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Nov 11

Conversa com Ruta Sepetys sobre “O longo inverno”

Ruta Sepetys escolheu um caminho difícil na sua estreia literária. A investigação para o livro foi penosa, extensa e envolveu grande sacrifício físico e emocional. “O longo inverno” é a história de um povo, simbolizado pelas personagens existentes, sob o discurso de violência de Estaline. Mas é também a história de Ruta Sepetys, do que ela ouviu e do que ela própria sofreu ao longo da investigação. Essa emoção está presente desde a primeira até à última página.
O ambiente histórico é verídico. Durante o período em que Estaline esteve no poder morreram milhares de pessoas. A autora recolheu testemunhos, visitou locais e, como se poderá ler na entrevista, algumas situações escritas foram, de facto, vividas pelos sobreviventes.
 A entrevista possibilita uma análise mais profunda do texto, do drama de um povo e do objectivo da autora. Ruta Sepetys desenterra as histórias de sofrimento e provações a que milhares de lituanos, letões, finlandeses, e não só, foram sujeitos, para nos mostrar, através destes exemplos, a indomável vontade de viver do ser humano.
Durante a entrevista, publicada em duas partes, poderemos conferir o impacto que a história teve na escritora e o impacto que poderá causar, também, no leitor.
A autora quis passar o testemunho de sofrimento de um povo. Foi bem-sucedida.

I parte


MR- Quando estava a preparar esta entrevista, li uma frase de Faulkner que capta a essência do seu livro: “ (…) o homem é indestrutível devido ao seu simples desejo de liberdade[1]”.

RS- Verdade! Em relação a estas pessoas, como eu descrevo no livro, a única coisa que não lhes conseguiram tirar foi o desejo de liberdade. Tiraram-lhes a bandeira, a língua e tiraram o país deles, literalmente, do mapa.

 Fez pesquisa, viajou para a Lituânia, conheceu sobreviventes, membros da família, membros do parlamento e esteve algum tempo numa prisão soviética. Conheceu Irena (sobrevivente). Ela contou-lhe histórias muito dolorosas.
Foi capaz de manter a distância emocional para escrever o livro? Quis manter essa distância emocional? Na primeira versão matou toda a gente…
 Eu fiz isso porque decidi não separar a investigação do processo de escrita e fazer tudo em simultâneo. Se eu fizesse a pesquisa e só depois a escrevesse talvez houvesse demasiada separação e eu queria que houvesse um efeito imediato no livro para que o leitor sentisse que estava realmente lá. Quando os sobreviventes estavam a contar-me o que se passava, [a informação] vinha tão depressa que eu, literalmente, [fez uma expressão de horror e admiração]. Então pensei: “ Eu quero que o leitor sinta desta forma” Eu pesquisava durante o dia e depois escrevia. Era duro, muito duro, mas a emoção estava lá porque eu ainda a sentia, como você disse. Eu estava chateada. Eu estava tão zangada! Quem faz isto? Quem consegue fazer isto a outro ser humano? Valeria uma vida humana tão pouco?
“…nós não queremos a vossa morte, nós queremos o vosso sofrimento” [testemunho de Elena no “Booktrailer”] Isto é o inferno?
Foi o inferno! E mantem-me acordada à noite pensando “ como é que isto aconteceu? Como é que nos tornámos tão cruéis e tão egoístas?” Na pesquisa, eu tive um breve vislumbre disso em mim mesma e nunca pensei que eu teria isso. Entrei neste processo pensando “Claro! Eu sou uma pessoa corajosa.” Se houvesse um ataque terrorista no hotel, eu assegurava-me que vocês saíssem primeiro e então eu sairia em último. Era o que eu pensava de mim mesma. Quando fiz esta pesquisa, percebi que somente não vos deixaria ir primeiro como passaria por cima de vocês para sair pela porta.
Quando eu estava na prisão, que era uma simulação, - uma simulação de 24 horas e era só isso- para nos levarem ao mesmo nível dos prisioneiros reais (eles não nos podiam fazer passar fome ou privação do sono porque eram só 24 horas), usaram a força física para nos «quebrar». Felizmente, eu nunca tinha sido espancada antes. Esta foi a 1ª vez na minha vida. Esta foi a 1ª vez que alguém me bateu ou me pontapeou. Nunca tinha passado por isso! Quando entrei nunca tive consciência, como americana estúpida, que tinha assinado [termo de responsabilidade] que podia partir uma perna… nunca me ocorreu que alguém me podia bater. Nunca! E quando aconteceu, eu estava tão chocada, aterrorizada e em pânico, porque tinha assinado que não podia sair…que mudei! Eu entrei no modo de auto-preservação. Pensei “Como é que vou sair disto? Como é que vou sobreviver? Eu não quero ser agredida novamente!”
…e eram só 24 horas…
Isto aconteceu nos primeiros cinco minutos! Nos primeiros cinco minutos, eu mudei e entrei em modo… “eu não quero ser agredida, novamente! Parem de me bater! Parem de me bater!” E estavam a agredir os outros estudantes, também. Estava um rapaz deitado no chão e ele disse-me “por favor” e… Mário…eu fingi que não o ouvia. Consegue imaginar?
…é uma reacção normal de um ser humano, penso…
Não, não para toda a gente. Foi o que aprendi. Não é para toda a gente. Como pai… você criou uma nova vida e tem uma nova identidade e psicologia. Acho que a coragem é instintiva em si e noutras pessoas, também. Eu pensava que era instintiva em mim, mas aprendi que não é. Isso é assustador.
Viu os seus limites e isso é assustador.
… Vi os meus limites em 5 minutos! 5 minutos!
A mãe de Lina era um exemplo de compaixão. Porque é que ela teve de morrer?
Na 1ª versão do livro, eu matei todos excepto Lina. Depois li e reflecti sobre a pesquisa que tinha feito, as conversas com os sobreviventes e pensei “espera um minuto! Eu falei com pessoas que sobreviveram! Porque é que estou a focar-me no horror? O que é isso diz sobre mim? Porque é que o escrevi tão negro?”
Elena, a mãe, representa um espírito que eu vi em tanta gente. Fez-me pensar na identidade de um pai/mãe e o que isso significa. O facto de as pessoas que eu entrevistei terem sido pais, mudou-lhes a consciência e a capacidade para a coragem. Eu quis que o leitor sentisse essa capacidade para a coragem e integridade da miraculosa natureza do espírito humano.
O coração de Lina estava cheio de ódio, no princípio, mas, no fim, ela muda…
Sim, Estaline falou num discurso de violência e estas pessoas estavam a sofrer estas horríveis atrocidades, mas algumas recusaram responder com violência. Quando chegou a altura, ela foi incapaz de cometer um acto de raiva. (…) Nikolay [guarda soviético] representa “Between Shades of Gray” [título original do livro]. Nós tentamos categorizar as coisas no extremo, é bom ou mau, mas nem sempre é assim.
Existem várias mudanças nas personagens; elas não se mantêm boas ou más…
Exactamente! Quando falei com os sobreviventes, eles disseram-me que essa dinâmica existia, especialmente com as pessoas como o “homem calvo” [personagem do livro], porque existia a população lituana e os lituanos judeus. Primeiro, os soviéticos ocuparam [Lituânia], depois os alemães, depois os soviéticos, outra vez, e foi por esta tripla tragédia, que muitos dos lituanos, quando chegaram os alemães, mostraram animosidade face aos judeus porque sentiram que eles tinham ajudado a entrega-los aos soviéticos. Então, alguns dos lituanos tornaram-se colaboradores nazis. É uma reacção humana, mas as pessoas que eu conheci estão agora a carregar essa culpa por terem jugado mal… no medo deles, esta dinâmica tão complexa…eles não podem voltar atrás e pedir desculpa”
Interpretei a existência do “homem Calvo” e de Ulyushka como o exemplo de pragmatismo e de uma forma fria de resistência aos soviéticos. No lado oposto, existia a ilusão, o amor e a compaixão. O que acha mais importante: o lado pragmático ou a ilusão?
O sentimento patriótico de quando algo é retirado… há certos aspectos que não podem ser retirados. Havia uma unidade e quando estas pessoas foram colocadas juntas, elas não se conheciam e viviam juntas e de repetente o “eu “dissolve-se e torna-se “nós”. Demorou muito tempo a muitas pessoas como o “homem calvo” e Ulyushka, mas aconteceu. De alguma forma, segurar a mão de um desconhecido e dizer “ Nós conseguiremos ultrapassar as dificuldades” foi muito poderoso e penso que foi essa unidade que lhes deu um objectivo. Sentir-se sozinho é muito vulnerável, sentimo-nos muito vulneráveis, mas ficamos com mais força quando em grupo.

…eles comungaram o sentimento de ilusão. O “homem calvo” queria suicidar-se, mas tinha medo de o fazer. No fim, ele já tinha um objectivo para continuar a viver…
Exactamente! E ele teve a oportunidade de se redimir. Os soviéticos pediram-lhe para escrever as listas, mas, no último minuto, ele recusou a fazê-lo. E deportaram-no. Ele podia ter ajudado os soviéticos, mas não o fez e agora estava a ser castigado por isso. Estas pessoas fizeram sacrifícios, independentemente dos diferentes motivos, e houve estas hipóteses de se redimirem. Nem toda a gente fez isso, mas as pessoas com quem falei disseram que quem era egoísta e individualista morreu rapidamente. Quando alguém estava doente, todos retiravam um pouco da própria ração. Quando se está sozinho e se afasta do grupo, não só fisicamente, mas emocionalmente, mentalmente, espiritualmente…



Entrevista a Ruta Sepetys
II parte (continuação)
O processo de escrita, situações verídicas, a nova geração de lituanos…


MR- Uma pergunta mais específica: Dividiu o livro em capítulos pequenos como se fossem cenas de um filme. Porquê?
RS- Primeiro, porque eu pensei que fosse mais imediato e a minha experiência como leitora… se há muitas passagens descritivas, apesar de gostar e ajudar a criar um cenário para mim, pode interromper o ritmo. Então, eu talvez escolha interromper a leitura. Se é um capítulo curto, tenho mais tendência em dizer “Ok. Mais um…”. Para mim, foi um «mecanismo rítmico» para manter o leitor focado. Eu sou uma leitora impaciente. Gosto sempre de avançar.
A 2ª razão é eu não ter estudado literatura. De certa forma é bom porque sou, definitivamente, uma seguidora das regras e se eu tivesse tido aulas sobre gramática ou para escrever literatura, provavelmente paralisava-me. Eu escrevo como se visse um filme. Para mim, é algo muito visual…
…esteve lá. Deve ser uma das razões, provavelmente. Vê as imagens…
…em vez de dizer “eu penso que esta personagem vai dizer isto ou isto, eu literalmente olho para o espaço vazio e imagino… eu vejo muitos filmes… imagino a interacção e os diálogos. Não penso “Ok. John diz…” Eu estou a ver como se de um filme se tratasse e transcrevo-o.
Porquê uma rapariga de 15 anos [a narrar]?
Por algumas razões:
Quando estava a entrevistar alguns sobreviventes e estava a rever a minha pesquisa, notei que a maioria das pessoas tinha exactamente a mesma idade quando estiveram na Sibéria. E isto é muito estranho. Porque é que eles tinham entre 14 e 24 anos? Porque é que não podia ser 7 anos de idade? Porque é que eles estavam todos na adolescência? Eles explicaram-me que as crianças mais novas, em muitos casos, eram demasiado fracas para sobreviver. Os adultos e as pessoas mais velhas não tinham a vontade de viver. Mas estes adolescentes, o espírito adolescente… tinham espírito de luta, eram teimosos. Os adultos haveriam de olhar à volta e dizer “Nós nunca sobreviveremos a isto!”
Quando vou visitar escolas eu pergunto: “ Se fossem deportados para a Sibéria, quantos de vocês sobreviveriam? E todos, entre os 14 e 13 anos… [levanta o braço], mas quando eu falo para adultos, num clube de leitura, eles, ainda antes de eu perguntar, dizem “Não sobreviveria a isto! Nunca sobreviveria!” É uma mentalidade! Aquela dinâmica fascina-me. Algumas coisas que me contaram, como adolescentes… aquilo era o inferno e o horror. Eles estão numa estação de comboios a ser separados das suas famílias, há pessoas a morrer e, no entanto, houve elementos da existência adolescente que permaneceram intactos. Uma rapariga contou-me que tinha conhecido um rapaz na estação de comboios, quem ela conhecia de vista de um clube em que eles estavam, e falaram na estação de comboios e tiveram uma ligação…
…Andrius [personagem do livro]?
Foi isso que inspirou! Ela disse que o tempo todo no comboio, pensou “ Em que carruagem estará ele?” Todas as vezes que o comboio parava e eles iam buscar um balde, ela procurava-o.
Ela escapou do comboio, não foi? E viu o pai dela.
Essa é uma história verdadeira de uma mulher chamada Irena. Ela contou-me que saltou do comboio para procurar o seu pai. Ela encontrou-o e ele deu-lhe um pedaço de presunto e a sua aliança de casamento. Enquanto me contava isto, eu chorava… Ela contava-me matéria de facto, esta trágica história, e a última vez que viu o seu pai foi através daquele buraco que servia de casa de banho. Eu tinha de pôr no livro! Isto eram coisas reais e ela era uma adolescente e para ela experienciar daquela forma…
A 2ª razão para escrever através do ponto de vista de uma adolescente foi… eu tenho este sonho de que o livro possa encontrar o seu caminho até às escolas e talvez os adolescentes possam ler e estudar esta parte da história.
Pensa que a geração mais recente foi moldada por este passado?
Eles não querem ser definidos pelo seu passado. Sentem que é uma âncora. Durante muitos anos viveram sob ocupação e agora não querem que a sua história os domine. A liberdade deles é tão frágil e estão a aprender a viver nela. Eles querem avançar tecnologicamente e economicamente.
Mas eles conhecem o passado?
Sim, eles conhecem o passado, mas a geração mais antiga sente que a geração mais nova está demasiado ansiosa em viver numa “nova pele” e que devem manter a referência de onde vieram. As pessoas mais novas dizem que se fizerem isso, estarão sempre ocupados de alma e espírito. ““Isto” aconteceu”, dizem, “ mas não nos define. Temos que ter fé em nós para avançarmos no futuro”
Sobre a nova geração, há uma frase de [Edvard] Munch, no livro…
…antes de ler, você foi a primeira pessoa que, ao longo de um ano, mencionou Munch. “Passei” 33 pinturas de Munch para o texto. Você foi a primeira pessoa que abordou e eu pensava que, por alguma razão, não tinha impressionado as pessoas. Por isso estou muito feliz!!
A frase é esta: “ Do meu corpo putrefacto germinarão flores, e eu viverei nelas e a isso se chama eternidade” . Por isto, eu perguntei sobre as novas gerações. Elas são as flores que nascem do passado.
Absolutamente! A bandeira lituana representa isso. É uma lista amarela para o sol dourado; uma lista verde para os lindos campos; e uma lista vermelha para o sangue. Sob o campo há gerações de pessoas que perderam as suas vidas e se sacrificaram pelo país. Concordo absolutamente consigo. É um pequeno país com grandes lições dentro dele.
Há uma linda frase dita pela mãe de Lina :” Uma maldade não nos dá o direito de retribuir com outra maldade”
Isso foi algo que um sobrevivente me disse quando eu perguntei “Nunca quis, se tivesse oportunidade, de matar e escapar? Ou roubar alguma coisa para lhes criar dificuldades?” Ele disse “Porque é que haveríamos de nos querer tornar como os nossos opressores? Porque é que haveríamos de querer perpetuar o mal dessa forma? Temos de quebrar esse ciclo de ódio”
Lina conta-nos a história. Ela escreve e nos seus desenhos captura, como Munch, a essência do que vê. Como autora, quem é a Ruta Sepetys? É a Lina que escreveu e escondeu os textos dentro de uma caixa ou as pessoas que desenterraram e mostraram a história ao mundo?
Ambas as opções são muito nobres. Eu gostaria de ser uma das duas… Eu sei que não sou Lina! Lina é quem eu gostaria de ser. Não me vejo como nenhuma… talvez eu seja apenas a porta que balança aberta para que as pessoas de um lado possam ver o outro lado e atravessem… Eu espero que, no futuro, como escritora, eu possa ser uma das duas hipóteses. Vamos ver nos próximos livros… Eu sei que serão sempre sobre amor…

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com




 Sobre o Livro em "Última Edição" de Luís Caetano (Link)










[1]William Faulkner in “ Entrevistas da Paris Review” (2009), Lisboa, Edições Tinta da China.





Between Shades of GrayBetween Shades of Gray by Ruta Sepetys
My rating: 4 of 5 stars




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publicado por oplanetalivro às 15:26

2 comentários:
Adorei a entrevista. Fiquei entusiasmado para comprar o “O longo inverno”.



silenciosquefalam.blogspot.com
miGuel pesTana a 10 de Novembro de 2011 às 19:12

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