20
Abr 12


“A minha Cozinha”
Clara de Sousa
Livros D`Hoje

Se há dois mundos que me agradam e se completam, então esses são o da Literatura e o da Culinária. Comer, beber e ler são parte integrante da ideia de Paraíso. Apesar da “pressão” social para nos relacionarmos com a comida de uma forma funcional, estigmatizando os que não são magros, o prazer de beber, comer e ler ultrapassa essa “pressão”. Assim mesmo e sem receios. Então quando se analisa a ligação entre os alimentos e a sensualidade, o caso ganha outra gravidade…para quem não come.
Helena Vasconcelos em “Amor, Comida e Sexo” resume, de forma brilhante, a relação histórico-cultural entre o Ser Humano e a comida “Assim, a cultura romana estabelecia a relação entre o sexo e a comida numa base hedonista, centrada no prazer, a dos cristãos numa pecaminosa, criando os fundamentos de uma condenação moral do excesso, (não é possível esquecer como a origem do pecado é representada pela dentada que Eva dá numa maçã), e a dos bárbaros numa virilidade ligada à acção e à sobrevivência.
A História, particularmente a história literária, apresenta-nos uma relação mais complexa do que o sentido primário entre os alimentos e o Ser Humano. A Literatura, a memória e a sensualidade estão ligadas não só à forma como ao uso dos próprios alimentos. Proust, por exemplo, constrói a monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” partindo do cheiro e do gosto das madalenas. Obras como “O Banquete” de Platão, “Madame Bovary”de Flaubert, “O Amor nos tempos de Cólera”,de Gabriel Garcia Marquez, ou o mais recente “Correcções” de Jonathan Franzen (e muitas mais) contêm em si elementos que traduzem a ligação histórica entre a comida e a literatura. Ler “Alice no País da Maravilhas” enquanto se bebe “grappa” e se come pedaços de chocolate é levar a viagem literária a outro nível. E é uma viagem que obriga a repetição.
A necessidade de partilha, a continuação da memória e o “prazer” de comer e beber e conversar são a alma de “ A minha Cozinha”.
Clara de Sousa, profissão jornalista, idade…intemporal, escreveu o seu primeiro livro de culinária. É um livro de afectos, onde se comemora o prazer do convívio à mesa e onde se demonstra, principalmente, como a culinária é uma forma de transmissão cultural e familiar.
O seu gosto pela literatura não é recente. Clara de Sousa é formada em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras de Lisboa. E foi sobre literatura que começámos por falar: “O peso da borboleta” de Erri de Luca; “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai; “O Rebate” de J. Rentes de Carvalho, “Peregrinação de Enmanuel Jhesus” de Pedro Rosa Mendes e muitos mais…
Nesta breve conversa regista-se a conjugação destes mesmos ingredientes: A literatura, a gastronomia, a transmissão do património familiar e a…sensualidade.


A Clara cozinha desde os 9 anos e aprendeu muito com a sua mãe.É importante para si transmitir essa herança cultural aos seus filhos?

- Gostaria muito que eles tivessem desenvolvido a curiosidade e a pro-actividade que eu desenvolvi desde cedo na cozinha, mas admito que sou mais “castradora” do que a minha mãe. Preocupo-me em demasia com a possibilidade de se queimarem ou cortarem e fiscalizo mais. Mesmo assim, os tempos são diferentes… eu passava mesmo muito tempo na cozinha, fosse a comer, a conversar, a fazer os TPC ou simplesmente a preparar as refeições ou a “viajar” na maionese. Hoje em dia, nos seus tempos livres, os miúdos têm muitas mais opções, em muitos casos, muito mais sedutoras. Mais do que meus ajudantes, os meus filhos são, sobretudo, provadores… e são implacáveis.


Disse numa entrevista “O meu pai é um homem de demonstrar muito afecto através daquilo que dá”. O convívio em volta das suas receitas é uma forma de distribuir esse afecto?

- O meu pai é transmontano e quem conhece os transmontanos sabe da importância que a partilha de comida tem em termos sociais e culturais. Quem entre numa casa transmontana tem logo mesa posta e se não comer “ofende” o anfitrião. Eu cresci neste registo. Por um lado, uma casa de porta aberta para os amigos e para as “patuscadas”… e por outro, uma mãe que era uma referência, doméstica e não só, na arte de bem cozinhar. Uma mãe que sorria ainda mais quando a elogiavam por essa qualidade… quando lhe diziam que nunca tinha provado nada tão bom… quando lhe pediam os segredos, os truques; no fundo quando partilhavam o mesmo amor que ela pela cozinha. Nesse aspecto, eu e a minha mãe falávamos a mesma linguagem e é essa que tento perpetuar, seja com os que me estão mais próximos seja com os que estando longe e não me conhecendo pessoalmente entendem “esta minha linguagem” e a sua verdadeira essência. Nas apresentações do livro eu considero que é um pequeno mimo e é muito engraçado ver como as pessoas, que estão relativamente atentas/tensas, ficam muito mais soltas depois de comerem a mousse. Sim, é partilha – o que é bom partilha-se.


Cozinhar algo de especial só para si faz algum sentido?

- Não faz muito sentido é verdade. O desejo de partilha fala mais alto na preparação desses momentos especiais. Não consigo esse estímulo quando é só para mim, porque fico em “circuito fechado”. Com a família e os amigos é completamente diferente. Todos nós precisamos de uma maneira ou outra de aprovação – a cozinha acaba por ter os dois sentidos nessa estrada: a da partilha geradora de bons momentos e o retorno nas palavras de aprovação que dão estímulo para novas partilhas.  


Saiu da rotina em que estamos habituados a vê-la. Como tem sido a reacção do público? A pluralidade de talentos ou funções é muito invejada na nossa sociedade…

 - Tem sido uma reacção extraordinária, porque as pessoas têm possibilidade de confirmar que tudo isto é verdadeiro e vem do coração. A venda do livro só por si, para mim, não significa nada. O sucesso seria pífio e não se perpetuaria se não houvesse uma identificação, se fosse um livro pretensioso a querer ser mais do que aquilo que é. E as pessoas perceberam a razão da partilha, pelo amor que tenho a esta arte e pela simplicidade das receitas – mais do que eu, neste momento, são as pessoas que compraram o livro e que testam as receitas que melhor o promovem. E são elas que já me exigem um segundo este ano. Mas sobre isso ainda não decidi. Já li um ou outro comentário desagradável como se eu me estivesse a aproveitar da minha visibilidade mediática para fazer um livro sobre algo de que não sou especialista. Ora, a verdade é que eu não preciso de mais visibilidade e esta aventura até me poderia ter sido prejudicial. Mas quando fazemos as coisas pelas razões certas, acredito que o resultado só pode ser o melhor. Além do mais, os melhores pratos que comi em toda a minha vida foram feitos por “especialistas domésticos”. Paralelamente, sou jornalista há 20 anos e não tenho o curso de Comunicação Social e tal como eu muitos dos meus colegas e isso enriquece uma redacção, não a empobrece. A verdade é que há áreas em que a “especialidade” se desenvolve e apura com a prática. No jornalismo ou na culinária a prática já é de muitos anos.Sobre essa ideia ridícula de que só podemos ter um talento, enfim, é reveladora do espírito de quem pensa assim. Se cria inveja, paciência. A inveja corrói quem a tem. Eu prefiro olhar para uma pessoa multifacetada e sentir que ela é um estímulo para mim. Curiosamente, por causa do livro e do entusiasmo que coloco nestas partilhas culinárias, muitas pessoas ganharam ânimo para se aventurarem e testarem essas capacidades que pensavam que não tinham. O meu conselho para elas é um reflexo da minha postura perante a vida: o facto de correr mal uma ou mais vezes, não significa que vá correr sempre mal. Provavelmente só fizemos a opção errada para testarmos essas capacidades. E há-de haver um dia em que corre bem e a partir daí ganha-se a confiança necessária para que na maior parte das vezes corra bem. É tudo uma questão de abordagem, de atitude. Eu por natureza sou optimista e pró-activa, acho sempre que vou conseguir e entro em acção. Seja na cozinha, na bricolage, no jornalismo… Foi sempre assim. Já em criança era muito curiosa com as coisas que me rodeavam e que de alguma forma não compreendia ou não conhecia, fazia muitas perguntas e gostava de ter respostas que fizessem sentido, não bastava um ‘porque sim’. Se queria trabalhar a madeira, tinha de sentir a madeira, se queria treinar o meu cão, estudava e testava e insistia até conseguir, se queria assistir a um parto de uma coelha, ficava horas com o nariz encostado na porta da coelheira… e por aí fora. Isso fez-me percorrer com naturalidade e entusiasmo os vários caminhos que me trouxeram onde estou hoje.


Gastronomia, Literatura e jornalismo. Como é que concilia a sua profissão com o prazer de cozinhar e de ler?

- Fazendo uma gestão equilibrada do tempo… na lógica de “sempre por prazer” nunca por obrigação. Ter uma profissão que é uma segunda pele ajuda muito a esse estado de espírito. Quanto ao resto, há alturas em que dedico mais tempo a uma coisa, ou a outra, dependendo das fases por que estou a passar. Neste momento, por efeito do livro, acabo por dedicar mais do meu tempo livre à culinária do que à literatura, admito.


Na página do facebook sobre o seu livro escreveu algumas receitas, no dia dos namorados, muito…apelativas (Camarões de l'amour, - Frango com a fruta do pecado, Banana afrodite ou Fondue apimentado). Pode a comida ser uma forma de sedução?

- Se a comida é uma linguagem de afectos, é naturalmente sedutora. E pode também estar apimentada de sensualidade. É o que quisermos fazer dela, desde que bem feita será certamente eficaz.

 Parece-me que nem foi necessário recorrer aos seus dotes culinários para ser considerada a “mulher mais sexy de Portugal”…

-Pois eu sempre achei que a designação não fazia sentido – não fui, não sou, não serei nem nunca me senti. O que senti foi que as pessoas votavam na lógica de gostarem de nós, independentemente da parte sexy.

24 horas para se conquistar a pessoa de quem se gosta. Do seu livro, o que recomendaria desde o pequeno-almoço até ao jantar?

-A conquista da pessoa de quem se gosta não vem nas páginas dos livros… nem no meu nem nos que dizem ter soluções para tudo. A conquista da pessoa de quem se gosta só é possível com uma linguagem que não se escreve e muitas vezes nem se diz. Desculpe Mário, mas para esta não tenho a receita…


Das várias receitas que experimentei- todas excelentes- o doce de abóbora e o folhado de espinafres, bacon e chévre, ficaram deliciosos, apesar do cozinheiro. No entanto...”Pesto de Urtigas” é arrepiante. Fica bem com o quê?

- Pesto só fica bem com ‘pasta’, mais nada… seja pesto de urtigas, pesto de rúcula, pesto de espinafres ou, o meu preferido, pesto de manjericão!

 Lanço-lhe um desafio. Qual a melhor leitura para acompanhar:

Mousse de Lima – “As Formigas - Boris Vian”
Tarte de Caça – “As velas ardem até ao fim - Sándor Márai”
Salmão curado em casa – “Como água para chocolate - Laura Esquível”
Pezinhos de coentrada – “Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago

Há sempre um ingrediente secreto, algo que não partilhamos com ninguém. Qual a receita que não vimos neste livro nem iremos ver nos próximos?

-Essa já revelei na introdução: bacalhau com natas, receita da mãe. Porque ela só a revelou quando percebeu que iria partir.

O seu livro tem tido imenso sucesso. Quem já experimentou muitas das suas receitas pergunta, inevitavelmente: Quando é que publica um segundo livro?

- Mário… por favor… não me faça perguntas difíceis J


Mário Rufino

publicado por oplanetalivro às 11:45

22
Mar 12


ENTREVISTA A MANUEL MOYA SOBRE “CINZAS DE ABRIL”
Para Revista "Os Meus Livros" de Março (número não editado)





Enfrentar a memória e a culpa

Manuel Moya conseguiu em “Cinzas de Abril” uma obra literária de elevada qualidade.

A estrutura narrativa maximiza os pontos dramáticos de um enredo muito bem construído. O autor mostra muita segurança em todo o livro e ficamos com a ideia de que se a história fosse contada de outra forma, não teria tanto impacto.
As personagens, psicologicamente complexas, confrontam-se com o que são, com a ansiedade do porvir e, por fim, com a sua própria memória.
É um livro de desencontros entre pessoas, entre ansiedade/esperança e os factos, entre a memória e a aceitação da realidade. Acompanhamos o medo dos interrogatórios da PIDE, o estertor final do período de Marcelo Caetano, a ilusão e esperança que vieram com a revolução, a confusão social e política nos anos seguintes até chegarmos à década de 90.
É neste espaço temporal que Manuel Moya põe diferentes personagens, com distintas posições sociais e políticas, em confronto. A pluralidade de pontos de vista permite-nos acompanhar a evolução individual e, simultaneamente, social.
 No fim, cada personagem está entregue a si mesma:
“Creio que chegou o momento de abrir a mala e de começar a liquidar as dívidas contraídas com o passado(…)”


Há uma ligação forte entre si, Lisboa e Literatura Portuguesa. Ao ler, pareceu-me que Manuel Moya tinha um mapa de Lisboa na mão e Fernando Pessoa na mente. Como é que se iniciou essa relação com Lisboa, Pessoa e, também, Sophia de Mello Breyner?

MM- Na realidade, resido muito perto da fronteira portuguesa. Portugal é uma referência natural em mim. Lisboa é uma cidade que frequentei no fim da minha adolescência e que me fascinou. [Fernando] Pessoa é um autor de referência permanente em mim. Li menos Sophia, mas é também uma grande poetisa.


A narração proporciona imagens muito fortes, descritivas, diria mesmo cinematográficas. Captou, também, a melancolia que, muitas vezes, nos [portugueses] domina. Que tipo de pesquisa fez para escrever este livro?

MM- Não fiz nenhum tipo de pesquisa. Nem sequer tomei notas. Tenho Lisboa na cabeça. É uma cidade que frequento e com a qual tenho uma especial relação afectiva.

Existe, hoje, algum afastamento da geração pós-25 de Abril em relação à revolução. O que o levou a contar uma história tão ligada a esse momento?

MM- Bem, conheci Lisboa no momento imediatamente posterior. Todavia era palpável a atmosfera do pós-25 de Abril. Creio que foi um momento mágico, não só na história portuguesa, mas também europeia. Até a história espanhola cambiou a partir desse dia. A nossa transição não é pensável sem a sombra do 25 de Abril. O 25 de Abril foi a última revolução romântica, a filha mais formosa da [Revolução de] 68


“Cinzas de Abril” conquistou o Prémio XI Unicaja Prémio Romance Fernando Quiñones 2010” para o qual, se não me engano, concorreram obras de diversos países como Argentina, México, EUA, Chile, Alemanha, França, Cuba, Costa Rica e Roménia.
A 1ª pergunta que me surgiu quando comecei a ler o livro foi “Quase 38 anos depois da Revolução o que poderá ser dito que ainda não foi dito?”
Poderá o lugar de onde se vê [escritor espanhol, residente em Espanha] e o tempo passado serem elementos importantes para se contar esta história?

MMNa realidade, Cinzas não é propriamente uma novela histórica, se bem que, claro, se desenrola em um momento crucial da nossa história, mas eu creio que é uma novela que fala mais de indivíduos presos a um tempo crucial do que outra coisa. Pelo menos assim gostaria que fosse.


A não-linearidade da narrativa potencia a vertente dramática. Noutro prisma, a pluralidade de “ângulos” sobre os acontecimentos narrados dá-nos diferentes perspectivas de um período da história de Portugal. Teve sempre em mente esta estrutura? A incidência da narração sobre diferentes personagens pareceu-lhe sempre a melhor opção? Os “passos” fulcrais estavam presentes na concepção do romance?
MMBem, dado que é uma novela coral, de onde operam personagens distintos, cenários distintos e períodos distintos na vida desses personagens, pensei que a estrutura devia adaptar-se a essa complexidade, mas não estava de todo na cabeça. As novelas costumam rebelar-se quando o autor é demasiado rígido nas suas concepções.



Durante o romance, o leitor tem uma perspectiva interior (“eu-narrativo”) e exterior (quando vê Ilídio, por exemplo). De quem é esta “voz” que nos fala na 1ª pessoa e que, se não me engano, não chega a ser nomeada?

MMBem, o narrador é só o narrador. É certo que não aparece o seu nome, mas esse é um elemento que aproxima o leitor da narração, pois parece que é ele que conta a história. Interessa-me sempre que o leitor intervenha na leitura.


As personagens sofrem muitas alterações no campo afectivo, ideológico, intelectual. Houve a preocupação em não condenar nem absolver cada uma das personagens?
MM- Na realidade, numa ditadura todos são vítimas. Uma ditadura só pode suster-se com a mentira e o terror. Torturadores e torturados são vítimas do sistema. Com isto não quero justificar nada, nem absolver a tortura nem quem a exerce, mas no fundo uns e outros são “vítimas” da barbárie que representa uma tirania.


Há uma determinante força social sobre a vontade individual. Sophia não se adapta. O narrador adapta-se. Em consequência, os destinos são muito diferentes. É ambivalente: A inadaptação às regras (antes do 25 de Abril) levou à revolução. A mesma inadaptação à realidade teve um desfecho trágico para Sophia. Estaremos condenados, mais cedo ou mais tarde, a nos adaptarmos à realidade, por mais hedionda que seja, para sobreviver? Não foi isso que Ilídio (elemento da PIDE) fez durante o regime de Marcelo Caetano?

MM- Existe algo disso, sim… No fundo não somos mais do que sobreviventes. Uns adaptam-se ao espaço ou ao tempo para sobreviver. Mas, afortunadamente, existem indivíduos que se rebelam, que saltam sobre o estabelecido. Eles são os motores do pensamento e do mundo. Fernando e Sophia são assim. Mas depois da rebelião não há marcha atrás e quando há só pode ser terrível.


Sophia sente muitas dificuldades de adaptação. Em Paris, ela era a estudante estrangeira; em Portugal, a angolana retornada, a africana branquinha, a estudante parisiense. Esta inadaptação capta, de certa forma, várias vertentes de desajustamento (a emigração, o retorno, o exílio). Ela nunca consegue ultrapassar as “cicatrizes” do período que durou desde o período marcelista até à pós-revolução. Sophia simboliza a divisão social e anímica da época marcelista? Terá a sociedade portuguesa ultrapassado a (des) ilusão de Abril?

MM- É uma maneira interessante de situar a Sophia. Sophia é a permanente estrangeira. É estrangeira em todas as partes. Sem dúvida que é uma vítima do Estado Novo, mas não tenho a menor dúvida de que é também uma vítima desses governos burgueses e conservadores que destroçaram as conquistas da revolução. Sempre acreditei que Portugal fez uma revolução para que seguissem mandando, ao fim de dois, três anos, os mesmos que foram derrotados. Ela deu tudo e depois ficou de fora, como aconteceu, também, com Otelo e tantos outros. A sociedade portuguesa devia mirar com maior interesse o seu 25 de Abril. Hoje mais do que nunca o 25 de Abril pode ser um símbolo, uma referência. A sensibilidade do 25 de Abril é algo que os portugueses e os que não são portugueses deveriam manter viva, quando a tirania do mercado ameaça tudo quanto conseguimos nos séculos XIX e XX.

O encontro entre Ilídio e o narrador é um acerto de contas com o passado.
“Creio que chegou o momento de abrir a mala e de começar a liquidar as dívidas contraídas com o passado (..)” Pág. 324
Teremos nós liquidado as contas com o passado? Como escritor e observador atento da realidade portuguesa, qual é a sua opinião?

MM- Bem, simbolicamente, é assim. O encontro entre o narrador e o velho colaborador da PIDE supõe uma espécie de trégua, de liquidação de um tempo passado. Há que mirar em direcção do futuro, parecem dizer.


Traduziu Saramago, Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Lídia Jorge, Miguel Torga, Mia Couto… Qual é a sua opinião sobre o momento que a Literatura de Língua Portuguesa vive, actualmente? Há algum escritor que gostasse de traduzir?

MM- Honestamente, não tenho uma opinião muito fundada sobre a actualidade da Literatura em Língua Portuguesa, como não tenho sobre a espanhola ou italiana. Estou habituado a ler autores portugueses e afrolusos e sinto-me numa certa irmandade com eles. No que respeita a tradução, direi que quando traduzi “Livro do Desassossego”, talvez o melhor livro do século XXI, fiquei suficientemente satisfeito por um bom tempo. No entanto, gostaria de traduzir [José Eduardo] Agualusa ou as novelas e contos de Torga, porque não?


Mário Rufinomariorufino.textos@gmail.com



publicado por oplanetalivro às 08:43

12
Mar 12


Valeria Luiselli, autora do surpreendente «Rostos na Multidão», editado pela Bertrand, foi editora do magazine literário online «Letras Librés», publicou crítica literária, traduções de poesia e ensaios. E se há casos em que vale a pena mencionar dados biográficos de autores, este é, necessariamente, um desses casos...
A sua experiência em todos os aspectos profissional é parte integrante do excelente romance de estreia de Valeria Luiselli, «Rostos na Multidão», um romance onde a realidade e a ficção evoluem no mesmo plano. No decorrer da sua investigação, a própria narradora coloca-se como alvo de análise e a tradicional observação autor-personagem ganha um sentido contrário, uma observação personagem-autor, dotando o livro de maior complexidade. A estrutura da narrativa evolui em várias temporalidades. O dinamismo da prosa contrasta com a claustrofobia da narradora que, de forma aproximada a Dickinson, escreve sem sair de casa e é alvo de agressividade passiva tanto do exterior como do interior do seu pequeno espaço. A autora teve a amabilidade de conversar connosco e, como poderão ler nas suas declarações, iluminar aspectos essenciais da sua criação. Valeria Luiselli demonstrou uma segurança e qualidade incomuns para uma estreia. É um nome a seguir com muita atenção…


É o seu primeiro romance?

Romance, sim. Tenho um livro de contos e ensaios. [«Papeles Falsos»].

Este livro é quase uma ficção sobre literatura…

Sim, efectivamente.

Há um jogo entre o autor, a personagem e o leitor. Começam com alguma separação, mas vão ficando cada vez mais próximos.
Sim, completamente. Dentro do livro há um leitor que vai lendo um livro. A sua leitura vai modificando-se no próprio decurso do livro como sucede com um leitor.
A imagem da autora está muito «colada» à narradora. Expõe-se muito e joga com a fronteira entre realidade e ficção…

Sim… O fundamental é que é um livro sobre o processo de escrever um livro. Não é só isso… conta uma história, mas é um livro onde me interessava ser transparente com o processo de trabalho; interessava-me evidenciar a maneira como incide a ficção na realidade… como a ficção modifica a realidade, não só como modificamos a realidade para construirmos uma ficção, mas também vice-versa, como a ficção toca a realidade.

O que significa «Ingrávidos» [título do livro em castelhano]?

Não é uma palavra muito comum. A palavra significa algo que não tem peso…

O título em português [«Rostos na multidão»] é um pouco diferente…

Sim, mas também é meu. Para a edição em inglês escolhi o título «Faces in the crowd», que é um verso de Ezra Pound: 
«The apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet, black bough»
São dois versos que formam parte importante da ficção.

…estamos a falar do momento em que ele [Ezra Pound] está no metro, escreve um longo poema e depois reduz…

Sim, é um pouco lenda, um pouco verdade, não se sabe… Ezra Pound, no Metro de Paris, crê ver um amigo que teve e procura-o. Pouco tempo depois sabe que ele tinha morrido. A história, não minha, em torno desse poema de Pound é que, supostamente, Pound escreveu um poema muito grande sobre esse acontecimento e depois deu-se conta de que o poema não capturava a essência desse instante; então reduziu-o a duas linhas. Traduzi esse verso «faces in the crowd» para português e para italiano.
De alguma maneira captura a essência de perda de identidade definida em redor de uma multiplicidade de vidas que uma pessoa tem…. Vai–se sendo muitas pessoas e tem-se muitas mortes…

Se não se importa vou ler uma passagem do seu livro, pois penso que capta a sua visão/visões sobre o texto: «Li uma vez num livro de Saul Bellow que a diferença entre estar vivo e estar morto reside apenas no ponto de vista: os vivos olham do centro para fora, e os mortos da periferia para algum tipo de centro» (página 32). A partir daqui, tive a sensação de que, ao longo do livro, há dois tipos de observação: a observação da autora sobre as personagens e outra que é das personagens sobre a autora. Há uma dupla avaliação e a própria autora também é uma personagem. Por que é que se colocou como «objecto» de análise?

Tentei muitos pontos de vista, muitos espaços de enunciação para contar o que tinha a contar. Descartei muitos porque não funcionavam e depois de um ano a tentar distintos lugares, desde onde contar esta história - uma grande pergunta durante um ano: «Desde onde posso realmente contar esta história?» -, o resultado, depois de muitas provas, foi a de uma personagem que narrava desde um espaço íntimo, muito fechado. A narradora que vive numa casa e narra sempre do mesmo espaço, muito pequeno e confinado. O presente absoluto é narrado nesse espaço e isso permitiu-me sair e explorar muitas temporalidades, pelo menos quatro diferentes: Nova Iorque do passado recente; Nova Iorque de um passado remoto, dos anos 20; Nova Iorque dos anos 50… Encontrei um centro a partir do qual girava o livro. Este centro permitiu-me ter uma grande liberdade para construir uma novela de muito movimento, com troca de vozes, troca de perspectivas.

Há uma parte em que ela fica muito embaraçada quando o marido lê parte do que ela vai escrevendo. O marido representa, de alguma forma, o leitor?

Eu creio que sim. De alguma maneira representa… nem sempre as personagens desta novela representam coisas, mas suponho que, em alguma medida, sim. Elas não são formas ocas que representam significados. Eu trato de trabalhar com coisas muito humanas, não com personagens que representam valores e símbolos. As minhas personagens não são simbólicas, embora algumas das suas acções tenham um alcance maior e que se podem ler simbolicamente ou metaforicamente ou abstractamente. E sim... Digamos que a leitura do marido vai perguntando sobre os limites da ficção. Os limites da realidade estão ligados à criação do leitor, à minha experiência própria como leitora, que está sempre investigando de uma maneira detectivesca… buscando…

…como um «voyeur»…

Como um «voyeur», exactamente. É uma figura externa que influencia o decurso da ficção, mas que tem sempre uma visão externa.

De alguma forma, todos eles, incluindo a criança, são criadores e leitores dos próprios acontecimentos. Se virmos a realidade e a ficção como um enorme texto, todos eles interpretam.

Absolutamente. Por outro lado, eu queria construir uma personagem, particularmente a narradora, mas também Owen, que estivesse muito ameaçada, cercada, por tudo. Há uma violência muito subtil, um mundo passivo-agressivo em redor da narradora. Nesse mundo os filhos são asfixiantes. Existe o marido zeloso… Ela não sai de casa, mas escuta o rádio do vizinho e são puras notícias horríveis; então há um mundo que está à porta de sua casa e que ela não quer e de alguma maneira a encerra. É um mundo muito claustrofóbico.

A certa altura, a criança dorme e ela vai ver se a criança respira, acabando por dizer «…mas eu tenho falta de ar». De uma forma mais abstracta, esse tipo de responsabilidades, a nível familiar, não se compatibiliza com a criação literária ou com outro tipo de criação?

Eu creio que sim, que se compatibiliza. Como adultos temos que encontrar as formas para sobreviver, para poder ser bons pais, pessoas completas.

Além desta situação em que ela olha para a criança, a certa altura também diz: «Os romances são de um fôlego. É isso que os romancistas querem. Ninguém sabe exactamente o que significa, mas todos dizem: de um fôlego. Eu tenho uma bebé e um menino do meio. Não me deixam respirar. Tudo o que escrevo é – tem de ser – de vários fôlegos. Pouco ar.» (página 14).

Esta pessoa está muito assediada por tudo. De uma forma mais ampla… os meninos são do mais luminoso. A paternidade é muito complexa. Há lugares muito difíceis e há coisas muito luminosas também. Eu descobri enquanto escrevia este livro de que a única maneira de lidar com as dificuldades era incorporá-las na novela. Foi assim que pude atravessar um período difícil de maternidade recente.

É muito sincera e honesta na escrita do livro…

Não é um livro, neste sentido, autobiográfico, mas é um lado da paternidade de que não se explora muito. Há muitas novelas maravilhosas sobre a relação pai-filho, mas poucas novelas retractam a relação entre maternidade e a criação… como se fosse um tema demasiado feminino, mas os pais também atravessam essa dificuldade.

Percebi vários tipos de relação no texto: a relação entre autora/narradora e outros autores, como Ezra Pound, Dickinson… Existem referências constantes a outros autores. Que tipo de influência sente em relação a esses autores? Há uma tentativa de se «separar» deles ou de os «incorporar»?

Somos leitores profissionais ou, pelo menos, leitores constantes e dedicamos uma boa parte da nossa vida a ler. Temos uma relação com os escritores de uma certa fantasmagoria no sentido em que quando lês também é uma conversação com um autor, de alguma maneira… Para exemplificar de uma maneira simples: vim a Lisboa, mas já tinha lido muito Pessoa e quando caminhei pela primeira vez por Lisboa reconheci o nome das ruas, acredito ter reconhecido os espaços e a sensação que tive, era como se já tivesse estado aqui. E através de Pessoa.

Primeiro entrou na alma e depois nos sítios…

Exactamente… Lemos e vivemos através da leitura dos livros e somos mediados por presenças, vozes, companhias. Interessa-me incorporar e viver perto das vozes que me marcaram e ignorar as outras.

O livro abre várias janelas para outros autores. Não se encerra nele próprio. A partir do seu livro podemos a chegar a outros autores…

A mim isso interessa-me muito… Não de uma maneira pedante, didáctica, mas interessam-me os livros que chegam a outros livros. Considero que, quando um livro ou um texto meu consegue chegar a outros, então consegue algo.

Existe uma intertextualidade muito forte entre o seu livro e vários…

Sim, e de uma maneira muito vital. Este é um livro de muitos livros, de muitas referências, mas não é um livro que requer ter lido Dickinson ou profundamente os «Cantos de Pound» para ser entendido. As presenças são mais vitais do que académicas. Os leitores que têm uma bagagem intelectual ampla poderão encontrar muitas coisas no livro com as quais se conectam e entendem melhor; mas se não, pouco importa. Tem vários planos.

No princípio da entrevista disse que a realidade influencia a ficção e a ficção influencia a realidade. Quem constrói quem? É o autor que constrói as personagens ou as personagens que constroem o autor? Como é que é essa relação?

Completamente bilateral. Enquanto estou escrevendo um livro, também depois mas sobretudo enquanto estou preparando e escrevendo um livro, é evidente para mim a maneira como a ficção e as personagens desse livro modificam a minha experiência quotidiana.

São projecções suas?

Não, não… É de uma maneira muito concreta. Exemplifico com um par de pequenos exemplos:
No primeiro livro, «Papeles Falsos», eu estava escrevendo sobre Joseph Brodsky. Eu tenho nacionalidade italiana, mas não tenho residência, só nacionalidade. Soube no entanto de alguém que vivia em Veneza e que tinha umas cartas entre Brodsky e Pasternak. Então… tinha um amigo em Veneza que conhecia essa pessoa. Vou a Veneza, no Verão, para poder encontrar essa pessoa que tinha estas cartas. Era simplesmente interesse para o livro que eu estava escrevendo. Quando cheguei fiquei horrivelmente doente, quase morri, e tive que fazer uma série de «piruetas» para que me dessem a residência em Veneza. Tive que passar… tive um casamento [risos]… tive uma série de modificações brutais na minha vida. Havia ido perseguindo as cartas de Brodsky e terminei casada com um italiano [risos]… Um matrimónio muito efémero. Esta história incorporou-se no livro. Levou uma volta da ficção do livro à realidade e de volta ao livro.
Aqui neste livro também. Há um episódio que é meio ficção onde eu fui ao apartamento de Owen em Nova Iorque, onde vivia. Na realidade, fui a esse edifício, subi ao tecto e trouxe uma planta num vaso. Essa planta foi para casa de uns amigos que vivem em Princeton, perto de Nova Iorque. Bem… Eles divorciaram-se, mas essa mesma planta que está no livro, agora, foi depositada por uma amiga num cemitério, em Princeton, onde estão enterradas uma série de personagens. Ela mandou-me há pouco uma foto. Então… É como a ficção se incorpora na realidade. Na minha próxima novela também, apesar de já ter começado a escrevê-la. Sei disso porque aqui em Lisboa aconteceram uma série de experiências muito raras. Ontem, num alfarrabista, encontrei um livro do século XV que procurava há muito tempo. Fui a vários alfarrabistas até que finalmente encontrei. Eu sei que este livro vai ser chave para o meu próximo livro. De alguma maneira a ficção e a realidade estão sempre circulando…

Como tradutora vê algum paralelo entre a recriação, ou seja, na passagem de uma língua para outra, e a sua própria criação como autora?

Eu reflecti muito sobre a tradução. É um tema pelo qual sou obcecada e creio que na tradução há um processo de recriação. Uma boa tradução recria… A mim interessa-me muito que outras línguas modifiquem o meu espanhol. Cresci ouvindo muitas línguas porque passei por muitos países, cresci bilingue… Gostaria de pensar que as línguas estrangeiras ou os próprios exercícios de tradução dos livros modificaram-me…

É crítica literária…

Há uma diferença entre ser crítica literária e escrever sobre literatura, de vez em quando… Eu não me considero crítica literária, mas, de vez em quando, opino sobre os livros que leio.

Teve esse espírito crítico em relação ao seu próprio livro? Teve perspectiva avaliativa?

Sim… Eu sou dura e por isso demoro muito tempo a terminar. Eu corto, corto, corto… [risos] Sou dura comigo mesma e meticulosa. Quando era mais jovem, quando comecei a escrever crítica literária, era mais dura com as coisas de que não gostava. Agora não me interessa fazer uma crítica dura. Interessa-me escrever sobre os livros de que gosto. Não me interessa destruir um livro mau… Porquê? Para quê? Quando um livro me emociona procuro escrever sobre ele. Se algo é muito mau, o melhor é ignorá-lo.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com









LINK: Texto de Maria Rosário Pedreira
publicado por oplanetalivro às 14:36

22
Nov 11

Hollinghurst: «As crianças já não lêem romances completos»

Texto: Mário Rufino

Alan Hollinghurst fala como se estivesse a escrever. Pensa muito, escolhe as palavras com cuidado e constrói frases certeiras. A concentração que impõe na procura da melhor resposta revela-nos uma pessoa calma, educada e com grande sentido de humor. Sobre a mesa pousou uma folha e a sua pergunta revelou o seu sentido de organização: «Diário Digital, correcto?». No fim, quando lhe perguntei se tinha mais entrevistas, mostrou-me a folha e apontou as horas e o nome dos jornalistas com quem ia falar. 
«O filho do desconhecido», ditado pela Dom Quixote, é um livro onde o não-dito ocupa um espaço fulcral na interpretação da narrativa. A estrutura do romance, composta por cinco capítulos, e a contínua mudança de ponto de vista exigem a dedicação e a concentração do leitor. Os grandes temas do livro estão em fundo, dependem do silêncio e das versões contraditórias das personagens. «O filho do desconhecido» não rompe com a temática dos livros anteriores, mas vai muito além da problemática da sexualidade/homossexualidade. São abordados alguns aspectos dos quais dependem a personalidade: a memória, a aceitação, a interacção social e a ditadura do senso comum/regras da sociedade. Desta forma, Hollinghurst apresenta um texto que nos interroga sobre quem somos e qual é a base da nossa personalidade. Antes de começarmos a conversar sobre o livro, questionei-o sobre se haveria alguma pergunta que ainda não lhe tivessem feito, pois já tinha sido intensamente entrevistado. Foi a primeira gargalhada de uma conversa com boa disposição… 

O seu livro vai muito além do tema da sexualidade. Existem vários temas em «O filho do desconhecido» que são muito interessantes, principalmente a dialéctica entre memória (reinterpretação), interpretação e facto. O que é que o motivou a escrever sobre estes temas? 
Há assuntos sobre os quais tenho vindo sempre a escrever, como a vivência gay no presente e no passado, mas este livro tem uma nova dimensão de abertura e incerteza para mim. Tornou-se um assunto inevitável para mim por estar a envelhecer. Tenho pensado mais sobre a minha própria memória e é extraordinário o que pareço não ser capaz de recordar quando comparo memórias com pessoas com quem partilhei algo no passado. Nunca estive muito interessado em voltar à escola, a reuniões, mas fui a uma e as pessoas vieram repetidamente ter comigo e disseram «eu lembro-me daquele tempo em que fizeste…» isto ou aquilo. Eu tinha quase a certeza de que estavam a pensar noutra pessoa. Por vezes, eu sabia que estavam a falar de uma pessoa diferente. O que se faz com um elogio que, de facto, não se merece? Eu não tenho nenhum plano para isso, mas se eu fosse escrever as minhas «Memórias», quão confiável seria? O que colocaria lá? Houve um período da minha vida, quando estive oito anos em Oxford, em que mantive um diário detalhado, todos os dias. Foi [época em Oxford] incrivelmente aborrecido. Eu não tinha uma vida! Eu passava a maior parte da minha vida a escrever o meu diário. Quando vim viver para Londres, há alguns anos, e comecei a ter uma vida, parei de escrever o meu diário. Tenho esta situação paradoxal de ter um período muito aborrecido da minha vida muito bem documentado.
Penso no que são os materiais sobre os quais alguém decide escrever/basear as suas «Memórias»: cartas ou um diário, se o guardaram, que as pessoas moldam ou seleccionam… Em relação às próprias memórias, elas são muito falíveis e manipuláveis. Tornam-se «ossificadas» numa fase bem inicial. Ocasionalmente tem-se aquela coisa linda de se lembrar de algo absolutamente «fresco» que se havia esquecido completamente. Conforme vou envelhecendo, vou pensando nisto como uma reconstrução do passado.


A nossa personalidade depende das nossas memórias e quando elas mudam ou nós vemos que não são fiáveis então…. Quem sou eu? 
Exactamente! 

Cecil está muito além do seu tempo. Ele aceita a sua sexualidade, tal como um homem na idade moderna. Talvez seja por tudo isto que ele tenha tido uma enorme influência sobre eles. 
É interessante que diga isso. Cecil parece assim no mundo de «Dois Acres», mas no mundo de Cambridge, de onde ele veio, ele é muito mais típico; no mundo desta secreta sociedade famosa, «Os Apóstolos», para onde George é levado por Cecil. Ele fez questão de falar, candidamente, sobre a sua própria sexualidade, encorajando outros a fazer o mesmo, «explodindo» aquela mentalidade vitoriana sobre estes assuntos. Cecil era um espécimen daquela geração de Cambridge.

A certo ponto lê-se: «Tal como as profundezas da poesia de Tennyson, Cecil tinha muitas vozes». Como falámos anteriormente, ele tem um conhecimento dele mesmo que não se vê em George nem em Daphne, ainda adolescente. 
Sim. [ri-se] Provavelmente é uma questão de autoconfiança social, não é? A suposição de que tudo o que lhe apetece fazer está bem. 

Quando eles estavam a jantar [em «Dois Acres»], George estava sempre com muito medo do que Cecil poderia dizer… 
Cecil é alguém que sabe comportar-se socialmente, mas ele [George] sabe que [Cecil] tem este outro lado, que parece muito perigoso, mesmo por «baixo da superfície». 

O tempo decorrido depois de o facto que origina o poema (beijo de Cecil a Daphne) é já uma ficção? A interpretação disso já não é a verdade… 
Sim… Na noite seguinte, quando Daphne está acordada na sua cama e tenta lidar com a sua própria confusão e choque sobre o que aconteceu, já está a pôr afecto ou a «construir» o que aconteceu. A cena no jardim é vista pelo ponto de vista de Daphne e há também muita ironia a jogar com o ponto de vista do leitor que vê coisas que a própria Daphne não vê.  

A cena do cigarro [no jardim] que acende, trazendo mais luz, e se apaga, novamente, é como a técnica de pintura chiaroscuro e está em todo o livro Então, desde o pormenor até à estrutura utiliza este jogo «esconde/revela». Qual é o seu processo de escrita? Escreve muitos rascunhos? 
Não, não faço. Escrevo muito devagar. Tento fazê-lo bem logo à primeira vez; nem sempre consigo, claro, mas não escrevo muitos rascunhos. Vou devagar e corrijo até ficar bem. Estou consciente que é diferente… Escrever um rascunho e depois reescrevê-lo parece-me um desperdício de tempo. Não faço assim de forma calculada. Sempre foi assim. É penoso por vezes pelo tempo que demora. É frustrante. Eu desenvolvi maus hábitos com este livro porque sempre escrevi desde o princípio até ao fim. Neste livro, fiquei muito frustrado por ainda estar em 1926 quando esperava já estar a acabar os anos 60 [risos]! Comecei a secção seguinte e deixei algumas secções para serem completadas depois. Algumas vezes também quis prever o que iria ser requerido no livro, mais tarde; o que iria ser dito por Daphne a Sebby Stokes na biblioteca… 

…existe uma frase excelente quando ela entra na biblioteca: «(…) o clique confirmou a sensação que tivera antes em relação àquele processo: num minuto, era-se um mero observador e no seguinte já se fazia parte dele.» É o que acontece com os cinco capítulos do livro. Por vezes, eles vêem por dentro e outras vezes eles são vistos por fora. São as principais personagens em algumas partes, e secundárias noutras. 
Exactamente. 

Há muita informação no não-dito e isto pede muito do leitor. Aliás, tem muita fé no leitor. Ele tem de juntar todas peças. No entanto, Paul Bryant ajuda no quarto capítulo, quando ele começa a sua investigação. As ligações familiares fazem mais sentido, mas por vezes são difíceis de acompanhar… 
Sim, de qualquer forma não interessa. Quando Paul vai aos escritórios do TLS [Times Literary Supplement] e está a falar com o rapaz mais velho que está no TLS… não me lembro bem do que diz, mas… a meia-irmã do segundo marido da Daphne casou com o irmão do meu pai ou algo assim… Não é suposto seguir-se isto. 

Jennifer também diz algo assim na última parte. Confesso que desenhei as ligações familiares, mas depois deixei…
Sim, é verdade. O meu editor, quando foi a minha casa com o manuscrito, produziu uma bonita árvore genealógica. Não é importante… 

Estão [as personagens] ou estamos a viver sobre mentiras aceitáveis/reinterpretações aceitáveis? Por vezes [interpretação] está longe da verdade. Por exemplo, Freda, mãe de Daphne e George, recusa-se a entender o que vê e só no fim ela aceita quando lê as cartas. 
Sim, não são sempre mentiras fundamentais, mas nós continuamente ajustamos a memória para nos exonerarmos ou tornar as coisas mais confortáveis. Nós simplificamos, nós ficcionamos. A vida não é uma mentira. No livro, criamos uma mentira narrativa. Impomos simples explicações que parecem resultar.
Eu queria muito um livro onde não houvesse explicações que pusessem tudo sob uma nova luz. 


Nós moldamos a verdade, os factos…
Por vezes não o fazemos conscientemente porque partilhamos a dor de uma memória e para a tornarmos tolerável continuamos a mudá-la, a «alisá-la». Há outras situações em que, inexplicavelmente, as histórias são irreconciliáveis. 

Baseado nisso, tem muito material para escrever… 
[Risos] Sim. 

Mudando de assunto... Existe uma forte tensão sexual entre George e Cecil, Cecil e Dahphne e entre outras personagens durante o livro. De que forma a nossa visão do mundo, da sociedade, é influenciada pelas nossas escolhas sexuais? 
É claro que molda, remotamente… Se se é uma mulher, naquele período, as escolhas sexuais que se pode fazer são mais limitadas do que se se é homem. São limitadas por vários factores como classe e oportunidade social. Um forte sentimento sexual é algo que pode alterar profundamente o curso da vida das pessoas, pois baseiam-se nisso para decisões que mudam a vida. E claramente o casamento de Daphne com Duddley tornou-se uma infeliz decisão. Ela abraça a oportunidade proporcionada por este clima de «flirt» com este jovem fascinante que, provavelmente, não tem grande interesse nela. Penso que ela toma, repetidamente, más decisões. Eu pensei nisso, de alguma forma, como tendo sido influenciada pela perda do seu pai quando ainda era criança. Ela é uma vítima das escolhas sexuais que faz… ou do interesse dos homens nela, pois é a personagem fraca nestas situações…
É uma pergunta difícil.
George… a sua sexualidade parece ser aberta… mas depois ele…assustou-se, casou-se e vive uma espécie de vida em companhia, com Madeleine, e eles tornam-se narradores das histórias dos outros, sem ter uma vida própria… 


Porque escolheu contar a história através de vários pontos de vista? 
Suponho que devido ao que falámos anteriormente, o facto do nosso conhecimento da história ser feito de uma mistura de, talvez, pontos de vista irreconciliáveis. Quando comecei a escrever pensei em algo mais simples. Pensei que cada uma das cinco secções seria vista pelo ponto de vista de uma pessoa. Esta foi a minha ideia preliminar. Depois pensei que seria um problema enorme se eu fosse contar a complicada história desse primeiro fim-de-semana somente do ponto de vista de Daphne. Há tanto que deve ser permitido ao leitor ver… Então vi que realmente tinha de ser visto pelo ponto de vista de George, Hubert e da mãe. Isso preocupou-me um pouco porque eu vi que isto não ia ser só um ponto de vista, não só uma narrativa deste fim-de-semana, iriam ser todas estas narrativas diferentes e, em alguns aspectos, em conflito. Isso tornou-se um princípio para o livro todo logo na fase inicial. 

Com essa escolha conseguiu avançar no tempo, mas também em profundidade psicológica. São duas vertentes difíceis de compatibilizar num livro… 
[Risos] Ainda bem… 

Se tivesse escolhido escrever o livro com menos vozes/secções, pensa que conseguiria desenvolver as duas vertentes?
É verdade que são vozes de pessoas… Não são exactamente vozes, pois não? Está tudo escrito na terceira pessoa. É o privilégio do estilo indirecto livre. Pode observar-se o facto do exterior e entrar à vontade nos seus pensamentos. 

Sim, por vezes não sabemos se é o autor ou a personagem… 
Sim… Eu adoro esse tipo de liberdade de entrar e sair da mente das personagens; cada capítulo é o ponto de vista de uma personagem. Tudo dentro dele [capítulo] é, até certo grau, flexionado através da interpretação da personagem do que vai acontecendo. O facto de ser um romance sobre sociedade… As personagens observam-se frequentemente como interacção social. O retrato psicológico é, provavelmente, construído através de diferentes ângulos. 

Em relação a Cecil, quis captar a pluralidade de vozes dele? Foi um objectivo para a diversidade de pontos de vista? 
Não pensei nisso… Suponho que sim, por implicação. Todos nós temos várias vozes de acordo com quem falamos.

Como disse anteriormente, tem muita fé no leitor. Confia nele para preencher os espaços que deliberadamente deixa… 
Sim, bem, não sei se podem ser sempre preenchidos… 

Teve a tentação de escrever mais, de ajudar mais o leitor? 
Não. [Risos] Gostei de reter a informação e deixar cair os factos no começo de cada secção. Para mim, fez parte da escrita do livro. 

O texto «Dois Acres» ou mesmo o livro de Cecil, publicado após a sua morte, tornou-se canónico. O texto foi estudado em universidades e escolas.
Provavelmente alguns dos seus poemas apareceram em antologias, incluindo «Dois Acres», e tornaram-se muito conhecidos. Peter Rowe, na terceira secção do livro, está a ler o poema para os estudantes, em Courley Court, e mais à frente, quase no fim do livro, como que o vemos no novo mundo de teoria «queer»… Eu queria que fossem poemas como os de [Rupert] Brooke, não necessariamente muito bons, mas que entrassem na consciência do público. A minha mãe adorava e adora os poemas de Rupert Brooke. Cresci com muitas linhas e frases de Rupert Brooke. Eu tenho muita poesia na minha mente e a minha adolescência foi feita de encontros de leitura e de aprendê-la para a saber de cor. Talvez seja o meu sentido de passado. Pensei nos poemas de Cecil como se fossem desse tipo, talvez não particularmente estudados no campo académico. 

É uma postura céptica do cânone? O poema não é bom… 
Não, não é bom, mas não é absolutamente terrível… 

…mas entrou, provavelmente por causa do culto em torno de Cecil, nas vidas das pessoas. 
Exactamente! O poema é de antes da guerra e depois da guerra parece resumir algo sobre a razão pela qual as pessoas lutaram e sobre a visão nostálgica de Inglaterra. 

Pensa que os maus textos ou um mau livro pode entrar no «must read» nas escolas e universidades devido a esse tipo de culto em redor de um autor? 
Tenho de pensar em alguns exemplos… Tenho a certeza de que são muito apreciados num período particular e depois saem de moda. 

Numa outra entrevista, mencionou um ou dois autores de que gosta bastante e que só uma assembleia os lê, agora… 
Sim, existem vários autores que são negligenciados; outros que pensávamos ser maravilhosos são, agora, secundários ou desapareceram. Isso sempre me divertiu… Esse território instável do que é pensado como bom. 

As escolas e as universidades têm muito poder sobre isso. Se não são falados, não são lidos e com o tempo desaparecem, provavelmente, para aparecerem passados 50 anos.
Sim, eu penso que formam uma parte muito mais pequena dos currículos nacionais das escolas. As crianças já não lêem romances completos; lêem somente uma parte ou vêem o DVD ou o filme. É aterrorizante. Quando alguém na escola lê poemas de Ted Hughes e são os únicos poemas que lêem, torna-se a noção deles de poesia. É uma espécie de moldagem canónica, não é? É um nível muito básico… 

Voltamos a falar daqui a sete anos… [tempo decorrido entre «A linha da beleza», vencedor do Man Booker Prize 2004, e «O filho do desconhecido»]
Espero que mais cedo… 


LINK: Entrevista com Alan Hollinghurst (TV)

publicado por oplanetalivro às 12:49

10
Nov 11

Conversa com Ruta Sepetys sobre “O longo inverno”

Ruta Sepetys escolheu um caminho difícil na sua estreia literária. A investigação para o livro foi penosa, extensa e envolveu grande sacrifício físico e emocional. “O longo inverno” é a história de um povo, simbolizado pelas personagens existentes, sob o discurso de violência de Estaline. Mas é também a história de Ruta Sepetys, do que ela ouviu e do que ela própria sofreu ao longo da investigação. Essa emoção está presente desde a primeira até à última página.
O ambiente histórico é verídico. Durante o período em que Estaline esteve no poder morreram milhares de pessoas. A autora recolheu testemunhos, visitou locais e, como se poderá ler na entrevista, algumas situações escritas foram, de facto, vividas pelos sobreviventes.
 A entrevista possibilita uma análise mais profunda do texto, do drama de um povo e do objectivo da autora. Ruta Sepetys desenterra as histórias de sofrimento e provações a que milhares de lituanos, letões, finlandeses, e não só, foram sujeitos, para nos mostrar, através destes exemplos, a indomável vontade de viver do ser humano.
Durante a entrevista, publicada em duas partes, poderemos conferir o impacto que a história teve na escritora e o impacto que poderá causar, também, no leitor.
A autora quis passar o testemunho de sofrimento de um povo. Foi bem-sucedida.

I parte


MR- Quando estava a preparar esta entrevista, li uma frase de Faulkner que capta a essência do seu livro: “ (…) o homem é indestrutível devido ao seu simples desejo de liberdade[1]”.

RS- Verdade! Em relação a estas pessoas, como eu descrevo no livro, a única coisa que não lhes conseguiram tirar foi o desejo de liberdade. Tiraram-lhes a bandeira, a língua e tiraram o país deles, literalmente, do mapa.

 Fez pesquisa, viajou para a Lituânia, conheceu sobreviventes, membros da família, membros do parlamento e esteve algum tempo numa prisão soviética. Conheceu Irena (sobrevivente). Ela contou-lhe histórias muito dolorosas.
Foi capaz de manter a distância emocional para escrever o livro? Quis manter essa distância emocional? Na primeira versão matou toda a gente…
 Eu fiz isso porque decidi não separar a investigação do processo de escrita e fazer tudo em simultâneo. Se eu fizesse a pesquisa e só depois a escrevesse talvez houvesse demasiada separação e eu queria que houvesse um efeito imediato no livro para que o leitor sentisse que estava realmente lá. Quando os sobreviventes estavam a contar-me o que se passava, [a informação] vinha tão depressa que eu, literalmente, [fez uma expressão de horror e admiração]. Então pensei: “ Eu quero que o leitor sinta desta forma” Eu pesquisava durante o dia e depois escrevia. Era duro, muito duro, mas a emoção estava lá porque eu ainda a sentia, como você disse. Eu estava chateada. Eu estava tão zangada! Quem faz isto? Quem consegue fazer isto a outro ser humano? Valeria uma vida humana tão pouco?
“…nós não queremos a vossa morte, nós queremos o vosso sofrimento” [testemunho de Elena no “Booktrailer”] Isto é o inferno?
Foi o inferno! E mantem-me acordada à noite pensando “ como é que isto aconteceu? Como é que nos tornámos tão cruéis e tão egoístas?” Na pesquisa, eu tive um breve vislumbre disso em mim mesma e nunca pensei que eu teria isso. Entrei neste processo pensando “Claro! Eu sou uma pessoa corajosa.” Se houvesse um ataque terrorista no hotel, eu assegurava-me que vocês saíssem primeiro e então eu sairia em último. Era o que eu pensava de mim mesma. Quando fiz esta pesquisa, percebi que somente não vos deixaria ir primeiro como passaria por cima de vocês para sair pela porta.
Quando eu estava na prisão, que era uma simulação, - uma simulação de 24 horas e era só isso- para nos levarem ao mesmo nível dos prisioneiros reais (eles não nos podiam fazer passar fome ou privação do sono porque eram só 24 horas), usaram a força física para nos «quebrar». Felizmente, eu nunca tinha sido espancada antes. Esta foi a 1ª vez na minha vida. Esta foi a 1ª vez que alguém me bateu ou me pontapeou. Nunca tinha passado por isso! Quando entrei nunca tive consciência, como americana estúpida, que tinha assinado [termo de responsabilidade] que podia partir uma perna… nunca me ocorreu que alguém me podia bater. Nunca! E quando aconteceu, eu estava tão chocada, aterrorizada e em pânico, porque tinha assinado que não podia sair…que mudei! Eu entrei no modo de auto-preservação. Pensei “Como é que vou sair disto? Como é que vou sobreviver? Eu não quero ser agredida novamente!”
…e eram só 24 horas…
Isto aconteceu nos primeiros cinco minutos! Nos primeiros cinco minutos, eu mudei e entrei em modo… “eu não quero ser agredida, novamente! Parem de me bater! Parem de me bater!” E estavam a agredir os outros estudantes, também. Estava um rapaz deitado no chão e ele disse-me “por favor” e… Mário…eu fingi que não o ouvia. Consegue imaginar?
…é uma reacção normal de um ser humano, penso…
Não, não para toda a gente. Foi o que aprendi. Não é para toda a gente. Como pai… você criou uma nova vida e tem uma nova identidade e psicologia. Acho que a coragem é instintiva em si e noutras pessoas, também. Eu pensava que era instintiva em mim, mas aprendi que não é. Isso é assustador.
Viu os seus limites e isso é assustador.
… Vi os meus limites em 5 minutos! 5 minutos!
A mãe de Lina era um exemplo de compaixão. Porque é que ela teve de morrer?
Na 1ª versão do livro, eu matei todos excepto Lina. Depois li e reflecti sobre a pesquisa que tinha feito, as conversas com os sobreviventes e pensei “espera um minuto! Eu falei com pessoas que sobreviveram! Porque é que estou a focar-me no horror? O que é isso diz sobre mim? Porque é que o escrevi tão negro?”
Elena, a mãe, representa um espírito que eu vi em tanta gente. Fez-me pensar na identidade de um pai/mãe e o que isso significa. O facto de as pessoas que eu entrevistei terem sido pais, mudou-lhes a consciência e a capacidade para a coragem. Eu quis que o leitor sentisse essa capacidade para a coragem e integridade da miraculosa natureza do espírito humano.
O coração de Lina estava cheio de ódio, no princípio, mas, no fim, ela muda…
Sim, Estaline falou num discurso de violência e estas pessoas estavam a sofrer estas horríveis atrocidades, mas algumas recusaram responder com violência. Quando chegou a altura, ela foi incapaz de cometer um acto de raiva. (…) Nikolay [guarda soviético] representa “Between Shades of Gray” [título original do livro]. Nós tentamos categorizar as coisas no extremo, é bom ou mau, mas nem sempre é assim.
Existem várias mudanças nas personagens; elas não se mantêm boas ou más…
Exactamente! Quando falei com os sobreviventes, eles disseram-me que essa dinâmica existia, especialmente com as pessoas como o “homem calvo” [personagem do livro], porque existia a população lituana e os lituanos judeus. Primeiro, os soviéticos ocuparam [Lituânia], depois os alemães, depois os soviéticos, outra vez, e foi por esta tripla tragédia, que muitos dos lituanos, quando chegaram os alemães, mostraram animosidade face aos judeus porque sentiram que eles tinham ajudado a entrega-los aos soviéticos. Então, alguns dos lituanos tornaram-se colaboradores nazis. É uma reacção humana, mas as pessoas que eu conheci estão agora a carregar essa culpa por terem jugado mal… no medo deles, esta dinâmica tão complexa…eles não podem voltar atrás e pedir desculpa”
Interpretei a existência do “homem Calvo” e de Ulyushka como o exemplo de pragmatismo e de uma forma fria de resistência aos soviéticos. No lado oposto, existia a ilusão, o amor e a compaixão. O que acha mais importante: o lado pragmático ou a ilusão?
O sentimento patriótico de quando algo é retirado… há certos aspectos que não podem ser retirados. Havia uma unidade e quando estas pessoas foram colocadas juntas, elas não se conheciam e viviam juntas e de repetente o “eu “dissolve-se e torna-se “nós”. Demorou muito tempo a muitas pessoas como o “homem calvo” e Ulyushka, mas aconteceu. De alguma forma, segurar a mão de um desconhecido e dizer “ Nós conseguiremos ultrapassar as dificuldades” foi muito poderoso e penso que foi essa unidade que lhes deu um objectivo. Sentir-se sozinho é muito vulnerável, sentimo-nos muito vulneráveis, mas ficamos com mais força quando em grupo.

…eles comungaram o sentimento de ilusão. O “homem calvo” queria suicidar-se, mas tinha medo de o fazer. No fim, ele já tinha um objectivo para continuar a viver…
Exactamente! E ele teve a oportunidade de se redimir. Os soviéticos pediram-lhe para escrever as listas, mas, no último minuto, ele recusou a fazê-lo. E deportaram-no. Ele podia ter ajudado os soviéticos, mas não o fez e agora estava a ser castigado por isso. Estas pessoas fizeram sacrifícios, independentemente dos diferentes motivos, e houve estas hipóteses de se redimirem. Nem toda a gente fez isso, mas as pessoas com quem falei disseram que quem era egoísta e individualista morreu rapidamente. Quando alguém estava doente, todos retiravam um pouco da própria ração. Quando se está sozinho e se afasta do grupo, não só fisicamente, mas emocionalmente, mentalmente, espiritualmente…



Entrevista a Ruta Sepetys
II parte (continuação)
O processo de escrita, situações verídicas, a nova geração de lituanos…


MR- Uma pergunta mais específica: Dividiu o livro em capítulos pequenos como se fossem cenas de um filme. Porquê?
RS- Primeiro, porque eu pensei que fosse mais imediato e a minha experiência como leitora… se há muitas passagens descritivas, apesar de gostar e ajudar a criar um cenário para mim, pode interromper o ritmo. Então, eu talvez escolha interromper a leitura. Se é um capítulo curto, tenho mais tendência em dizer “Ok. Mais um…”. Para mim, foi um «mecanismo rítmico» para manter o leitor focado. Eu sou uma leitora impaciente. Gosto sempre de avançar.
A 2ª razão é eu não ter estudado literatura. De certa forma é bom porque sou, definitivamente, uma seguidora das regras e se eu tivesse tido aulas sobre gramática ou para escrever literatura, provavelmente paralisava-me. Eu escrevo como se visse um filme. Para mim, é algo muito visual…
…esteve lá. Deve ser uma das razões, provavelmente. Vê as imagens…
…em vez de dizer “eu penso que esta personagem vai dizer isto ou isto, eu literalmente olho para o espaço vazio e imagino… eu vejo muitos filmes… imagino a interacção e os diálogos. Não penso “Ok. John diz…” Eu estou a ver como se de um filme se tratasse e transcrevo-o.
Porquê uma rapariga de 15 anos [a narrar]?
Por algumas razões:
Quando estava a entrevistar alguns sobreviventes e estava a rever a minha pesquisa, notei que a maioria das pessoas tinha exactamente a mesma idade quando estiveram na Sibéria. E isto é muito estranho. Porque é que eles tinham entre 14 e 24 anos? Porque é que não podia ser 7 anos de idade? Porque é que eles estavam todos na adolescência? Eles explicaram-me que as crianças mais novas, em muitos casos, eram demasiado fracas para sobreviver. Os adultos e as pessoas mais velhas não tinham a vontade de viver. Mas estes adolescentes, o espírito adolescente… tinham espírito de luta, eram teimosos. Os adultos haveriam de olhar à volta e dizer “Nós nunca sobreviveremos a isto!”
Quando vou visitar escolas eu pergunto: “ Se fossem deportados para a Sibéria, quantos de vocês sobreviveriam? E todos, entre os 14 e 13 anos… [levanta o braço], mas quando eu falo para adultos, num clube de leitura, eles, ainda antes de eu perguntar, dizem “Não sobreviveria a isto! Nunca sobreviveria!” É uma mentalidade! Aquela dinâmica fascina-me. Algumas coisas que me contaram, como adolescentes… aquilo era o inferno e o horror. Eles estão numa estação de comboios a ser separados das suas famílias, há pessoas a morrer e, no entanto, houve elementos da existência adolescente que permaneceram intactos. Uma rapariga contou-me que tinha conhecido um rapaz na estação de comboios, quem ela conhecia de vista de um clube em que eles estavam, e falaram na estação de comboios e tiveram uma ligação…
…Andrius [personagem do livro]?
Foi isso que inspirou! Ela disse que o tempo todo no comboio, pensou “ Em que carruagem estará ele?” Todas as vezes que o comboio parava e eles iam buscar um balde, ela procurava-o.
Ela escapou do comboio, não foi? E viu o pai dela.
Essa é uma história verdadeira de uma mulher chamada Irena. Ela contou-me que saltou do comboio para procurar o seu pai. Ela encontrou-o e ele deu-lhe um pedaço de presunto e a sua aliança de casamento. Enquanto me contava isto, eu chorava… Ela contava-me matéria de facto, esta trágica história, e a última vez que viu o seu pai foi através daquele buraco que servia de casa de banho. Eu tinha de pôr no livro! Isto eram coisas reais e ela era uma adolescente e para ela experienciar daquela forma…
A 2ª razão para escrever através do ponto de vista de uma adolescente foi… eu tenho este sonho de que o livro possa encontrar o seu caminho até às escolas e talvez os adolescentes possam ler e estudar esta parte da história.
Pensa que a geração mais recente foi moldada por este passado?
Eles não querem ser definidos pelo seu passado. Sentem que é uma âncora. Durante muitos anos viveram sob ocupação e agora não querem que a sua história os domine. A liberdade deles é tão frágil e estão a aprender a viver nela. Eles querem avançar tecnologicamente e economicamente.
Mas eles conhecem o passado?
Sim, eles conhecem o passado, mas a geração mais antiga sente que a geração mais nova está demasiado ansiosa em viver numa “nova pele” e que devem manter a referência de onde vieram. As pessoas mais novas dizem que se fizerem isso, estarão sempre ocupados de alma e espírito. ““Isto” aconteceu”, dizem, “ mas não nos define. Temos que ter fé em nós para avançarmos no futuro”
Sobre a nova geração, há uma frase de [Edvard] Munch, no livro…
…antes de ler, você foi a primeira pessoa que, ao longo de um ano, mencionou Munch. “Passei” 33 pinturas de Munch para o texto. Você foi a primeira pessoa que abordou e eu pensava que, por alguma razão, não tinha impressionado as pessoas. Por isso estou muito feliz!!
A frase é esta: “ Do meu corpo putrefacto germinarão flores, e eu viverei nelas e a isso se chama eternidade” . Por isto, eu perguntei sobre as novas gerações. Elas são as flores que nascem do passado.
Absolutamente! A bandeira lituana representa isso. É uma lista amarela para o sol dourado; uma lista verde para os lindos campos; e uma lista vermelha para o sangue. Sob o campo há gerações de pessoas que perderam as suas vidas e se sacrificaram pelo país. Concordo absolutamente consigo. É um pequeno país com grandes lições dentro dele.
Há uma linda frase dita pela mãe de Lina :” Uma maldade não nos dá o direito de retribuir com outra maldade”
Isso foi algo que um sobrevivente me disse quando eu perguntei “Nunca quis, se tivesse oportunidade, de matar e escapar? Ou roubar alguma coisa para lhes criar dificuldades?” Ele disse “Porque é que haveríamos de nos querer tornar como os nossos opressores? Porque é que haveríamos de querer perpetuar o mal dessa forma? Temos de quebrar esse ciclo de ódio”
Lina conta-nos a história. Ela escreve e nos seus desenhos captura, como Munch, a essência do que vê. Como autora, quem é a Ruta Sepetys? É a Lina que escreveu e escondeu os textos dentro de uma caixa ou as pessoas que desenterraram e mostraram a história ao mundo?
Ambas as opções são muito nobres. Eu gostaria de ser uma das duas… Eu sei que não sou Lina! Lina é quem eu gostaria de ser. Não me vejo como nenhuma… talvez eu seja apenas a porta que balança aberta para que as pessoas de um lado possam ver o outro lado e atravessem… Eu espero que, no futuro, como escritora, eu possa ser uma das duas hipóteses. Vamos ver nos próximos livros… Eu sei que serão sempre sobre amor…

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com




 Sobre o Livro em "Última Edição" de Luís Caetano (Link)










[1]William Faulkner in “ Entrevistas da Paris Review” (2009), Lisboa, Edições Tinta da China.





Between Shades of GrayBetween Shades of Gray by Ruta Sepetys
My rating: 4 of 5 stars




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publicado por oplanetalivro às 15:26

13
Out 11
Donoghue: «Como mãe conto mentiras aos meus filhos»
Texto: Mário Rufino

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=4&id_news=536150



«O Quarto de Jack», de Emma Donoghue e editado pela Porto Editora, é um microcosmos para quem suporta o fardo do conhecimento (a mãe) e o Universo para quem ali nasceu e vive abençoado pela ingenuidade. É, tal e qual a autora mencionou nesta entrevista, a história de uma queda (curiosa associação a um movimento descendente) desde a ignorância até ao conhecimento. Jack come a maçã que a mãe lhe dá enquanto conhece pela voz dela que há um mundo lá fora muito mais vasto, muito mais interessante do que aquele quarto. E, a partir deste momento, a consciência de Jack jamais será a mesma.
A história fundamenta-se na dialéctica entre luz e sombra, mal e bem, ficção e realidade, na decadência física da mãe em contraste com o crescimento do filho. A tensão causada pelo antagonismo de situações e emoções díspares é mantida, com sucesso, desde o princípio até ao fim do livro. Numa prosa onde só há espaço para o essencial, Emma Donoghue afasta os vícios académicos e constrói um texto emotivo, sem cair no facilitismo melodramático.
Alienados do exterior por um acto do raptor, mãe e filho dependem do conhecimento de uma senha, um número secreto que possibilite saírem. O conhecimento abrirá a porta.
O leitor sente a angústia de cada visita do raptor e quase deseja que Jack se mantenha ingénuo perante tais atrocidades. Mas com a idade o conhecimento cresce e a ingenuidade diminui. Tudo é um jogo de perdas.
A criação de um conjunto de regras, dentro do Quarto, possibilita-lhes a sã convivência e a instalação de um instinto de sobrevivência que vai manter a mãe viva e com esperança de se salvarem. No entanto, a incompatibilidade com as regras sociais não acontece dentro do «Quarto», mas no «Espaço Lá Fora».
Emma Donoghue criou uma obra onde se interroga sobre a angústia que vem com a perda de inocência, o conhecimento como porta de entrada, o amor como suporte da vida e o horrível como parte integrante do Ser Humano.
Como ela afirma na entrevista concedida ao Diário Digital, «como mãe, eu estou constantemente consciente que parte do meu trabalho é contar mentiras aos meus filhos».


Porque decidiu narrar a história pelo ponto de vista de Jack? Teve sempre a ideia de construir a narrativa desta forma? O que mudaria se contasse, por exemplo, pela perspectiva da mãe ou de uma 3.ª pessoa ?

Pedir a tal criança (não somente com 5 anos, mas também alienada do mundo exterior) a sua própria história foi a ideia e objectivo de «O Quarto de Jack». Se tivéssemos outra personagem [a narrar] teria sido produzido um estudo muito mais banal do sofrimento e do Mal.

Já perto do fim do livro (pág. 304 na edição portuguesa) simula um debate televisivo entre académicos sobre Jack. A primeira interpretação foi de estar a dar uma chave de leitura para o romance. Depois pensei que podia estar a criticar com ironia qualquer abordagem mais intelectual. Esta é a história de Jack ou posso dizer que esta pode ser a nossa história, como humanidade, também? 

Você acertou. Estou a satirizar os intelectuais (pelo seu usufruto algo frio da história de Jack como uma parábola, pela sua competitividade abafada e o vício pelo jargão), deixando-os sugerir algumas interpretações muito interessantes sobre o que se passava no Quarto. Esta breve cena foi a minha forma de pelo menos sugerir alguma leitura e raciocínio que eu fiz acerca dos principais temas do romance e que não podia ser assumida pela voz de nenhuma das personagens principais. Eu sempre gostei de brincar com os académicos, pois eu sou filha de um, parceira de outra, e eu própria fiz um doutoramento em Literatura!

No entanto, a primeira impressão que tive foi de alienação do mundo exterior e aprisionamento dentro do livro. Eu estava dentro do «Quarto». Na edição portuguesa podemos ler «Somos como pessoas num livro e ele não deixa que ninguém leia». Pareceu-me um jogo de sombras como em «A Caverna», de Platão. Podemos nós, como indivíduos ou mesmo como sociedade, ser tão limitados na análise sobre nós mesmos quando fora da «zona de conforto»?

Eu quis que os meus leitores lidassem com questões existenciais (o indivíduo vs. ligação em par vs. sociedade, natureza [de algo/de alguém] vs suporte [carinho, apoio], a realidade vs. a ficção, o pequeno vs. o grande) numa forma muito concreta durante o curso de uma história que fosse interessante para eles. «O Quarto de Jack» é uma espécie de «zona de desconforto»: eu tentei manter o tom desconfortavelmente equilibrado entre o claro e o escuro, o confortável e o horrível, em cada página.

A dialéctica entre a realidade e a ficção percorre todo o livro. Há uma alteração radical da ordem de tudo (como em «Alice no país das maravilhas»). Para Jack, a ficção é o «Espaço Lá Fora». Por outro lado, para a mãe é o oposto. A certo ponto lê-se: «As histórias são um tipo diferente de verdade». A nossa realidade é limitada pelo que lemos? 

Um crítico britânico chamou à queda da inocência de Jack uma revolução Copérnica, como descobrir que o mundo é redondo. Sendo uma ex-católica, eu vi-a como uma Queda Bíblica, como Adão e Eva, e é por isso que a Mãe oferece uma maçã quando confessa que ela vem do «Espaço Lá Fora». Há uma grande excitação que vem com o seu [Jack] novo conhecimento, mas uma grande perda também. Como mãe, eu estou constantemente consciente que parte do meu trabalho é contar mentiras aos meus filhos: ficções simples, reconfortantes e encorajadoras que moldam para eles o mundo doido e encoraja-os a enfrentarem os seus desafios. Por exemplo, eu tenho muito medo do primeiro Natal em que eles deixarão de acreditar no Pai Natal…

De certa forma, é uma tarefa do escritor revelar e/ou esconder o que se pode ver no mundo que ele/ela cria? Que poder tem como escritora? 

Um grande poder, mas não absoluto. O livro sai para o mundo como uma criança e o escritor não tem mais controlo sobre o que acontece com ele… 

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com




RoomRoom by Emma Donoghue
My rating: 4 of 5 stars


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Para Adquirir:

O Quarto de Jack - www.wook.pt
publicado por oplanetalivro às 11:25

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