem dizer.
Traduziu Saramago, Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Lídia Jorge, Miguel Torga, Mia Couto… Qual é a sua opinião sobre o momento que a Literatura de Língua Portuguesa vive, actualmente? Há algum escritor que gostasse de traduzir?
MM- Honestamente, não tenho uma opinião muito fundada sobre a actualidade da Literatura em Língua Portuguesa, como não tenho sobre a espanhola ou italiana. Estou habituado a ler autores portugueses e afrolusos e sinto-me numa certa irmandade com eles. No que respeita a tradução, direi que quando traduzi “Livro do Desassossego”, talvez o melhor livro do século XXI, fiquei suficientemente satisfeito por um bom tempo. No entanto, gostaria de traduzir [José Eduardo] Agualusa ou as novelas e contos de Torga, porque não?
Mário Rufinomariorufino.textos@gmail.com