22
Abr 14

«A Segunda Morte de Anna Karénina»: jogo de máscaras


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=660519


Ana Cristina Silva constrói a sua mais recente obra literária, “A Segunda Morte de Anna Karénina” (Oficina do Livro), apoiando-se num clássico enredo de traição e vingança. A interrogação espalha a sua sombra da primeira à última página. Algumas perguntas terão resposta, outras não.

Violante procura reconciliar-se com o passado. Interroga-se sobre o que seria de si caso não tivesse dado o único filho (Rodrigo) para adopção. O ex-marido procura saber se é pai do filho de Violante, ou se o filho é fruto da traição. Rodrigo encontra a sua resposta perante as interrogações apresentadas pela sua identidade sexual. Eduardo, o amante de Rodrigo, recalca os seus desejos sexuais.
Em todos existe um jogo de máscaras. O jogo entre o real e o irreal e entre a verdade e o fingimento deixa o leitor em suspenso. A relação entre Violante (actriz) e Luís Henrique (actor), seu ex-marido, confunde-se com os papéis por eles representados no teatro. O fingimento é parte integrante do casamento. A veracidade das palavras e dos sentimentos é obscura. A separação entre real e representado é problemática. O já mencionado jogo de máscaras mantém-se na ligação entre Rodrigo e Eduardo, além de nas suas relações com as correspondentes famílias. A Literatura assume, em ambos os casais, um papel fundamental na construção da personalidade.
Violante debate-se com a ausência de qualquer instinto maternal, mesmo a dor é, para ela, inacessível. No funeral do seu filho percebe que “ (…) a cerimónia fúnebre não lhe desperta a mínima comoção. A dor, que lhe parecia iminente antes de ali chegar, é na verdade inalcançável” (pág. 10).
O filho Rodrigo faleceu na Batalha de Lalys (09-29 de Abril de 1918), Primeira Guerra Mundial. Durante o combate nas trincheiras escreve diversas cartas ao seu amante, Eduardo. É através da leitura desses textos que o leitor tem oportunidade de observar a evolução emocional de um homem que se debate com as suas tendências sexuais. Rodrigo, a personagem mais bem construída deste romance, conta ao seu amante o percurso que trilhou até à aceitação e pacificação.
A autora consegue, com sucesso, fazer o paralelismo entre a guerra em França e a guerra social. As provações nas trincheiras reduzem o juízo social ao que realmente é: “O meu amor por ti tinha poder para perturbar o modo de vida burguês em que cresci. Também disso tive medo. Aqui, as consequências são, sem dúvida, menores, tiros e obuses podem tirar-me a vida, mas nunca a reputação de homem honrado” (pág. 42)
Mas Eduardo tem uma perspectiva diferente. Para ele, a homossexualidade baseia-se em “vícios de carácter”, ou defeitos no seu espírito.
O desenvolvimento desta tensão entre os dois e dentro deles próprios é muito bem gerido pela autora. A velocidade da narração potencia o drama, sem cair em sentimentalismos, e permite ao leitor entender a complexidade emocional destes dois personagens. A menor eficiência na gestão dessa mesma velocidade, quando acompanha Violante, leva a crer que a autora se sente mais confortável quando adopta o tom confessional na 1ª pessoa narrativa. No entanto, a homogeneidade da narrativa nunca é posta em causa.
De forma similar a outros livros, a autora opta por diferentes perspectivas na construção do romance. O leitor é entregue à visão de uma 3ª entidade, quando acompanha Violante, mas tem a possibilidade de interpretar, através do discurso directo, a comunicação epistolar entre Rodrigo e Eduardo.
A estrutura é mais conservadora neste livro do que no anterior, “O Rei do Monte Brasil”. Há dois fluxos narrativos diferentes, intercalados, em “A Segunda Morte de Anna Karénina”. O drama de Rodrigo é paralelo, mas não independente, ao de Violante, sua mãe.
A sombra de “Anna Karénina” pousa sobre o livro de Ana Cristina Silva. A intertextualidade entre a obra de Tolstoi e a da autora portuguesa é logo declarada no título. As personagens da escritora portuguesa partilham características com Vronski, Lévine, Kitty e Anna: A oposição entre amor carnal e físico, aproveitamento e sacrifício, vida e morte, o comportamento social e o individual.
Ana Cristina Silva- autora de “Cartas Vermelhas” (2011), livro seleccionado como Livro do Ano pelo jornal Expresso e finalista do Prémio Literário Fernando Namora, e de “O Rei do Monte Brasil” (2012), finalista do Prémio SPA/RTP e vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues 2013, tem conquistado, gradualmente, leitores e críticos.
“A Segunda Morte de Anna Karénina”, seu décimo romance, é mais uma etapa na consolidação da sua presença na Literatura Portuguesa.
publicado por oplanetalivro às 06:47

18
Abr 14



ENTREVISTA: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2014/03/entrevista-com-valerio-romao-diario.html

"A noção de paternidades falhadas não tem tanto a ver com a falha no sentido de ser mau pai, ou má mãe, mas sim com uma incompletude na assunção de maternidade ou paternidade."

                                                                     &


CORRENTES D`ESCRITAS: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2014/04/correntes-descritas-primeira-vez-de.html

"Dentro das Correntes, todos os autores são um mundo, mas poucos metem tanto medo como o de Valério Romão." 
                                                                      &


"A sua capacidade literária é perceptível na inteligência e labor com que transforma matéria real em linguagem literária."








publicado por oplanetalivro às 15:27

Correntes d´Escritas: a primeira vez de Valério Romão




O escritor Valério Romão participa pela primeira vez nas Correntes. Hoje vou entrevistá-lo. Preparar a entrevista com o autor de “Autismo” e “O-da-Joana” foi uma experiência dolorosa. Entendê-lo é mergulhar na dor. É mexer no lodo da alma. É ser violado pela angústia.

Valério Romão expôs-se à possibilidade do ridículo; exerceu o seu direito a ser ridículo. Em vez de ser apontado, ele mostrou que a dor, a liberdade, o medo, o egoísmo, a individualidade são matérias comuns a todos nós. Em vez de ser apontado, ele mostrou-nos a raíz da dor.
Valério Romão chegou. Sentou-se à minha frente. Escreve. Não sabe que o observo. Se eu lhe contasse, sentir-se-ia como uma personagem dos seus romances. Eu poderia castigá-lo como ele o faz com as suas criações. Mas o meu hipotético sadismo foi ultrapassado pelo seu masoquismo. Poucos são os autores capazes de mostrar, de forma tão aguda e funda, as profundezas lodosas da sua dor.
A primeira mesa em que participa tem, entre outros valorosos participantes, o pai de Fazal Elahi, Badini, Salim, Isa… Chegou ontem sem guarda-chuva. Afonso Cruz, Valério Romão e Patrícia Portela sentados à mesma mesa de Ivo Machado, Miguel Real e Hélder Macedo.
Faço um cinematográfico “zoom” a Valério Romão. É ele o alvo da minha atenção.
T-shirt estampada, casaco que poderia ter sido roubado a Chris Martin, dos Coldplay, cabelo… desalinhado? cCnfuso? Talvez amotinado. Barba.
O mais interessante está por dentro. Os leitores terão oportunidade de usufruir de uma visita guiada pelos meandros dos universos “valerianos”, brevemente, no Diário Digital.
Em “Palavras + Correntes = X”, Valério Romão olhou ironicamente para a Moral, afirmando “[nas Correntes] Há espaço para tudo, até para a Moral”. Enquanto os outros intervenientes difundiram a sua análise por um largo espectro proporcionado pela falácia da equação, Valério Romão incidiu a sua atenção no que não é quantificável: na vida das pessoas.
É a visão presente nos seus livros. O inquantificável é dominador. Não é o PIB que assusta, é a fome; não é a escala de Richter que assusta, é a terra a tremer.
Parece ser um autor assolado pela culpa, pela penitência e pela ironia com que se analisa e observa os outros.
Dentro das Correntes, todos os autores são um mundo, mas poucos metem tanto medo como o de Valério Romão. 
publicado por oplanetalivro às 15:16

04
Abr 14


Ndalu Almeida, ou seja: Ondjaki. Escritor angolano nascido em 1977. O seu pseudónimo significa “Guerreiro” em Umbundu, uma das línguas mais faladas em Angola.

Licenciado em Sociologia, Ondjaki desde cedo despertou para a Literatura. Os prémios depressa apareceram. Em 2007, recebeu o “Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco” com a obra “Os da minha rua”. Na Etiópia, foi galardoado com o prémio “Grinzane for best african writer”, em 2008. No Brasil, foi vencedor do “Prémio Jabuti”, na categoria juvenil, com o livro “AvóDezanove e o segredo soviético”.
O seu livro “Os Transparentes” ganhou o “Prémio José Saramago”, em 2013.
O Diário Digital entrevistou o autor na Póvoa de Varzim, durante o festival literário “Correntes d`Escritas”. Era cerca de uma da manhã, quando a conversa começou. Ondjaki tinha terminado um debate literário com Miguel Sousa Tavares, Manuel Jorge Marmelo, Rui Zink, Carlos Quiroga e Manuel Silva Ramos. A fila para lhe pedir um autógrafo e uma fotografia era extensa. Quando o autor conseguiu sair, já o auditório estava vazio e a Feira do Livro, adjacente ao auditório, fechada.
O Povo angolano sabe que a Senhora Ideologia [personagem de “Os Transparentes”] morreu?
Não sei se o povo angolano sabe. Não é que eu no meu livro matasse a Senhora Ideologia. O que no meu livro acontece é que finalmente se dá a notícia às pessoas de que a Senhora Ideologia já morreu. Mas realmente, para te responder à pergunta, eu não sei se o povo angolano sabe que a Senhora Ideologia já morreu.
Na minha opinião, em Angola a Ideologia morreu.
E foi substituída por o quê?
Não faço ideia, nem sei se quem a matou tinha a noção do que estava a fazer.
Fiquei com a sensação de que há mais uma violação da terra e da gente do que um esforço de desenvolvimento? É isto que se passa em Angola?
- Não sei se o povo está a ser violado ou violentado, mas o que há ali [“Os Transparentes”] – claro que o livro é uma ficção- é o ponto de vista da minha preocupação pessoal como autor- é uma tentativa de chamada de atenção para que, de facto, não se confunda o modernismo do cimento, ou até o modernismo do dinheiro e do petróleo com o desenvolvimento social. É verdade que um país como o nosso esteve 40 anos em guerra. Evidentemente que há reconstrução de pontes e de estradas, mas para mim seria preciso dar prioridade à reconstrução moral,  cívica, da cultura e da educação. Para mim, é onde o dinheiro devia estar a ser usado prioritariamente.  Onde eu vejo o dinheiro ser usado prioritariamente é no betão e na reconstrução de estradas. Muito bem, mas a reconstrução de uma ponte é ter dinheiro, que o governo angolano tem, chama o chinês e o chinês faz a ponte. Isto até nem precisa de muita planificação: chamar o engenheiro e os trabalhadores e fazem.
A reconstrução... não é bem uma reconstrução, é um reinvestimento na cultura e na educação, que também há, mas eu vejo mais a nível do cimento. Sim, há novas escolas. Sim, há novos postos de saúde. Sim, há novas universidades, mas a prioridade - repito- devia ser dada à qualidade do ensino e não aos prédios onde ensinam. É preciso repensar a qualidade dos professores que temos e do nível de ensino. O mesmo se aplica à cultura. E isto não é visível, porque não é como uma ponte que aparece daqui a 6 meses, mas talvez daqui a 6 anos ou daqui a 60 pudéssemos então- oxalá possamos- ver um país a renascer. Claro que os países se reinventam, e Angola está a renascer e está a reinventar-se. Eu acho é que tem de se pensar que maneira é que todos nós, cidadãos e políticos, queremos que Angola se reinvente. Como é que a queremos? Que Angola queremos nós, cidadãos, para o nosso futuro?
Está tudo a acontecer muito depressa…
Depressa é inevitável! O depressa está em todo o lado. Está em Nova Iorque, está em Joanesburgo e em nós também, mas o depressa tem de ser contrariado, o depressa não existe, o depressa não funciona. O depressa traz defeito. O depressa é perigoso...mas enfim… eu não sou político. É uma mera reflexão pela via da ficção.
A tua literatura é uma arma de combate social?
Eu acho que não, ou seja eu não uso com essa intenção. É óbvio que o livro pode ter várias leituras; é óbvio que “Os Transparentes”, dentro destes livros que eu escrevi, é talvez o livro com uma carga política um bocado mais forte. Existe ali qualquer coisa de inquietação política, mais do que crítica ou outra coisa qualquer. O que eu quero transmitir é inquietação; a minha pessoal, acho que transmito a de algumas pessoas também, é a minha pessoal e assumo-a. O livro está assinado por mim.
Eu só chamo a atenção para coisas que eu gostaria que fossem passíveis de reflexão e de discussão aberta.
Em “Os Transparentes”, Luanda é a personagem principal?
Eu acho que sim. Acaba por ser. Não é a primeira vez. Há um livro chamado “Quantas madrugadas tem a noite” em que o pano de fundo e uma das personagens principais é a cidade. Aqui em “Os Transparentes” é mais evidente. Luanda aparece com os seus tentáculos e esses tentáculos são as pessoas, desde o vendedor de conchas ao ministro; desde a avó, que veio de Huambo e que vive em Luanda enclausurada numa outra língua que não é a dela, até ao menino que transporta baldes de água e lava os carros. Estas pessoas fazem uma certa Luanda. Evidentemente que outros escritores poderão optar por uma outra visão de Luanda.
Angola, tal como Luanda, é um país permanentemente em obras/reconstrução?
Ainda é e ainda será. Lá está! É preciso ver que a reconstrução está a ser feita a vários níveis: do ponto de vista de quem manda, que é o governo, mas do ponto de vista também de quem lá vive e tem o seu próprio conceito de reconstrução. Luanda, especificamente, é uma cidade que vive em função do dinheiro- e onde há dinheiro isso tende a acontecer; onde há menos dinheiro as pessoas vivem menos em função do dinheiro- ali há muito dinheiro e toda a gente gira em torno do dinheiro, seja o dólar seja o kwanza.
Isto é uma coisa que me deixa triste. É Natural? Bom, talvez, mas deixa-me triste; é uma outra Luanda em relação às luandas que já houve e às luandas que eu conheci antes. Havia menos dinheiro, ou pelo menos circulava menos dinheiro.
O ministro tem gelo enquanto a população sofre com a falta de água. É possível escrever sobre a classe média? Ela existe?
Está a aparecer devagar uma classe média. Não é, sociologicamente, a classe média típica, se analisarmos vários indicadores, porque a classe média não se faz só por valores monetários. Eu acho que, neste momento, se eu te falar de uma classe média, eu vou estar a falar exclusivamente no salário das pessoas. Nesse sentido, sim; há uma nova camada que está nos bancos, há uma nova camada que está a ganhar melhor. Isso vai ser a nossa classe média, mas é preciso atenção porque sociologicamente a classe média deveria compreender outros indicadores: aptidões intelectuais, aptidões sociais, acesso a determinado tipo de bens e de direitos. Isso não sei se existe porque está tudo muito ainda em função do dinheiro, tanto a oportunidade quanto o acesso. Isto complica. Não deveria ser só o dinheiro a permitir o acesso a determinado tipo de serviços ou de bens. A água é um exemplo: mesmo quem tem água em casa é porque tem tanques de água e quando a água vem, que não é todos os dias, armazena a água e depois tem água que parece corrente. Mas a água não vem todos os dias para toda a gente em Luanda. No caso de Luanda; já nem falo nas outras províncias. A meu ver, é uma das prioridades. Seria interessante ver um político ou governante dizer “Vocês já viram que já resolvemos o problema da água?” Isto para ele seria um trunfo político; para mim seria uma coisa normalíssima que os políticos estivessem preocupados. Num país com o número de rios que nós temos- há províncias com mais de 3 rios- seria incrível se conseguíssemos finalmente que a população… Eu até digo prioritariamente a água! Mais do que a luz porque a água faz mais falta a toda a gente.
Em “Os Transparentes” procura-se petróleo, mas falta água. A que se deve esta inversão de prioridades?Isto é na ficção. Não há petróleo “onshore”, digo eu… É simbólico, mas essa simbologia estende-se a muitos políticos no mundo que raramente adoptam como suas prioridades  as prioridades de quem conta com eles. É muito raro um político adoptar como prioridade aquilo que realmente faz falta. São outras agendas! Isto é incrível!
Estou a ouvir-te e, tirando alguns aspectos particulares, consigo identificar a Europa.
Claro! Estás a ver a França, estás a ver a Espanha, a Itália e estás a ver Portugal. Claro!
Angola teve uma guerra civil, houve uma “catarse” de sangue. Dá-me a sensação- obviamente que é ficção- de que há uma constante destruição e reconstrução na Luanda de “Os Transparentes”. É necessária uma nova catarse, uma nova forma de niilismo na transformação da sociedade angolana?
Não sei se a palavra é “Necessária”... Não sabemos muito bem o que vai acontecer. O partido que está no poder está no poder há muitos anos, a pessoa que está no poder como Presidente da República, por variadíssimas razões, está no poder há muitos anos. Angola vai ter que lidar com isso. Um dia, Angola vai ter de que repensar isso; vai ter que se perguntar porque ficou tanto tempo o mesmo partido e o mesmo presidente. É impossível que ninguém se pergunte. As pessoas se perguntam, muitas vezes…
A Literatura é a expressão de uma identidade. Parece-me que a literatura angolana já está consolidada…
Sim, mas é feita por um pequeno número de pessoas. Hoje o Ungulani, de Moçambique, estava a me dizer que nos nossos países o número activo de escritores face à dimensão populacional é curto. Angola neste momento deve estar com cerca de 18 a 20 milhões de habitantes.  Vamos admitir que sejam 200 [escritores], oficialmente. É pouco. 200 escritores para 20 milhões é pouco.
Não podemos mandar para a faculdade e desejar que sejam escritores. Não podemos controlar, mas podemos favorecer as condições para que apareçam, não é? As pessoas vivem em condições que não permite sonhar com o ser escritor. Neste momento, a juventude sonha com ser desportista ou cantor. E porquê? Porque são duas coisas que resolvem o problema das pessoas pela via do dinheiro, pela via da fama, pela via do encosto -encosto-me a este, encosto-me àquele. Escritor, algumas pessoas querem ser, pelo prestígio, mas não é uma carreira promissora.
Então não há uma crise de identidade em Angola?
Não, eu acho que não. De um modo de um geral, os angolanos sabem muito bem o que são; alguns estão equivocados, como noutras culturas.
Eu prefiro pôr em questão e prefiro pensar sempre que não é possível falar em identidade angolana enquanto conceito fechado e que é bom que esse conceito seja arejado e que possamos reconstruir todos os anos, todas as décadas. Se há pessoas que estão convencidas que sabem exactamente o que é a identidade angolana...bom...essas pessoas têm o seu caminho a fazer.
Em “Os da minha rua“ usaste muitas memórias de infância?
Sim, sim…
E em “Os Transparentes”?
Quase nada.
Há pessoas que são baseadas em pessoas que conheço.
Essas histórias não são minhas; toda a gente conhece essas histórias. O meu trabalho é agrupar essas histórias e, claro, dar-lhe um traço de escrita, que é meu. Toda a gente em Luanda sabe daquelas histórias. Toda a gente.

Existem características tuas espalhadas pelas personagens, presentes principalmente em Odonato? Lembro-me do idealismo de Odonato e da frase que disseste na entrega do prémio Saramago “Na palavra cantil guardo a utopia, para que durante a vida eu possa não morrer de sede”; lembro-me também de PauloPausado e a sua mania em coleccionar pessoas estranhas e ouvir conversas…
Há coisas nossas que no momento certo precisamos de usar. Não é “agora vou fazer isto baseado em mim”, mas naturalmente uma ou outra coisa deve saltar; um ou outro personagem deverá falar-nos mais ao coração do que outros. Certamente não me identifico, como pessoa, com o ministro. Também não sei se com o Odonato...Eu conheço pessoas assim que acreditaram numa certa esquerda, a dada altura, e que são de esquerda ao contrário de outros que não sabem bem o que é; tanto não sabiam o que eram como ainda hoje não sabem. E tanto lhes faz. Eram hiper-comunistas, hiper-marxistas/leninistas, mas mal o sistema mudou foram se casar na Igreja. Eu não tenho nada contra uma pessoa que se case na igreja!
Não é como a esquerda italiana que tem a esquerda italiana católica. Em Angola, quando tu eras Marxista-Leninista, em princípio, não eras católico, mas até podia ser que se fosse, pois a pessoa estava escondida. Mas aqueles que diziam abertamente que não eram depois vão se casar pela igreja e depois têm 4 Mercedes em casa, no quintal! Esses que se diziam de extrema-esquerda, hiper-colectivistas e Marxistas-Leninistas! 4 Mercedes… acho que alguma coisa aqui não está bem.
Odonato representa um bocadinho isso. Acho que o Odonato às vezes ainda diz isto: “Eu acreditei naquilo que me disseram; que era para todos, que era para dividir”. E de repente vê que não é nada disto. Isto é uma desilusão não só política como humana. Ele está todo destroçado. Ele não come, o filho desapareceu. Coitado! Também dei-lhe uma conjuntura não muito fácil. Ele tinha que ficar transparente, pois já não aguenta. Ele desaparece de si mesmo! É esta transparência.
Ele tem essa pureza, essa ingenuidade...
Sim, sim… eu achei-o excessivamente puro, no aspecto literário. Aquela pessoa não existe. Não pode existir. Na verdade, era eu que precisava dele para contar uma história e pu-lo assim. Acho que ele não existe.
E o filho Ciente? É um personagem simbólico? Não lhe deste esperança nenhuma. Ele não teve saída.
Não, não… Ele já estava condenado à partida. Na realidade, ele ajudou-me imenso para o pai ficar mais desesperado, ir à procura dele. O Odonato é um frustrado, de buscas frustradas, e tem um filho assim. O filho, não. O outro personagem, amigo do filho, que é um ladrão e que se chama ZéMesmo, é muito mais uma brincadeira simbólica do que o Ciente. O Ciente, simplesmente, ajuda o personagem do pai a dizer certas coisas e a fazer certas coisas.
E qual é o simbolismo de ZéMesmo?
Daqui a uns anos as pessoas vão perceber. [risos]
As personagens são adjectivadas com alcunhas que demonstram traços físicos ou de personalidade. Porquê esta manipulação lexical/semântica?
Isso começou com “O Assobiador”, que é um livro já antigo, e achei interessante. Eu queria um livro em minúsculas porque dão uma certa fluidez no discurso e, ao mesmo tempo, uma certa confusão, que é Luanda. Então não me interessava muito estar preocupado com os pontos e os parágrafos, nem me interessava se a pessoa parava de ler, ou onde parava. Era isto. Essa estrutura gráfica era muito mais até para criar nos nomes uma coesão, pois não é preciso estar a separar e faz-me confusão. Gosto muito de ver os nomes todos juntos: HospitalMilitar, RádioNacional. É o fluxo de Luanda que não pára, ou pára com aquelas divisórias de capítulos que são pausas, na realidade.
No cinema [Os Transparentes], as imagens são dadas, mas os sons são feitos pelas pessoas. Qual o significado da parábola do cinema?
Não sei se tem um significado. Era muito mais um sonho. Acho isso muito bonito. Porquê? Porque no teatro, que é uma arte muito mais humana na hora de ver- no cinema está lá uma tela fria, a gente olha e vê- temos tudo ali:
A voz, a respiração, a falha, o suor do actor.
E eu pensei que aquilo era uma maneira de inventar uma interacção que o cinema não tem. Tu tiras o som, ou o JoãoDevagar [tira o som], e dizes: “Não, não, não… Aqui, neste cinema, cada um vai fazer o som”. Apelar às pessoas a participarem nesse filme. Claro que pode ser o filme da vida, o filme da cidade. No meu caso, ele ainda faz uma coisa “pior”; depois põe um filme pornográfico, à noite. Mesmo no filme pornográfico as pessoas é que fazem os sons. Tu podes optar por fazer o som do filme pornográfico, mas também podes optar por outra coisa, ou seja tu interferes no filme, usas a imagem, mas interferes. E esse é o poder de criação de cada um. Nós podemos interferir mesmo naquilo que aparentemente já está destinado para ser assim.
O som parece-me ser muito importante na tua prosa: jazz, o cinema, a situação (pág. 214) em que o carteiro fica “a ouvir a orquestra de sons brandos que o prédio lhe trazia”. O que pensas que a mistura de línguas e dialectos traz à tua literatura? Dedicas especial atenção na construção dessa melodia?Não, à melodia propriamente não diria. Os projectos, às vezes, conseguem dizer-me que ritmo é que terão; ou seja, “O Assobiador”, como é muito mais lírico, muito mais calmo, muito mais delicado, tem um tipo de linguagem. O Madrugadas [Quantas madrugadas tem a noite], que já é de uma Luanda muito mais dura e rústica, tem outro tipo. E isto varia um pouco porque há zonas ligeiramente poéticas e há zonas mais duras. Por exemplo, o livro tem diálogos muito longos, de 4 ou 5 páginas, que é o que os luandeses fazem muito. É obrigatório falar, não podemos estar calados mesmo que não tenhamos nada para dizer. Às vezes as pessoas diziam-me “Este diálogo está um bocado extenso”; eu dizia “Desculpa lá, mas é mesmo assim. Não é para ser uma perfeição literária; isto aqui é para reflectir um bocado sobre o que se está a viver em Luanda”. Tive essa delicadeza- claro que não é fácil - em tentar dizer “Aqui fala-se à toa. Aqui fala-se por falar”, por um lado. Por outro, é uma homenagem às pessoas que estão sempre a criar! O diálogo é o teatro que os luandeses fazem todos os dias! Esse teatro acontece muito por via do diálogo. Tu vês em qualquer conversa que a pessoa tem necessidade de criar a palavra ou a acção. Ele está a contar-te uma coisa que não aconteceu. Parece uma obrigação. Isso eu acho muito interessante!
Uma pessoa chega atrasada e conta-te uma história. Bom, está bem. É para se justificar. Mas é que não é só para se justificar! É porque ela acha mais interessante estar aqui cinco minutos contigo a inventar-te uma história do que simplesmente dizer-te a verdade, mas não é para se desculpar do atraso! É óbvio que chegou atrasada! Não! É porque já agora tem a oportunidade de te contar uma história inventada ou adaptada! Eu acho fantástico que as pessoas tenham a necessidade de teatralizar a própria realidade! O que os psicólogos dizem acerca disso? Podem dizer muita coisa por que o povo está sempre com necessidade aquilo que vive… Acho que isso pode dizer muito, não é? Quer efabular ou não está muito satisfeito com aquilo que vê. Ou os dois.
Esse “contar histórias”, essa oralidade ainda é base da passagem cultural?
Nas cidades, eu não sinto. Evidentemente que há espaços rurais que, felizmente, estão protegidos dessa invasão do ritmo tanto do tempo quanto do dinheiro. Ainda tem comunidades rurais- as chamadas comunidades étnicas- que preservam as suas tradições de maneira interessante: as festas da circuncisão, o modo como é pedido o casamento, o modo como os enterros são feitos, os cânticos para a colheita, os cânticos para apelar à chuva. Isso existe.
Agora vivo no Rio, mas sou de Luanda, e não tenho acesso às histórias ditas tradicionais.
Eu gosto que essas histórias sejam contadas por pessoas que as conhecem bem porque se não cai-se no exotismo literário e eu não tenho paciência nenhuma para isso.
O que achas que se perde ou que se ganha na passagem dessa oralidade para a escrita?
S
ão universos que às vezes se encontram, mas são universos diferentes. Há histórias que foram feitas, e ainda são usadas há milhares de anos, para serem contadas oralmente. O aproveitamento que podemos fazer dessas histórias, dando-lhes um tratamento literário, é outro caminho. Vale a pena? Vale, se o escritor for bom vale a pena, mas é preciso não esquecer que há histórias que fazem e farão parte da tradição oral. Talvez morram porque as comunidades rurais e o espaço rural do mundo está a terminar.
Foste para o Rio de Janeiro há quanto tempo?
Estou lá há 6 anos.
A passagem do interior para o exterior mudou a tua visão?
Deve ter mudado. Há até o efeito da distância, o efeito da saudade, que nos torna mais críticos ou nos torna mais brandos. Eu procuro ficar numa linha divisória entre a procura da clareza da distância sem querer a frieza do desconhecimento, de não estar lá. Não quero essa frieza. Não quero-me armar em que sou o maior crítico agora que não estou lá. É muita delicada a fronteira entre: critico, porque acho que tenho de criticar, mas eu não estou lá então que direito tenho em criticar?
É uma dúvida que me assombra todos os dias.
publicado por oplanetalivro às 14:01

03
Abr 14
Um grande Livro!

http://p3.publico.pt/cultura/livros/11481/quothabitante-irrealquot-de-paulo-scott


http://p3.publico.pt/cultura/livros/11481/quothabitante-irrealquot-de-paulo-scott
publicado por oplanetalivro às 14:11

29
Mar 14

Valério Romão, o lúcido


Valério Romão (n.1974, França) ilumina os lugares onde escondemos os nossos terrores. Ele dá-nos a oportunidade, através da sua criação literária, de observarmos os medos até então recalcados. A dor, não sendo um objectivo, é uma consequência da leitura.

Um dos aspectos mais interessantes da prosa de Valério Romão é o equilíbrio. Em momento algum, o autor cai num lirismo oco e inócuo. Com três livros publicados, “Facas” (Companhia das Ilhas), “Autismo” (Abysmo) e “O da Joana” (Abysmo), Valério Romão conquistou o respeito dos seus muitos leitores.

O Diário Digital teve a oportunidade de acompanhar o escritor durante a sua primeira participação nas “Correntes d`Escritas”, conforme os leitores do Diário Digital puderam constatar.

A entrevista ao autor impõe-se como imprescindível na descodificação do pensamento “valeriano”

DD- “Autismo” e “O da Joana” fazem parte de um conjunto intitulado “Paternidades Falhadas”. Onde é que elas falharam, se é que falharam?
VR- A noção de paternidades falhadas não tem tanto a ver com a falha no sentido de ser mau pai, ou má mãe, mas sim com uma incompletude na assunção de maternidade ou paternidade. No caso do “Autismo”, não se chega a ser pai ou mãe por completo. Então, a falha não está no lado da execução diária da paternidade, mas está no facto de, no caso do “Autismo”, a paternidade ser incompleta porque a criança não é igual às outras. A paternidade não se desenvolve da mesma forma, não é exactamente a mesma coisa do que a paternidade normal. No caso de “O da Joana”, a maternidade da Joana começa muito antes da gravidez- é uma ideia, um projecto, uma razão de vida- e não sobrevive ao choque com a realidade, que é a morte do filho e da ideia que orienta a vida dela. Neste caso, a falha da maternidade não é uma falha que se lhe possa ser imputada, mas é uma coisa que ao ser amputada também acaba por provocar uma derrocada na própria existência dela porque é uma ideia reguladora e fundamental da sua existência.

“Autismo” nasce de uma experiência pessoal. Serviste-te do teu blogue [http://trabalhodecasa.wordpress.com/], onde relatas a tua experiência, como base para “Autismo”?
Não. Servi-me da minha experiência, mas … ainda que de certo modo, na verdade, um escritor se sirva sempre da sua experiência pessoal, mesmo quando o livro é menos pessoal e a sua presença enquanto pessoa está mais diluída; ou seja, a escrita é o resultado de uma experiência no encontro com qualquer coisa. E é o resultado catalisado de várias experiências nessa experiência da escrita. O “Autismo”, claro, tem essa componente de autobiografia em que o que acontece é como se tu pegasses num calendário, onde tivesses uma agenda, umas datas, uns acontecimentos, e aquilo fosse uma estrutura objectiva com poucas anotações e depois construísses tudo o resto à volta do que era importante. A parte biográfica, sendo muito forte,  não é muito presente. São ideias de experiências que ia tendo que depois são catalisadas em estruturas radicalmente diferentes.

Apesar de haver conexões, uma situação é a tua experiência pessoal, outra situação é a ficção. São dois mundos diferentes?
Sim, sim… Claro que há pontos de ligação em “O da Joana”, em “Facas”, onde quer que eu escreva, porque a escrita tem um cunho da pessoa que o faz; é subjectivista e intensamente pessoal. Mesmo que isso se note mais ou menos, mesmo que seja uma escrita mais borgeana, mais para o lado do intelecto e do jogo mental, nota-se que há exposição.

Em “Autismo” há várias perspectivas narrativas, mas em “O da Joana” focaste essencialmente o papel dela. Como é que foi essa passagem de algo pessoal para o papel da mulher?
Quando eu comecei a escrever “O da Joana”, eu sabia que [o livro] ia ser uma mulher e que iria ser aquela experiência. A minha primeira preocupação era que não falhasse demasiado e que conseguisse entrar na personagem, ainda que “a roupa ficasse curta”, pois temos estruturas diferentes: eu sou homem, ela é mulher. Que não fosse grotesco. Nesse sentido, ia dando o texto a ler a mulheres amigas que me asseguravam que não estava a descambar.

De forma a ser credível…
Sim, sim, se era credível. Eu ia relatar uma experiência muito intensa de um universo que ainda hoje, nesta altura da contemporaneidade com a igualdade de géneros e direitos, é muito feminino e que os homens não percebem. O corpo masculino é o limite da possibilidade da sua experiência. Não tem aquele órgão.  Pode perceber de uma forma mediada, mas não pode perceber como a mulher percebe. Este era um jogo arriscado: entrar nesse corpo, fingir que se tem esse órgão e, no fundo, ser guiado por essa voz.
Por que te interessas tanto pelo “mecanismo da dor”?
A dor é uma consequência; não é a parte que me interessa mais. A parte que me interessa mais é a parte imediatamente anterior à dor. É a parte em que existe conflito, choque, sonho. É verdade que nos meus livros as coisas têm corrido mal às personagens. Isso provoca dor nas personagens e também no leitor, provavelmente, mas não é o leitmotiv. Eu vou à procura de outra coisa; vou à procura de uma experiência que possa ser reconduzida com honestidade, justiça e inteireza. Por ser como sou, como sou constituído, é mais empática uma experiência que tenha um registo trágico do que uma experiência que tenha um registo cómico, ou positivo. Acho que há histórias que merecem ser contadas, em primeiro lugar, e sobretudo que há sítios da casa que não estão iluminados. Se eu já passei por eles, se já os vi, não posso ignorar que os vi.

Pões as personagens numa experiência radical para ver como elas se comportam?
Gosto de pensar que posso ter uma espécie de quarto, onde  intensifico a pressão e depois vejo qual é o resultado. O que vem acima, normalmente, é o melhor ou pior de cada um de nós. Interessa-me escrever nessa amplitude, nessa frequência de onda, nos extremos. É que os extremos podem ser o prazer, a dor, a mortalidade, a fragilidade, o êxtase. Há um humor discreto dentro dos meus livros, ainda que isso não os tenha povoado ou respirado muito. Há um bocado de toda a vida dentro dos meus livros. Isso interessa-me.

Vai ser uma trilogia, certo?
Sim.

Deu-me a sensação nestes dois livros [“Autismo” e “O da Joana”] -talvez errada- de que há uma espécie de niilismo, de destruição. O 3º será uma parte de reconstrução? Será no mesmo registo?
Eu não concordo com a tua leitura... São experiências de vida, por mais duras que sejam. Eu não superei a realidade; a realidade supera-nos sempre. São experiências que merecem ser contadas. Nós estamos numa altura da nossa vida enquanto pessoas neste planeta e neste tempo presente em que os registos, normalmente, oscilam- com uma galeria de honrosas excepções- entre a “superficialidade banal”, que tem a ver com aquilo a que se chama momento de entretenimento, e a “violência gratuita”, que tem a ver com aquilo a que se chama também entretenimento, mas que é um horror que tem mais a ver com a paranóia do que com a neurose. Não te mostra para tu inventares os teus próprios medos. E os meus livros não são isso. Não são nem gratuitos nem feitos para provocar essa sensação. São reconduções de experiências que são absolutamente reais, no sentido de que podem ter acontecido, ou são passíveis de acontecer. As experiências traumáticas não podem ser anestesiadas, amputadas, contadas de outra forma, mas não me interessa o choque. Não é para isso que eu escrevo.

Foges do que é inócuo...
Sim, porque não está na minha natureza. Há coisas que não me interessam por natureza, por eu ser assim.
O que é o inferno? A Sala de Espera, tanto num como noutro romance, ou o diagnóstico, o conhecimento? 
Em “Autismo”, o inferno é a espera. Não só a espera antes do diagnóstico. O livro tem a parte do diagnóstico, que é feita de forma surrealista porque o médico é “sui generis”, mas acontece que o diagnóstico em “Autismo” não é apaziguador. E porquê? Porque subsiste a dúvida de o autismo ser aquele guarda-chuva sob o qual cabem imensas condições, variabilidades, pessoas que falam, pessoas que não falam, pessoas que precisam de assistência para o resto da vida, outras que se desenrascam bem e arranjam emprego… O que subsiste depois do diagnóstico continua a ser a dúvida porque não há uma máquina do tempo que permita a estes dois pais acelerarem, chegarem aos 20 anos [do filho], e perceberem se ele se vai desenrascar. O inferno é sempre a espera. Aliás, eles estão sempre na sala de espera. E é também por isso que a consulta é ridícula. Não acrescenta nada. Dá um nome à coisa, mas esse nome não tem uma qualidade positiva. Não é uma baliza, não é um conceito, apesar de ele fazer aquele traçado entre o Asperger e o autista. É ridículo, mas é mesmo assim. É ridículo.

Há medicina e charlatanismo de algumas medicinas alternativas, mas quase nada de religião em Rogério e na sua mulher, quando é uma via pela qual muita gente opta. A que se deve esta ausência? 
É porque neste caso estas personagens não têm esse apelo. Se tivessem tido, provavelmente haveria qualquer coisa no livro em que isso se notava. Mas, de facto, não têm. São muito contemporâneos, são muito irónicos, cínicos, não acreditam em nada.
Por falar em Charlatanismo e medicina, o capítulo com mais ironia é o do “Fabuloso Dr. Miguel Relvas”. O fabuloso falava com os pacientes, que estavam “enterrados” em pufes. Esta personagem simboliza a falência da medicina?
No fundo, penso que simboliza a incapacidade de a ciência, apesar de a reverenciarmos, resolver alguns problemas. Ainda não tem essa capacidade.  Poderá vir a ter. No caso do autismo, não tem essa capacidade de resolvê-lo. Por outra parte, o facto de estarmos formatados para acreditar que a ciência resolve tudo faz com que a ciência, ou a medicina, quando encontra qualquer coisa que não possa resolver tenha de se comportar como se pudesse resolver. Então, o que acontece é que essa figura é trágica e cómica, ao mesmo tempo, porque é portadora de um curso de não-sei-quantos anos… o internato, depois a especialidade… anda a estudar  vida toda para começar a estudar, depois estuda mais 10 anos, começa a praticar, e vai para um emprego numa área e, basicamente, não pode fazer grande coisa. Isso é trágico!

Não pode admitir que, na verdade, não está ali para fazer grande coisa porque o desenvolvimento da criança não depende, em última análise, de si, porque por mais livros que leia não sabe prever como é que aquela criança se vai desenvolver, etc. As ideias acerca do assunto mudam e são revistas constantemente, o diagnóstico em sim não é clínico, mas comportamental. Há um mundo de incertezas num curso que te prepara para a certeza. Isto é trágico. A personagem em si é trágica.
E o nome: Miguel Relvas [político do PSD]? Foi propositado?
Não foi propositado. [risos] A sério…

Faço-te a mesma pergunta que fiz a José Ovejero, pois parece-me pertinente: A escrita é psicanálise?
Serve-me sobretudo de válvula de escape numa bomba de pressão. Serve-me para apaziguar. Não tem o efeito de autoconhecimento. Se bem que os leitores e os críticos interessados podem… diagnosticar-me pelos meus textos. Não sei qual seria o resultado disso… É apenas mais um jogo que resulta do universo da literatura.

Um pormenor: Porquê “Urgê cias”?
Quando estava a imaginar o sítio, estava a imaginar a placa e na placa apareceu sem o “N” e acabei por escrever assim.

Em “Autismo”, a relação do pai com o filho é diferente da relação da mãe com o filho. Pensas que a relação maternal é mais vinculativa do que a paternal?
Na minha opinião, sim. Sobretudo se for um filho, e não uma filha.

Qual a diferença?
A diferença sexual.

Complexo de Édipo?
As famílias que eu encontro têm a noção de que as mães têm uma relação diferente com os filhos. Primeiro porque educam as filhas no sentido de prepará-las para a função de serem mulheres e não fazem isso com os filhos porque não estão dentro desse território como os homens estão e vice-versa. Há, obviamente, uma relação sexual, que não tem a ver com a sexualidade explícita, mas de sexualidade implícita, e, se calhar, aí sim, mais no território freudiano, entre as mães e os filhos e entre os pais e as filhas. Parece mais ou menos aceite e óbvio, se bem que não falado.

Há uma situação paralela com os sogros de Rogério, em “Autismo”. É uma relação também nada saudável. O marido despreza a mulher. Não acreditas no vínculo entre casal?
Claro que sim! Este casal é que correu muito mal! Aliás, sobre o casal desta história, a minha sensação como escritor que acaba um livro é: “se eles não tivessem tido este filho, se calhar ainda estavam juntos”. Essa é a minha sensação, mas no caso dos pais dela, aquela relação já tinha começado e acabado há muito tempo. O que se mantinha ali era uma coexistência nem sempre pacífica. Um modo de ser casal que não tem que ver com o amor, mas com o hábito; não tem a ver com o gosto, mas com o interesse. Simbolizam, no fundo, uma geração - duas gerações anteriores à nossa- em que as pessoas não se podiam separar porque eram mal vistas, em que as pessoas não podiam fazer uma série de coisas porque havia um peso muito grande de repressão a nível moral, a nível do que era o costume, ou habitual. É como se obrigasses duas pessoas a estar num quarto o resto da vida mesmo sem elas quererem. As coisas mais angustiantes acontecem.
Aqueles 3 - pais mais o filho - acabaram por ser 3 ilhas. Vão se separando…
Sim, porque uma relação familiar triangular com um filho constrói-se com setas bidireccionais entre três polos. Naquele caso, a relação dos pais era mediada pelo filho. Sempre. O filho era o polo à volta do qual tudo gravitava. Obviamente que isto vai fazendo com que a relação deixe de existir. Chega-se a um ponto a partir do qual o superior interesse do filho põe em causa o fundamento da relação do casal, dado exercer uma gravidade que esmaga ou nulifica tudo o resto. Deste modo, um diz "temos de fazer tudo pelo miúdo" e o outro não pode em causa alguma pôr em causa esse credo, sob pena de ser considerado egoísta. Não há saída. Basicamente, é uma questão de culpa moral. Estão ainda num processo em que não se querem dar ao luxo de perder qualquer coisa que possa mudar a vida daquela criança. Nesse sentido, a atenção tem de ser total e não pode haver espaço para mais nada. Qualquer distracção é encarada como culpa pelo próprio que se distrai e culpabilizado pelo outro que percebe a distracção. E claro que uma relação assim não sobrevive.
Rogério tenta socorrer-se através do pai. É a ele a quem recorre. Há alguma avaliação Bem/Mal, por ti, à derradeira postura de Rogério?
Não, não gosto de ver as coisas assim. Se virmos as coisas assim, limitamos a história. Teríamos que reavaliá-lo sob uma perspectiva moral. Acho que as pessoas chegam aos limites e podem fazer coisas de incontável maldade que não fariam noutro contexto. Sob pressão, as coisas podem ser muito violentas. Não quer dizer que as pessoas sejam assim. Há aqueles casos em que caem os aviões e as pessoas ficam duas semanas ou dois meses num sítio qualquer onde um morre e depois os outros começam a comê-lo.
O espaço em que o leitor é “fechado” é no da cabeça do/a personagem. Por que escolhes a acção interior em detrimento da acção diacrónica, a acção exterior?
Penso que com o tempo vou começar a fazer o inverso. É mais fácil explicar o que se está a passar do que montar o cenário para acontecer coisas a partir das quais tu percebas o que se está a passar. O cinema é um bom exemplo. Tu não tens uma câmara na cabeça das pessoas. Tens de construir coisas que explicam o que essas pessoas estão a sentir. A literatura é mais fácil, pois podes ir directamente à cabeça das pessoas. Não precisas de montar nada. Mas eu acho que o mecanismo do cinema é mais avançado porque podes continuar a dizer a mesma coisa, a mostrar a cabeça das pessoas, mas adensas o mistério e deixas mais oportunidades.
Como resolves o assunto na composição das tuas peças de teatro? Dás mais dados cenográficos?
Sou muito minimalista. Não percebo muito de cenografia, nem de direcção. Não me meto muito nessas competências, a não ser que tenha uma imagem muito clara na minha cabeça de qualquer coisa fundamental. Normalmente, não tenho esse tipo de visualização, nem tenho noção da idade, da cor do cabelo. Não me interessa muito.
A Peça de teatro “ A Mala” assenta também mais na psicologia do que no enredo?
“A Mala” é uma peça que não é só teatro; também tem dança. É uma bailarina com quem trabalhei que interpreta. Não é uma dança clássica. Enquanto ela fala vai fazendo vários gestos repetitivos e a própria cadência do texto tem a ver com a cadência do movimento dela. São coisas que se completam.

“A Mala” não é uma peça de teatro clássica. É uma espécie de monólogo em vários registos.
É uma série de discursos à volta do próprio conceito de fazer arte, de fazer arte em palco; é sobre a dificuldade, a frustração e o que é que se tem de fazer para que a arte aconteça.
“Facas” surge depois de “O da Joana”, mas foi escrito muito antes, não foi?
Antes, sim.
“Facas” é o escritor a “fazer a mão”?
Riço Direitinho chamou-lhe isso. Eu acho que vale um bocadinho mais do que isso. No fundo, são coisas que eu gosto de fazer. Gosto de unidades temáticas: “Facas”, “Paternidades Falhadas”, “Gatos”… Nesse sentido, “Facas” é: tenho uma motivação, tenho uma imagem e escrevo à volta disto. Gosto depois dos números: 10 histórias sobre facas; 3 histórias sobre…
Parece organizado; parece orgânico.
Um pai cria expectativas ao ter um filho. Achas que o amor incondicional, seja como pai, mãe, ou como indivíduo, simplesmente, é saber ultrapassar essas expectativas e aceitar uma outra pessoa como ela é sem tentar mudá-la?
Acho que isso não existe. A não ser em santos e em pessoas como uma capacidade talvez até não-humana de aceitação.
O amor incondicional de mãe para filho é para mim uma das poucas realidades nas quais eu continuo a acreditar que são realmente meritórias da maior devoção. É um milagre. É uma coisa tão bela, tão indescritível…

Fotografia de Alfredo Cunha
publicado por oplanetalivro às 15:23

27
Mar 14

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=691361

Estará a crítica literária condenada, actualmente, ao livro e à revista especializada? Em época de banalização da crítica literária, Teresa Cerdeira (n.1949) presenteia o leitor com “A Tela da Dama - Ensaios de literatura” (Editorial Presença).


Num conjunto de ensaios sobre autores como Fernando Pessoa, Herberto Hélder, Saramago, Sophia Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Torga, Mourão-Ferreira, Estêvão Coelho e Hélder Macedo, a autora e professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro dá ao leitor mais avisado instrumentos de descodificação textual importantes para o aprofundamento da leitura.
A sua prosa é clara, subtraída de termos obscuros, sem cair em facilitismos e banalização.
Os dados biográficos dos autores existem em proporção para iluminar aspectos das obras, e a sinopse contextualiza, de forma objectiva
Os ensaios são elucidativos, objectivos e didácticos.
O leitor encontra descodificação do texto literário em detrimento do texto homogeneizado e superficial que substitui, hoje, a crítica literária. É um outro universo.
A capacidade analítica da autora é bem demonstrada - principalmente- em “Os abismos da arte na escrita de Hélder Macedo” ou em “Do labirinto textual ou da escrita como lugar de memória” (sobre Saramago).
As ligações de Macedo com o cinema, a música e a pintura são identificadas e fundamentadas. A dialéctica do autor português com Camões está muito presente tanto na prosa como na poesia.
Já em Saramago, a autora brasileira abordou o “primeiro grande ciclo narrativo” da obra do Nobel Português: - Desde “Levantado do chão” (1980) até “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1994). Neste período, identificou a presença -tal como em Hélder Macedo- da intertextualidade camoniana. Além disso, a mesma intertextualidade é constante com os Evangelhos.
A dialéctica entre Saramago e a tradição é parte essencial da obra do Nobel: “seja para a reverenciar ou a ler na contracorrente da canonização, o texto novo exerce sobre o passado a função regeneradora de o eleger para sair de si próprio e ganhar, deste modo, enquadramentos inesperados.”
Tanto Saramago como Macedo -e esta característica é extensível aos outros autores presentes no livro- têm uma relação de possibilidade com a Literatura. O campo da literatura é o da possibilidade; não é o do dogma.
Após a leitura destes dois ensaios, as obras de Macedo e Saramago poderão ser lidas com outra profundidade.
Teresa Cerdeira diagnostica e analisa as leituras e influências formadoras dos autores estudados no seu livro.
A pergunta é inevitável:
E que leituras ou autores formam a perspectiva de Teresa Cerdeira?
Em “A Tela da Dama” ecoam as vozes de Eco, Barthes, Scholes e Benjamin.
Os conceitos de “Obra Aberta” e de “Textualidade” são denunciados logo em “Brevíssima apresentação”, quando a ensaísta afirma que a sua obra é “produtora de significações que geram opções interpretativas sempre múltiplas e cambiantes.”
Reparemos: “opções”, “múltiplas” e “cambiantes”.
A vivência de cada leitor é transportada para o acto de leitura, originando opções múltiplas e cambiantes.
A Tela “serve de lugar de intersecção de saberes”. É um lugar de contaminações, onde a tradição literária e outras artes confluem num sentido renovado e plural.
A crítica literária tem uma relação de dependência com a literatura. Raramente se emancipa, mas pode- e este é o caso- intensificar a fruição do texto por parte do leitor, pois este entra nos livros dotado de outras “armas”, de forma a descodificar a significância com outro aproveitamento.
Este livro de ensaios, apesar do seu enorme valor intrínseco, é uma chave de leitura, uma porta para outros textos. Não se esgota em si mesmo e merece releitura.
“As leituras fundamentais nunca são anódinas e são elas que constituem a biblioteca pessoal de quem escreve e de quem lê”
Que o leitor se veja como o que é - inteligente -  e “tome para si” crítica literária com esta claridade e substância, numa apropriação mútua de quem no roubo entrega mais do que leva.
publicado por oplanetalivro às 08:17

25
Mar 14

Textos sobre Festival Literário da Madeira :



ATLAS DA ESTUPIDEZ ALHEIA:

ENTREVISTA ADRIANA CALCANHOTO:

ESCRITORES PREMIADOS NO FLM:

O FESTIVAL LITERÁRIO DA MADEIRA:

MUITO MAIS DO QUE LITERATURA:

OS LIVROS SÃO UMA REBELDIA CONTRA A DITADURA DA ACTUALIDADE

"HABITANTE IRREAL", DE PAULO SCOTT

"BIOGRAFIA INVOLUNTÁRIA DOS AMANTES", DE JOÃO TORDO

ENTREVISTA COM JOÃO TORDO





publicado por oplanetalivro às 16:28
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Sal em carne viva

O Festival Literário da Madeira (FLM) foi mais do que Literatura. O FLM foi feito de palavras, sim, mas também de afectos, de trabalho e de alteridade. Principalmente, de alteridade.
Foi com muito agrado que aceitei o convite da Nova Delphi para ir ao encontro das pessoas fora da literatura, fora do teatro, fora do Funchal.
Na companhia dos escritores Valério Romão, Manuel Jorge Marmelo, Tiago Baltasar, Francisco Camacho e do jornalista Luís Caetano, fui ouvir as histórias de alguns dos pescadores. Fomos até Paul do Mar, uma pequena aldeia com cerca de 800 habitantes do concelho da Calheta.
Entrámos num bar. Fotografias de pescadores forravam duas paredes. Havia em todos os olhares a noção da tragédia. Era uma galeria de mortos.
Tínhamos um homem a quem nos dirigir. Era um pescador de uma dessas fotografias. Queríamos as suas histórias. Não as ouvimos. Ele morrera num acidente de pesca. O corpo não foi recuperado. O pai, também pescador, ficou sem o seu filho.
Saímos do bar e fomos à procura do capitão do barco onde havia trabalhado esse pescador. O pudor amarrou-lhe as palavras. Não quis falar. Há medo, respeito e dor, muita dor, dentro das recordações.
Decidimos descer a rua até à doca. Estavam 3 pescadores a montar um aparelho para a pesca do peixe-espada preto. Demonstraram disponibilidade para conversar.

Os pescadores são pessoas viciadas em resistência. Sobrevivem contra as leis do homem e contra a impiedade do mar. Segundo este grupo de 3 homens, um dos males do comércio de peixe é a imposição do preço por quem compra. É o comprador, neste caso a lota, que estipula o preço do peixe, ao contrário do que acontece com outros locais e outros produtos. O pescador não estipula o preço de venda do seu trabalho.

O temporal, as despesas de manutenção com o material e as dívidas acumuladas empurram a vida para a fronteira com o insustentável.
“Se pudesse, transformava o meu barco em barco para passeios turísticos, mas é preciso muito dinheiro...”, ouvi.
A pesca é cada vez mais reduzida. Há necessidade de se afastarem mais da costa, e os peixes são apanhados cada vez mais precocemente, pondo, desta forma, em causa a própria existência das espécies.
Senti-me a observar uma fractura exposta. Afastei-me um pouco e fui visitar os barcos atracados. Estes estão presos por problemas com a rampa por onde descem para o mar. “Está pouco funda”, disse. “Estamos à espera que venham cá tratar disso”
Despedimo-nos e fomos conversar com outro pescador. Era novo, na casa dos 30 anos, e tinha um braço coberto de ligaduras. Ele contou-nos a sua história.
Muitas vezes têm necessidade de saltar do barco para dentro de água para libertar golfinhos, ou desembaraçar a rede. Foi o que ele fez. Já dentro de água, foi atacado por um espadarte que lhe trespassou o braço com o seu maxilar superior, muito conhecido por ter um formato de espada. Um pouco mais ao lado, e o pescador teria sido morto.

 Um espadarte pode atingir cerca de 500 quilos.

“E nós, aqui, só temos palavras para esta gente”, pensei enquanto voltávamos para o Funchal.
A ficção de Moby Dick” e de “O Velho e o Mar” tiveram um grande impacto na minha formação como leitor. Lembrei-me de Melville e de Hemingway quando olhei para o mar vasto.
A Literatura esperava por nós dentro do Teatro Municipal Baltasar Dias.
As palavras dos pescadores de Paul do Mar têm arestas, raspam e cortam. São feridas expostas pela vida passada à caça de sustento no Atlântico.
O mar é fonte de vida, mas também é depositário dos corpos de pais e de filhos. O mar é bênção e berço de ritual tragédia.
De onde vem a subsistência vem também o fim. Os pescadores estão presos nessa dualidade.
Sento-me numa cadeira confortável e escrevo sobre a profunda angústia dos olhos daquela gente que transcende a literatura. Há muita dignidade naquelas mãos vincadas pelas redes, pela água, pelo sal.
Penso eu, sentado numa confortável poltrona.

Mário Rufino
Festival Literário da Madeira, Funchal.
publicado por oplanetalivro às 11:57
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24
Mar 14


Adriana Calcanhoto tem a candura na sua voz. O supérfluo não cabe na sua musicalidade. Ela é feita de poesia. E a poesia é o paraíso da palavra

No Festival Literário da Madeira (FLM), durante o showcase dado pela autora a bordo do Cruzeiro MSC Armonia, o tempo pousou nas escarpas madeirenses, e a água atlântica vibrou com os acordes do violão brasileiro. A primeira música, “Olhos de onda”, dá o nome ao concerto do próximo dia 21 no Centro de Congressos – Casino da Madeira, e, devido às circunstâncias da sua criação, inicia um novo ciclo musical. Tudo começa com uma mão magoada, como explica Adriana Calcanhotto: 

“Eu sou um pouco assim, de limões fazer limonadas. Precisei de operar e de fazer a tournée inteira do 'Micróbio do samba' com o Davi Moraes no meu posto de violonista. Nesse processo todo de terminar a tournée, operar e fazer a fisioterapia passou-se um ano e meio sem que eu tocasse violão. Depois, voltei a tocar devagar, tudo muito leve.Recebi um convite da Culturgest, no aniversário da sala, para fazer a mesma coisa que eu havia feito há 20 anos, que era um show a solo de voz e guitarra, como na primeira vez que eu me apresentei em Lisboa. Eu não tinha um concerto preparado, mas achei óptimo. Isso era uma meta. E nos exercícios já de guitarra eu compus essa música.”
Adriana Calcanhoto tem a candura na sua voz. O supérfluo não cabe na sua musicalidade. Ela é feita de poesia. E a poesia é o paraíso da palavra. Há muito de evangelizador ou de pregador num intérprete musical. Ele espalha a mensagem, mas Adriana não se limita a essa característica.

“A minha ideia é mais a transmissão da língua portuguesa do que de uma mensagem. Não persigo uma mensagem. Gosto de transmitir poetas e poemas. E isso existia na Grécia – a poesia era transmitida através de música- depois isso se deu no sec XII, a partir dos trovadores provençais, e deu-se no Brasil de uma forma única, que é a transmissão de uma poesia de alta qualidade através da música popular.”

A poesia é terra de toda a gente, não sendo detida por ninguém. É território literário, oral ou escrito.

A autora brasileira lançou em 2013, no Brasil, uma antologia de autores brasileiros destinada a um público mais jovem. Numa época dominada pela internet, Adriana Calcanhotto fala em “abrir uma porta para o amor aos livros. A escrita tem muitas coisas, principalmente na língua portuguesa, ( você vê muito através da poesia concreta) em que se ouve de uma maneira, mas lendo ela tem um sentido duplo ou triplo.”

Sobre “Antologia ilustrada da poesia brasileira: para crianças de qualquer idade” (Casa da Palavra), a sua preocupação foi com “a ordem cronológica para sentir as influências de geração em geração, de um poeta no outro, as rupturas e a volta”.

“Eu procurava esse livro. Talvez para dar de presente para as crianças ou aos filhos dos amigos, e eu como criança entrava nas livrarias e procurava uma antologia dos nossos poetas em poesias acessíveis às crianças, não necessariamente escritos para as crianças. Fernando Pessoa dizia 'todo o poema escrito para crianças não deveria ser escrito por adultos'.

Eu sentia falta disso. Nas poucas antologias que eu encontrei, a selecção era feita por assunto. Como a poesia não tem assunto, eu entendi que a ordem cronológica ajudava mais a qualquer pessoa que leia a antologia.

Em relação aos desenhos, os desenhos me relaxam do mundo dos sons, tanto da música como da palavra.”

A autora tem a esperança de que seja possível ensinar estética literária/musical.

“Se eu achar que não, nada do que eu faço tem motivo. Eu vivo para isso. Se uma única pessoa, se uma única criança, for atingida pela literatura através de mim, a minha missão está cumprida.”

Ao ouvi-la cantar em português do Brasil, num navio internacional atracado na Madeira, lembrei-me dos versos de Mário Quintana: “O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar. Quem a encontra salva-se a si mesmo”. E a Adriana procura salvação na poesia que lê? “Diariamente”, respondeu.
publicado por oplanetalivro às 08:29

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