08
Out 13

O meu texto sobre "A SEGUNDA MORTE DE ANNA KARÉNINA", de ANA CRISTINA SILVA (Diário Digital)

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=660519





publicado por oplanetalivro às 16:03

02
Out 13


A intensa inquietação de Valter Hugo Mãe.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=655153

Valter Hugo Mãe (n. 1971; Saurimo, Angola) tem a coragem de se desnudar perante o leitor. As palavras são o espelho das suas emoções, das suas fundações psíquicas. O escritor põe o coração no texto.

Em “A Desumanização” (Porto Editora), Halla, “a menos morta”, é uma menina islandesa cuja irmã gémea (Sigridur) faleceu muito nova. É pela sua voz que o leitor vai acompanhando a acção passada nos fiordes islandeses.
Será ela a narrar, durante os dois a três anos após a morte da sua irmã, a decadência da família, as transformações do seu corpo, a ruptura com a infância, a luta pela individualidade, o desaparecimento da ingenuidade, e a dor, principalmente a dor causada pela perda.
A morte de Sigridur vai consumindo a sua família, devagar, por dentro. Os pais vão morrendo de tristeza. A mãe, personagem destrutiva, é o contraponto do pai. Ela, para ultrapassar a dor, projecta a presença de Sigridur em Halla.
“[a mãe] Não admitia que dissesse que estávamos mortas uma da outra. Precisava, outra vez, que eu representasse a vida da Sigridur. Era imperioso que eu fosse a Sigridur também. E ela dizia: não tinhas este sinal. Quem tinha este sinal era a tua irmã. Aqui, no pé do pescoço. Aqui. Estás a ver. Eu fazia que sim com a cabeça. Calada. Ela parava de me bater.” Pág. 110
O Pai, no entanto, tem uma ligação diferente com a “menos morta”. É pela sua influência que Halla conhece a literatura, as limitações da palavra, a divina beleza da poesia.
Ainda durante o período em que Sigridur está viva surge uma figura masculina: Einar. O homem, que era nojento aos olhos de Sigridur e de Halla, tem uma história por contar. Um segredo que a amnésia impede de ser revelado. Ele será essencial no desenvolvimento e epílogo do enredo.
 Apesar da Islândia não se assumir como força primordial do romance, e como tal não permitir conferir características do povo islandês, o país onde o autor escreveu “A Desumanização” é mais do que um elemento pitoresco. A Islândia é importante no desenvolvimento psicológico das personagens. A sua geografia enfatiza a solidão.
 “Tudo na Islândia pensa. Sem pensar, nada tem provimento aqui. Milagres e mais milagres, falava assim. E tudo pensa o pior.” Pág. 47

“O sonho desperto”, que é a escrita/ leitura de ficção, permite ao autor exorcizar acontecimentos da sua própria vida através de sonhos, símbolos, metáforas, comparações, imagens e conflitos dramáticos.
Esses conflitos, a que Freud chama de “forças impulsionadoras da arte”, são a motivação inerente a toda a obra do escritor. Em “A Desumanização”, o recurso a símbolos (espelho, flores, morte, deus, boca, sangue, fogo…) e a colocação de hipóteses, com maior ou menor probabilidade de concretização (“como se…; “queria que…”; “talvez…”; “ou se…”) são estratégias fundamentais na construção da narrativa.
“Pensei que a alma de uma montanha poderia cair e tombar sobre mim e eu, tão pequenita, haveria de morrer esmagada. Ou, se a alma de uma montanha me entrasse no corpo e me fizesse crescer como um gigante, seria magnífico.” Pág. 83
A utilização destes recursos abre o texto a novas possibilidades e sentidos. A simbologia existente dota o texto com uma assinalável riqueza semântica e complexidade psicológica.
“Para a boca de deus atirei o meu filho. (…) Era uma flor alva de pólen de carne. Desceu. Escureceu na boca de deus. Entrou para o lado absolutamente silente do poema.” Pág. 129
A prosa de Valter Hugo Mãe, tanto neste livro como nos anteriores, partilha algumas das características do simbolismo, pois dela emerge a viagem pelo interior do escritor que, por sua vez, recorre à revitalização de vocabulário indevidamente banalizado (amor, coração), a ousadas combinações vocabulares e à secundarização do materialismo e da racionalidade.
A utilização da sinestesia, tão usada pelos românticos e pós-românticos, é um traço estilístico muito presente em “A Desumanização”.
Quando Thurid se senta ao piano, dentro da igreja, os sons apropriam-se das propriedades das cores, num exemplo de utilização da sinestesia de forma eficaz e equilibrada.
“E a Thurid tocava e outra vez murmurava e, subitamente, entendemos muito bem. Dizia: azul, azul, negro, branco. A Thurid achava que pintava. Achava que as teclas eram pincéis e via, certamente nas costas dos olhos, telas grandes de caleidoscópios maravilhosos. Quando ouvimos claramente as cores que enumerava, vimos também.” Pág.186
Arte dentro da Igreja. Nos romances de Valter Hugo Mãe existem temas que são recorrentes: A morte, a decadência física (desfiguração, velhice), o amor filiar, o amor paternal, a solidão e a religião.
No interior de uma escrita humanista, Valter debate a existência de uma entidade divina e da instrumentalização da fé. O episódio com Thurid permite que vá mais longe. O autor eleva a Arte a oração e elege a música como a expressão de eleição.
“ De verdade, tinha sido missa bastante escutar aquelas variações. Nenhuma tarefa faltava. Deus estava servido. Assim se servira, melhor do que nos passados domingos. Diziam as nossas pessoas. Muito melhor do que alguma vez o servíramos por ali”. Pág. 188
As palavras têm capacidade limitada. Só na poesia o som se alia à forma para chegar ao divino, à Verdade. De outra maneira, as suas limitações impedem a capacidade de o ser humano transmitir os seus pensamentos e a suas emoções. Na palavra não cabe a necessidade de o ser humano se transmitir.
“As palavras são nada. Deviam ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude ao que no mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos mais do que objectos equivalentes entre si, todos irmanados na sua ilusão” pág. 46

A presença contínua destes traços estilísticos, ao longo dos 6 romances do autor, forma um estilo de cariz psicológico, emocional, mas ao mesmo tempo cognitivo. Mas até este romance só “o remorso de baltasar serapião” (Prémio José Saramago 2006) conseguira a quase perfeita simbiose entre a sensibilidade do autor e o seu estilo, entre o conteúdo e a forma.
Em “A Desumanização”, a concatenação de diferentes imagens e acções resulta em impressões de invulgar beleza e lirismo. A caracterização psicológica das personagens é perturbante.
“A minha mãe disse: fazes tudo assim, maldita, fazes tudo como se fosses um bicho. Vou gostar de te ver morta como um bicho também.
E eu respondi: morra a senhora também, minha mãe" Pág. 126
O enredo, simples e linear, envolve o leitor. A vulnerabilidade do autor é inquietante. O texto é a projecção da sua estrutura emocional: dos seus medos, anseios, dramas, esperanças...
A combinação destes factores faz de “A Desumanização” uma obra com possibilidades atingir ou ultrapassar a qualidade literária de “o remorso de baltasar serapião”.
Este livro mostra o autor no seu melhor.
O leitor está perante uma das ficções mais intensas da obra ficcional de Valter Hugo Mãe.
Quem gosta do estilo do autor ficará a gostar ainda mais. Quem não gosta talvez tenha uma agradável surpresa.

Mário Rufino

Mariorufino.textos@gmail.com






publicado por oplanetalivro às 07:08

12
Set 13




Philip Roth, eterno candidato ao Nobel da literatura, é um dos mais importantes escritores norte-americanos da segunda metade do século XX. «Engano», publicado recentemente pela D. Quixote, é uma verdade fingida por Roth…

A narrativa decorre através de várias conversas, ou partes de conversas, em que Philip dialoga com a sua amante sobre diversos assuntos que vão desde o adultério à questão judaica. 
O que, no princípio, serve de fuga ao quotidiano evolui para a normalização e rotina. É um labirinto emocional. A fuga à moralidade não dá, ao contrário do suposto, mais liberdade. Os amantes mantêm-se enclausurados.
A verdadeira liberdade de Philip é exercida na ficção. Como ficcionista, ele movimenta-se numa zona cinzenta. A manipulação dos factos na construção de um outro universo permite-lhe manter-se num limbo entre a verdade e a ficção.
De outra forma, também se pode dizer que existem duas verdades: a da realidade e a do livro.
Essa manipulação acontece desde a estrutura do romance até a nada inocente atribuição do seu próprio nome de autor, Philip (Roth), ao personagem.
O autor desafia o leitor a separar a realidade da ficção ao criar um simulacro de si próprio, Philip Roth, para se poder imaginar a ter um “affair” no livro.
O leitor mais incauto facilmente confunde esse personagem com o autor.
A colagem da ficção à biografia, por parte dos críticos, é alvo de sarcasmo:
«Eu escrevo ficção e dizem-me que é autobiografia, escrevo autobiografia e dizem-me que é ficção, por isso, já que sou tão burro e eles tão espertos, deixá-los a eles decidir o que é ou não é» (pág. 181)
Philip  é um predador de comportamentos, histórias e palavras.
A narrativa, em grande parte construída em discurso directo, concentra a tensão existencial dos seus actores em cenas (maioritariamente) curtas. Numa mise-en-scène minimalista os diálogos são intensos, sem superficialidades, e desconcertantes.
Durante esses diálogos, que antecedem ou sucedem o acto sexual, as próprias personagens ficcionam-se através de role-playing. O fingimento é a base de toda a ficção.
A estrutura do romance é um bom exemplo da plasticidade deste género literário. A fragmentação, a ausência de descrições e a caracterização emocional das personagens entregue (maioritariamente) à acção obrigam o leitor a abandonar a sua passividade. Roth exige que o leitor participe activamente na construção do sentido.
Os capítulos aproximam-se, em alguns casos, da encenação teatral. A própria construção do romance (caderno de notas, por exemplo) é o romance na sua vertente mais visível e interpretável.
Nos últimos capítulos, que iluminam tudo o que foi escrito/interpretado anteriormente, o leitor percebe que também ele próprio foi envolvido numa teia de enganos.
Essa comédia de enganos não acaba na já referida questão biográfica. Roth vai mais longe. Várias personagens criadas em livros anteriores habitam «Engano». Elas aparecem, ainda que fugazmente, para diluir ainda mais a fronteira entre facto e imaginação.
Além disso, o role-playing ganha outra dimensão.
Através do seu simulacro, Roth ensaia um debate entre ele e um júri. A matéria de análise é as facetas mais polémicas da sua obra: a questão judaica e o sexo. O júri existente tanto pode ser a representação dos leitores, dos críticos ou mesmo das mulheres.
À adjectivação de misoginia, por parte de feministas, o autor responde assim:
«O senhor faz parte da massa de homens que vêm infligindo às mulheres grande sofrimento e extrema humilhação... humilhação de que só agora começam a ser libertadas, graças à ação incansável de tribunais como este. Porque é que publicou livros que infligem sofrimento às mulheres? Não pensou que esses livros podiam ser usados contra nós pelos nossos inimigos?
- A única coisa que posso dizer é que essa vossa suposta democracia de igualdade de direitos tem propósitos e objetivos que não são os meus como escritor.» (pág. 109)
A literatura não se rege pelos princípios morais da sociedade.
Novamente, Roth pega na realidade, molda-a como matéria-prima, e cria uma realidade paralela, ficcionada.
Em «Engano», Roth junta aos temas chave da sua obra (a questão judaica, o sexo, a traição) elementos tão importantes como são a confrontação do romance com os seus próprios limites e a dialéctica do escritor com a ficção e realidade.
Mais do que um livro sobre a traição e adultério, «Engano» é um livro sobre o fingimento e a pérfida relação entre realidade e ficção.
«Engano», publicado em 1990 nos EUA, é uma soberba construção literária.

publicado por oplanetalivro às 09:05



http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=653971

“Emigrantes”, de Ferreira de Castro

A literatura não tem obrigação de lutar nem de salvar ninguém. A literatura não tem de estar vinculada a qualquer “ – ismo”. Não tem, mas pode.
Ferreira de Castro (n. Oliveira de Azeméis; 1898-1974), escritor e jornalista, é considerado um dos precursores do neo-realismo. A sua produção literária é declaradamente combativa e “engagé”.
“Emigrantes” marca o início da edição de toda a obra ficcional de Ferreira de Castro, pela Editora Cavalo de Ferro.
A ideologia subjacente à prosa de “Emigrantes” é motivo e assunto na construção do respectivo romance. O autor declara-os no Pórtico (prefácio):
“O problema da emigração não é, porém, um problema-causa, mas consequência de outro mais vasto e mais profundo. Assim, sob a forma do primeiro, o nosso romance pretende dar a essência do segundo”. Pág.10
A ambição e a necessidade motivam o Homem a abandonar a sua zona de conforto para aceder a novas oportunidades. A Migração sempre foi característica intrínseca ao Ser Humano. O abandono de território para procurar novos terrenos de caça era uma constante nos primórdios da nossa existência. A evangelização, o “espalhar a palavra”, implicava, também, a peregrinação para terras desconhecidas. Podemos observar estes aspectos em livros (ou documentos) como “Carta de Pêro Vaz de Caminha” “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, ou “Tratados da Terra e Gente do Brasil“, de Fernão Cardim, entre muitos outros nas ricas e plurais “Literaturas de Expressão Portuguesa”.

O que viria a ser França, Luxemburgo e Suíça, anos mais tarde, era então Brasil e os Estados Unidos da América: terra de oportunidades e abundância.
O Portugal do início do século XX é um país rural, pouco desenvolvido. O analfabetismo impera. Dentro destas condições, as pessoas de baixas habilitações têm a ambição de serem ricas, ou de, pelo menos, não passarem dificuldades. É o caso de Manuel da Bouça, personagem que acompanhamos do princípio ao fim do romance. Ele é um homem movido pela curiosidade, mas não só. A necessidade e a ambição empurram-no para uma aventura com objectivos precisos, mas de consequências imprevisíveis. Ele representa a escassez de escolaridade e posses.
Manuel da Bouça hipoteca, no presente, o que tem em Portugal (courelas) e separa-se da sua família (mulher e filha) para, em terras estrangeiras, entregar-se a uma quimera com o objectivo de alcançar uma vida melhor, no futuro. Não era o único. Uma palavra aparece recorrentemente no texto para caracterizar o fluxo migratório (portugueses, italianos, russos…): “Rebanho”.
 “ (...) lares inteiros que se deslocavam, famintos de pão e de futuro” Pág.79
O escritor, emigrante durante muito tempo no Brasil, faz da sua própria experiência, enquanto empregado em diversos trabalhos precários, matéria literária. As “dores” de Manuel da Bouça são, em parte, as do autor.
Também ele sofreu com a divisão de classes que fechava ao pobre as possibilidades de conquistar uma vida melhor. Talvez por isso, a pobreza seja apresentada de forma romântica e honrada.
“Manuel da Bouça pensou: «O urso trabalha para o dono. É o dono que lhe dá de comer, mas dá-lhe de comer com o resultado do trabalho que o próprio urso faz. Se não tivessem preso o urso, ele podia comer sem precisar do dono. Quando eu trabalho para os outros, eu sou, salvo seja, como o urso. Mas, com certeza, no Brasil e na América, os homens não são como ursos, pois lá eles enriquecem em pouco tempo.” Pág. 40

“Emigrantes” mantém, em 2013, a contemporaneidade e a pertinência temática, apesar da sua primeira publicação ter sido em 1928.
Ferreira de Castro construiu uma obra com uma riqueza lexical pouco vista em autores surgidos no primeiro decénio do século XXI. A prosa de “Emigrantes” é densa; nela abunda a adjectivação, os diminutivos e a metáfora. Os diálogos estão próximos da oralidade. As combinações semânticas deste nível “Como de costume, despenhadas as doze na igreja na matriz…” enriquecem o texto literário.
Quanto a Manuel da Bouça, ele é um homem em trânsito. É o pobre, o último do rebanho.
O autor parece amplificar, com “Emigrantes”, a voz do “Velho do Restelo”, no Canto IV dos “Lusíadas”:
"A que novos desastres determinas/ De levar estes reinos e esta gente?/ Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo dalgum nome preminente?/ Que promessas de reinos, e de minas/ D'ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? que histórias?/ Que triunfos, que palmas, que vitórias?

Mas quem seríamos nós, povo português, se optássemos por não procurar?

Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
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publicado por oplanetalivro às 08:58

04
Set 13


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=649997

“Cidade Aberta” (Quetzal), de Teju Cole (n. Brooklyn, EUA), exerce uma das muitas possibilidades abertas pela literatura: ensinar a fazer perguntas.
O autor, de ascendência nigeriana, esboça um mapa da mente humana, enquanto divaga pelas avenidas e ruas  de cidades emblemáticas como Nova Iorque e Bruxelas. A complexidade do relacionamento do ser humano com a sociedade, a que está ou não adaptado, e consigo próprio, numa perspectiva modernista, ou seja plural, inconstante e incoerente, é o leitmotiv de “Cidade Aberta”.
A crescente secundarização da oralidade implica, dentro das grandes cidades, mais isolamento. A voz é imersa pelo ruído. O individuo é motivado a não exprimir o pensamento. O homem fica cada vez fechado em si mesmo. Tal qual o narrador Julius.
A distância em relação ao Outro é enorme, apesar de o Outro estar mesmo ali, junto a Julius.
“Uma mulher morrera ali mesmo, do outro lado da parede à qual eu agora me encostava e eu não tinha sabido de nada. (...) Isto era o pior de tudo. Não reparara na sua ausência como não tinha reparado na alteração – porque deve ter havido uma alteração que se produzira nele [marido].” Pág. 30
A dialéctica entre a Arte (pintura, arquitectura, literatura) e a realidade é constante e essencial.
Escritores como Coetzee, De Man, Walter Benjamin, Tahar Ben Jelloun e Edward Said são citados de forma justificada. “Cidade Aberta” é uma porta para outros livros importantes para o esclarecimento/enriquecimento do leitor. Dentro desta dialéctica, Teju Cole oscila entre o pessimismo e o optimismo.

A capital financeira do Estados Unidos da América  e a capital política e burocrática da União europeia são as bases para um livro que é, essencialmente, um mecanismo literário de reflexão. Teju Cole não construiu uma narrativa assente num enredo complexo; aliás, o autor reduziu a história ao mínimo possível. A divagação emocional e intelectual ficou, desta forma, mais liberta das peripécias que surgiriam de um romance de acção.  Pouco ou nada se passa, excepto na cabeça de Julius, o médico psiquiatra, também de origem nigeriana, que nos vai narrando as suas inquietações.
Entre Nova Iorque e Bruxelas, Julius (ou Teju Cole?) aborda a clivagem entre o islamismo e o cristianismo, entre a figura de Jesus e a de Maomé, a imigração dos países do Médio Oriente e de África para a Europa e  Estados Unidos, A Questão Judaica – essencial, segundo o personagem Farouk, para a compreensão dos problemas de assimilação, adaptação e inserção cultural - a diferença entre etnias, as guerras civis no Haiti e no Uganda. Tudo apresentado num texto coerente, fluido, e de uma invulgar lucidez.
Uma das questões no texto de Teju Cole é a dicotomia entre o pensamento de Martin Luther e King e o de Malcolm X. Se o primeiro defendeu a igualdade entre todos, o segundo reclamou o respeito pela alienável diferença.
A  transversalidade do pensamento do autor nascido nos EUA, mas criado na Nigéria até aos 17 anos, permite a análise de várias vertentes do confronto cultural. Cole não se reduz a uma só parte. O leitor tem a possibilidade de “assistir” a um debate entre a cultura que recebe e a cultura recebida; tem a possibilidade, também, de acompanhar as interrogações do autor sobre as várias “tonalidades” do racismo.
Será que nos aproximamos do Outro para nos conhecermos a nós mesmos?
Seremos nós o nosso o nosso objectivo?
Nos EUA e na Europa, podemos facilmente apontar exemplos de dificuldades ou negação de adaptação pelas 2ªs e 3ªs gerações dos imigrantes, já nascidas no país onde vivem e onde fizeram a sua alfabetização. São gerações que não se revêem no seu país de origem e que adoptam uma visão romântica da cultura dos países dos progenitores.
Ultrapassado o período áureo do multiculturalismo, o cidadão é confrontado com a possível falência do projecto. A capacidade de chegar ao Outro, tanto na compreensão como no respeito, é limitada pela genética incompletude do Ser Humano. Chegamos perto, como indivíduos e sociedade, mas não o suficiente. Tentamos perceber o Outro, mas não conseguimos deixar de o julgar.
Terá o 11 de Setembro sido o epitáfio da tolerância nos EUA? Talvez não.
“Aquele sítio [do WTC] era um palimpsesto, como o era toda a cidade, escrita, apagada, reescrita”. Pág. 70


Mariorufino.textos@gmail.com



publicado por oplanetalivro às 20:40

03
Set 13


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=653322


Donald Barthelme (n.1931, Filadélfia), em “40 Histórias” (Antígona), explora o indefinível da literatura.
O autor norte-americano, fundador do “Creative Writing Program” na Universidade de Houston, é considerado um dos escritores mais importantes do pós-modernismo. E ao iniciar-se a leitura de “40 Histórias” rapidamente se percebe a razão.
A ousadia do autor na manipulação dos constituintes da narrativa breve, desde a estrutura ao recurso estilístico, é rara e consegue atingir a excelência.
Barthelme parece fruir da decomposição do primado da estrutura. O autor contraria a viciada expectativa do leitor. Nos seus textos, ele surpreende-o com o imprevisível.
A construção de imagens com efeitos imprevistos, devido à conjugação de elementos inesperados, causa estranheza e intensifica o prazer pela leitura.
“ Ah, eles divertiram-se imenso a fazer os exercícios, e nós dissemos-lhes para baixarem o traseiro enquanto rastejavam por baixo do arame, o arame era feito de citações em cadeia, Tácito, Heródoto, Píndaro...” Pág. 105

Barthelme surpreende através da sobreposição de várias realidades, do nonsense e da perspectiva cubista na conjugação dos vários elementos (vidas, efemérides, acontecimentos banais).
O leitor é obrigado a sair da sua expectável e sã realidade.
O “Barthelmismo” é surreal, labiríntico e hipnótico.
 “Tu aproximaste-te e caíste sobre mim, eu estava sentado na cadeira de verga. A verga soltou uma exclamação quando o teu peso se abateu sobre mim.” Pág. 14

O escritor norte-americano erige os seus pequenos mundos ficcionais sobre estruturas com diferenças substanciais. “A tentação de Santo António”, de estrutura clássica, contrasta com a desfragmentação de “Guarda-costas”.
A diferença entre estas duas narrativas breves demonstra a capacidade do autor em rasgar convenções e de confrontar o género literário com as suas próprias limitações.
“Guarda-costas” mostra as muitas possibilidades existentes na ficção. Neste analisa-se não o conto em si, mas as “costuras” da sua construção. Este conto é, sobretudo, uma ficção que incide, formalmente, nos caminhos possíveis antes e durante a sua construção.
O leitor observa o negativo ficcional da mesma forma que um fotógrafo analisa os negativos fotográficos das suas fotos. O realce presente nos contos existe em oposição à ditadura da forma.
Quando se pensa na apostasia de Barthelme ao cânone, é-se surpreendido com o classicismo de “A tentação de Santo António” e com um típico começo, “Deixa-me contar-te uma coisa...”, em ”Downsizing”.
Já em “Sinbad”, será a última parte do conto a iluminar a sobreposição de imagens até ali narradas.
Em “Chablis”, as vicissitudes da vida conjugal são perspectivadas com a ironia e humor típicas do “Barthelmismo”.
Em “O Génio”, temos a súmula do que é a escrita de Barthelme. O conto é elíptico, satírico e desconcertante.
A forma como o autor envolve o leitor é genial.
As suas histórias são, muitas vezes, perversas e perturbantes.

São 40 contos capazes de demonstrar que mesmo a Ficção pode ser ainda mais manipulada e testada.
Barthelme é um mestre da narrativa breve. “40 Histórias” candidata-se a ser um dos melhores livros de 2013.

Mário Rufino

Mariorufino.textos@gmail.com


publicado por oplanetalivro às 20:38

28
Jul 13


http://p3.publico.pt/cultura/livros/8700/passam-se-coisas-estranhas-na-livraria-noite-e-dia

publicado por oplanetalivro às 12:12

02
Jul 13

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=639223




John Freeman (n. 1974) exerceu o cargo de Editor da “Granta” desde 2009 até meados de 2013. Foi presidente do “National Book Critics Circle”, entre 2006 e 2008, e escreveu para publicações tão importantes como “The Los Angeles Times”, “The New York Times Book Review”, “The Guardian” e “The Wall Street Journal”.

O jornalista, editor e crítico literário esteve em Portugal para promover a “Granta” portuguesa e o seu livro “Como Ler um Escritor” (Tinta-da-China).

A editora Tinta-da-China continua a editar obras relevantes para a análise de textos literários.

Após a publicação de “Entrevistas da Paris Review” (2009), organizado por Carlos Vaz Marques, surge-nos, agora, “Como Ler um Escritor”.

A conjugação das duas obras permite acrescentar competências de leitura e, em consequência, capacidade de descodificação dos textos.


De forma individual, “Como Ler um Escritor” será uma mais-valia para o leitor, se for considerado como uma introdução ou abordagem inicial ao universo criativo de cada autor.

55 textos sobre 56 autores compõem esta obra de 406 páginas. Devido à relação entre a extensão da obra e a quantidade de autores mencionados, não existe um aprofundamento da matéria que leve o leitor a adquirir os conhecimentos necessários para aprofundar a leitura das obras de cada um dos entrevistados. O livro não atinge essa profundidade, nem parece ter esse objectivo. John Freeman consegue abordar uma quantidade relevante de autores essenciais na literatura contemporânea. É um dos méritos deste livro. Escritores como De Lillo, Updike, Roth, Murakami, Auster, David Foster Wallace, Theroux, Kazuo Ishiguro , Mo Yan, Rushdie são sujeitos à interpretação de John Freeman.


A colecção de entrevistas abrange mais de uma década.

Os textos são, bastas vezes, opinativos. A prosa distancia-se dos academismos e disponibiliza-se a diferentes capacidades de leitura. Uma das questões que o livro faz emergir é a diferença entre a leitura de um escritor e a leitura dos respectivos livros. Até que ponto o biografismo entra na ficção é uma problemática debatida no domínio da crítica literária. John Freeman explora muito bem esta questão.“Como Ler um Escritor” é, essencialmente, um conjunto de textos que permite ao leitor aceder, através da perspectiva literária e afectiva de Freeman, a aspectos, umas vezes mais outras vezes menos importantes, da vida dos escritores com possível influência na produção das consequentes obras literárias.

Apesar de não atingir a excelência de “Entrevistas da Paris Review”, o leitor tem acesso a uma elucidativa introdução ao pensamento de muitos dos principais criadores da literatura contemporânea



Mário Rufino

Mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 13:31

16
Jun 13


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=637437




Ricardo Menéndez Salmón (n.1971, Gijon), autor de “A Ofensa”, “Derrocada” e “O Revisor” (conhecida como a “Trilogia do Mal”), surpreende o leitor com uma obra que interroga as fronteiras dos géneros literários.
“A luz é mais antiga que o amor” (Assírio & Alvim) procura a simbiose entre o ensaio e a ficção.
O autor dividiu o texto em duas situações ficcionadas e uma real. Em 1350, a Europa é dizimada pela Peste Negra. Beaufort, futuro Papa Gregório XI, obriga Adriano de Robertis a destruir a blasfema “Virgem Barbuda”. Em 1970, Mark Rothko corta os pulsos. O seu suicídio é o culminar de dramáticos acontecimentos na sua vida pessoal. A sua obra, principalmente o domínio da ausência, a tentativa de capturar o vazio, através da inexistência de luz nas suas pinturas, é a revelação do interior do pintor. Em 2001, Vsévold Semiasin escreve uma carta explicando a sua loucura.
O leitor está perante a ruptura com a normalidade.
A homogeneização entre os textos é entregue à geografia (Sansepolcro), a uma obra de arte (“ Virgem Barbuda”) e, principalmente, ao tema.
 O que mais importa salientar não é o binómio realidade/ficcionalidade. “A luz é mais antiga que o amor” é um texto especulativo, pois baseia-se na possibilidade. Umas situações são reais, outras são fictícias, mas todas são possíveis.

Salmón debate a dialéctica entre o ser humano, a natureza e a criação. A relação da Arte com a Vida é o tema deste livro. A partir daqui, o tema é desenvolvido através de vários assuntos.
O escritor espanhol interroga-se sobre a relação entre a obra e o criador quando, nos três textos, existe a preocupação em ligar, quase como causa-efeito, a obra às vicissitudes da vida do criador, como individuo. A morte do filho de Adriano de Robertis, o abandono de Mark Rothko pela mulher, e a incompatibilidade de Semiasin com a época em que vive são factores fundadores das respectivas obras.
E vai mais longe. A vertente ensaística tenta iluminar, e a luz é essencial neste livro, a problemática da recepção da obra, das condições sociais em que ela é produzida, e da relação, sempre presente, entre Estética e Ética.
Menéndez Salmón transmuda-se para o texto (Bocanegra é o exemplo mais visível), enquanto se interroga sobre a verdade dessa mesma transferência.
A demanda do autor espanhol é património intelectual da História da Teoria da Literatura. Dentro ou fora do texto, o Autor, universal, procura a Verdade; tenta descobrir o objectivo – se é que há- da Criação; entender os processos mentais que contribuem para a produção de textualidade; descobrir até onde a textualidade (pintura, texto literário) criada é autónoma; ou perceber se a criação da arte é uma forma de experiência moral.
“A luz é mais antiga que o amor” é uma demanda que semeia perguntas na mente do leitor.
A complexidade do raciocínio do autor encontra a simplicidade de processos na escrita. O texto é iluminado por essa simplicidade, e o leitor poderá, assim, usufruir da luz que Salmón empresta a temas intrínsecos da Arte.

Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 10:29

01
Jun 13

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A editora Parsifal escolheu, para sua primeira obra editada, um livro de contos intitulado “Contos Capitais”.
O risco de começar com um género literário tão pouco publicado, em Portugal, foi atenuado com a participação de muitos nomes consagrados. Autores como Baptista-Bastos, Mário de Carvalho, Riço Direitinho, Maria do Rosário Pedreira, Miguel Real, Urbano Tavares Rodrigues e José Mário Silva conferem propriedades literárias suficientes para fazerem de “Contos Capitais” uma obra interessante no domínio das narrativas curtas.
Neste livro, cada escritor escreve sobre uma cidade. No global são 30 autores que escrevem 30 narrativas sobre 30 cidades.


Uma obra composta por tantos autores (26 escrevem em língua portuguesa e 4 em castelhano) apresenta, inevitavelmente, oscilações qualitativas. Algumas narrativas breves usam a geografia como mera decoração (“Bruxelas”, por exemplo). Outras, no entanto, valorizam a localização até não ser possível que determinada história possa acontecer noutra cidade (“Buenos Aires”).
No campo estilístico, a qualidade varia da cacofonia presente em “Estocolmo” até à sobriedade da prosa de Mário de Carvalho em “Ashitueba”, cidade fundada na imaginação do autor há cerca de 30 anos.
No aspecto formal, vários textos apresentam-se mais como crónicas (“Atenas”) do que como contos.
Há várias narrativas que merecem destaque, pois acrescentam muita qualidade a “Contos Capitais”:
Com um texto mais próximo da crónica do que do conto, Valério Romão valida a qualidade já apresentada numa ficção publicada, em Maio, na Revista Granta. O autor de “Autismo”, publicado pela Abysmo, vai conquistando a atenção dos leitores.
José Mário Silva oferece ao leitor, em “Washington”, um dos melhores contos do livro. Emotivo, sem artifícios estéreis, objectivo, o texto do autor e crítico literário conjuga muito bem o enredo com o aprofundamento psicológico das personagens, aproveitando, eficazmente, o contexto geográfico.
José Carlos Barros, em “Havana”, “transporta” o leitor para o ambiente social e político de Cuba, através da envolvente história de um treinador de futebol com capacidades idênticas às de José Mourinho.
Os textos de Mariana Ianelli, Alejandro Reyes, Urbano Tavares Rodrigues (talvez seja o que mais “obedece” à estrutura canónica do conto) merecem, pela elevada qualidade, serem relidos.

“Contos Capitais” pode ser um marco para novas estratégias editoriais. No ano em que surge a revista Granta, que dedica muito espaço a narrativas breves, e no ano em que Lydia Davis, autora de, essencialmente, “short-stories” ganha o “Man Booker International Prize”, a Editora Parsifal estreia-se no mercado com um meritoso livro de contos.
Variando do dispensável ao excelente, os textos editados nesta obra caracterizam-na como muito interessante e plural, tanto em estilos como em estruturas.
As fotos e as ilustrações são mais-valias na construção do significado.
O livro, como objecto, é de excelente qualidade gráfica.
Louve-se a tenacidade da editora Parsifal em editar um género literário tão pouco editado em Portugal.

Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com

publicado por oplanetalivro às 07:47

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