Valter Hugo Mãe (n. 1971; Saurimo, Angola) tem a coragem de se desnudar perante o leitor. As palavras são o espelho das suas emoções, das suas fundações psíquicas. O escritor põe o coração no texto.
Em “A Desumanização” (Porto Editora), Halla, “a menos morta”, é uma menina islandesa cuja irmã gémea (Sigridur) faleceu muito nova. É pela sua voz que o leitor vai acompanhando a acção passada nos fiordes islandeses.
Será ela a narrar, durante os dois a três anos após a morte da sua irmã, a decadência da família, as transformações do seu corpo, a ruptura com a infância, a luta pela individualidade, o desaparecimento da ingenuidade, e a dor, principalmente a dor causada pela perda.
A morte de Sigridur vai consumindo a sua família, devagar, por dentro. Os pais vão morrendo de tristeza. A mãe, personagem destrutiva, é o contraponto do pai. Ela, para ultrapassar a dor, projecta a presença de Sigridur em Halla.
“[a mãe] Não admitia que dissesse que estávamos mortas uma da outra. Precisava, outra vez, que eu representasse a vida da Sigridur. Era imperioso que eu fosse a Sigridur também. E ela dizia: não tinhas este sinal. Quem tinha este sinal era a tua irmã. Aqui, no pé do pescoço. Aqui. Estás a ver. Eu fazia que sim com a cabeça. Calada. Ela parava de me bater.” Pág. 110 O Pai, no entanto, tem uma ligação diferente com a “menos morta”. É pela sua influência que Halla conhece a literatura, as limitações da palavra, a divina beleza da poesia.
Ainda durante o período em que Sigridur está viva surge uma figura masculina: Einar. O homem, que era nojento aos olhos de Sigridur e de Halla, tem uma história por contar. Um segredo que a amnésia impede de ser revelado. Ele será essencial no desenvolvimento e epílogo do enredo.
Apesar da Islândia não se assumir como força primordial do romance, e como tal não permitir conferir características do povo islandês, o país onde o autor escreveu “A Desumanização” é mais do que um elemento pitoresco. A Islândia é importante no desenvolvimento psicológico das personagens. A sua geografia enfatiza a solidão.
“Tudo na Islândia pensa. Sem pensar, nada tem provimento aqui. Milagres e mais milagres, falava assim. E tudo pensa o pior.” Pág. 47
“O sonho desperto”, que é a escrita/ leitura de ficção, permite ao autor exorcizar acontecimentos da sua própria vida através de sonhos, símbolos, metáforas, comparações, imagens e conflitos dramáticos.
Esses conflitos, a que Freud chama de “forças impulsionadoras da arte”, são a motivação inerente a toda a obra do escritor. Em “A Desumanização”, o recurso a símbolos (espelho, flores, morte, deus, boca, sangue, fogo…) e a colocação de hipóteses, com maior ou menor probabilidade de concretização (“como se…; “queria que…”; “talvez…”; “ou se…”) são estratégias fundamentais na construção da narrativa.
“Pensei que a alma de uma montanha poderia cair e tombar sobre mim e eu, tão pequenita, haveria de morrer esmagada. Ou, se a alma de uma montanha me entrasse no corpo e me fizesse crescer como um gigante, seria magnífico.” Pág. 83
A utilização destes recursos abre o texto a novas possibilidades e sentidos. A simbologia existente dota o texto com uma assinalável riqueza semântica e complexidade psicológica.
“Para a boca de deus atirei o meu filho. (…) Era uma flor alva de pólen de carne. Desceu. Escureceu na boca de deus. Entrou para o lado absolutamente silente do poema.” Pág. 129
A prosa de Valter Hugo Mãe, tanto neste livro como nos anteriores, partilha algumas das características do simbolismo, pois dela emerge a viagem pelo interior do escritor que, por sua vez, recorre à revitalização de vocabulário indevidamente banalizado (amor, coração), a ousadas combinações vocabulares e à secundarização do materialismo e da racionalidade.
A utilização da sinestesia, tão usada pelos românticos e pós-românticos, é um traço estilístico muito presente em “A Desumanização”.
Quando Thurid se senta ao piano, dentro da igreja, os sons apropriam-se das propriedades das cores, num exemplo de utilização da sinestesia de forma eficaz e equilibrada.
“E a Thurid tocava e outra vez murmurava e, subitamente, entendemos muito bem. Dizia: azul, azul, negro, branco. A Thurid achava que pintava. Achava que as teclas eram pincéis e via, certamente nas costas dos olhos, telas grandes de caleidoscópios maravilhosos. Quando ouvimos claramente as cores que enumerava, vimos também.” Pág.186
Arte dentro da Igreja. Nos romances de Valter Hugo Mãe existem temas que são recorrentes: A morte, a decadência física (desfiguração, velhice), o amor filiar, o amor paternal, a solidão e a religião.
No interior de uma escrita humanista, Valter debate a existência de uma entidade divina e da instrumentalização da fé. O episódio com Thurid permite que vá mais longe. O autor eleva a Arte a oração e elege a música como a expressão de eleição.
“ De verdade, tinha sido missa bastante escutar aquelas variações. Nenhuma tarefa faltava. Deus estava servido. Assim se servira, melhor do que nos passados domingos. Diziam as nossas pessoas. Muito melhor do que alguma vez o servíramos por ali”. Pág. 188
As palavras têm capacidade limitada. Só na poesia o som se alia à forma para chegar ao divino, à Verdade. De outra maneira, as suas limitações impedem a capacidade de o ser humano transmitir os seus pensamentos e a suas emoções. Na palavra não cabe a necessidade de o ser humano se transmitir.
“As palavras são nada. Deviam ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude ao que no mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos mais do que objectos equivalentes entre si, todos irmanados na sua ilusão” pág. 46
A presença contínua destes traços estilísticos, ao longo dos 6 romances do autor, forma um estilo de cariz psicológico, emocional, mas ao mesmo tempo cognitivo. Mas até este romance só “o remorso de baltasar serapião” (Prémio José Saramago 2006) conseguira a quase perfeita simbiose entre a sensibilidade do autor e o seu estilo, entre o conteúdo e a forma.
Em “A Desumanização”, a concatenação de diferentes imagens e acções resulta em impressões de invulgar beleza e lirismo. A caracterização psicológica das personagens é perturbante.
“A minha mãe disse: fazes tudo assim, maldita, fazes tudo como se fosses um bicho. Vou gostar de te ver morta como um bicho também.
E eu respondi: morra a senhora também, minha mãe" Pág. 126
O enredo, simples e linear, envolve o leitor. A vulnerabilidade do autor é inquietante. O texto é a projecção da sua estrutura emocional: dos seus medos, anseios, dramas, esperanças...
A combinação destes factores faz de “A Desumanização” uma obra com possibilidades atingir ou ultrapassar a qualidade literária de “o remorso de baltasar serapião”.
Este livro mostra o autor no seu melhor.
O leitor está perante uma das ficções mais intensas da obra ficcional de Valter Hugo Mãe.
Quem gosta do estilo do autor ficará a gostar ainda mais. Quem não gosta talvez tenha uma agradável surpresa.
Mário Rufino