28
Abr 14

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=697237


Harold Bloom apresenta os 100 autores mais criativos da história da Literatura


A Crítica Literária, sendo uma área com regras próprias, é dependente da existência da Literatura. O crítico literário existe por existir um escritor. No entanto, a força da crítica literária pode ser tanta que obrigue o corpus canónico da literatura a abrir para a receber. Poucos autores têm a capacidade de construir um texto cujas características providenciem a sua própria emancipação e existam como Literatura. Refiro-me a Steiner, a Eduardo Lourenço e a Harold Bloom. As respectivas abordagens críticas são, elas mesmas, literatura.

Harold Bloom (n. Nova Iorque, 1930) é um dos mais prestigiados críticos literários da actualidade. Obras como “O Cânone Ocidental” e a “A Angústia da Influência” depressa se transformaram em bibliografia de teses, objecto de estudo e fonte de polémica. Harold Bloom não se limita a diagnosticar e expor. O autor tem capacidade para ser influente e mudar o pensamento. Ele é um elemento da História da Literatura.
Em “Génio - os 100 autores mais criativos da história da literatura” (Temas & Debates/Círculo de Leitores), Harold Bloom continua a delinear o mapa do cânone idealizado, quase 10 anos antes, em “O Cânone Ocidental”. Apesar de afirmar que “claro que não são «os cem mais» no julgamento de ninguém, incluindo o meu. Queria escrever sobre estes”, as afirmações presentes no julgamento sobre diversos autores contrariam esta declaração inicial. Os 26 autores presentes em “Cânone Ocidental” passam a 100 em “Génio”. Mantém-se a mesma metodologia de trabalho. O estudo concentra-se na procura e isolamento das características que tornam os autores em canónicos.
A entrada no corpus canónico acontece através de forças como a Estética, o domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo e saber.
A obra nova é julgada em comparação com os padrões do passado. Há uma ordem preestabelecida e institucionalizada.
A organização do livro demonstra a intertextualidade presente nas análises do crítico norte-americano. Bloom organizou o livro “em forma de mosaico, por acreditar que é fonte de contrastes significativos e inspiradores.”
Na concepção de “Génio”, o crítico norte-americano afirma que “a imagem das Sefirot cabalísticas permaneceu na minha mente. Os meus dez conjuntos levam os nomes mais comuns para as Sefirot (...) Como os cabalistas defendiam que Deus criou o mundo a partir de si mesmo, sendo ele o Ayin (nada), as Sefirot traçam o caminho do processo da criação”. As Sefirot são fases da criatividade. A análise dos 100 autores assenta nesta estrutura e tem, como paradigma, a Cabala e o gnosticismo, pois de acordo com o autor, após ter passado uma vida em meditação sobre o gnosticismo, o gnosticismo é a religião da literatura.
“Génio” está dividido em dez capítulos, cada um com dois Lustros compostos por cinco autores cada um. A composição dos capítulos e Lustros demonstram várias qualidades dentro de uma hierarquia.
O objectivo de “Génio”, é simples: “despertar o génio da apreciação nos meus leitores, se puder”.
Para despertar esse génio de apreciação, foram escolhidos somente escritores já falecidos. Entre autores como Cervantes, Montaigne, Dante, Virgílio, São Paulo, Maomé, Shakespeare (o autor mais amado por Bloom) existem Luís Vaz de Camões (VII Nezah-Lustro 13), Fernando Pessoa (VIII Hod- Lustro 15) e José Maria Eça de Queirós (IX Yesod - Lustro 17). Note-se a necessidade de justificação por parte de Bloom sobre a ausência de Saramago: o autor português estava vivo (o livro foi escrito em 2002). Sintomático da qualidade e importância da Literatura Portuguesa, quando se pensa na densidade demográfica em Portugal.
Apesar de divididos em capítulos, o autor de “Génio” faz questão de sublinhar as muitas e prolíficas dependências entre vários autores.
A interacção entre escritores implica um processo de interpretação gerador de valor estético. Essa “arte de pedir emprestado” existe e obriga a que, na apreensão do significado, se avalie um autor em contraste e comparação com outros.
Esse processo de influência pode deslizar para a já mencionada angústia. É curioso perceber que o próprio Bloom sente o peso dessa influência:
“O meu herói particular entre estes cem é o doutor Samuel Johnson, o deus da crítica literária, mas não tenho coragem de enfrentar o seu julgamento.”
A grande escrita, segundo Bloom, é sempre reescrita que abre as obras antigas aos sofrimentos recentes. A ansiedade da influência elimina os mais fracos, mas motiva aqueles que se inscrevem no cânone.
A obra canónica sobrevive independentemente da época em que foi escrita. Se há necessidade de contextualizar a obra de um autor para confirmar qualidade, então essa obra está ultrapassada. Daí, a avaliação do historicismo ser, por Bloom, negativa. De acordo com o seu pensamento, o historicismo deve existir na sua forma mais minimalista, pois é quase irrelevante.
Harold Bloom é um autor indispensável na crítica literária. Será lido, arrisco a pensar, durante muitos e muitos anos. Talvez tantos como o seu mestre Samuel Johnson.
“Génio - os 100 autores mais criativos da história da literatura” é um livro indispensável para os estudiosos do milagre da linguagem: a Literatura.
publicado por oplanetalivro às 12:43

26
Abr 14

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=696681

João Tordo: «No fundo, escrevo para não estar sozinho»


“Biografia involuntária dos amantes” é o caminho ficcionado e introspectivo de João Tordo em relação ao “outro”, ao ser humano tão próximo, mas desconhecido. Falámos do seu novo livro, editado agora na Alfaguara, no Festival Literário da Madeira (FLM). O local e a ocasião dificilmente poderiam ser mais adequados. O livro e o evento partilharam a mesma essência: a Alteridade.

Tens seis romances que obtiveram muito sucesso. Vários foram finalistas de prémios e um ganhou o Prémio José Saramago. O que te levou a mudar de registo ao sétimo romance?
Eu não mudei muito de registo. Tentei coisas novas, que eu nunca tinha feito antes. Por exemplo: aquela secção intermédia que é fundamental para a história do livro e que é contada no ponto de vista feminino. Nunca tinha tentado fazer uma coisa semelhante porque alguns dos meus romances eram contados na 3ª pessoa, e a maior parte deles eram contados na 1ª pessoa masculina. Foi com aquela voz da Teresa que eu comecei a escrever o livro.
Este romance foi o que mais tempo me levou a escrever. Foi um ano e meio. Fui parando e recomeçando, o que não é um método habitual. Normalmente, sento-me e escrevo os livros de “rajada” porque sei que tenho aquele tempo disponível e porque gosto de não parar até chegar ao fim. Neste, fui intercalando os tempos narrativos. Comecei por escrever a parte que diz respeito à Teresa e que é contada pela voz dela, o que já em si era um desafio, pois não sabia se conseguiria escrever no ponto de vista feminino.
As mudanças são esta [ponto de vista feminino] e a estrutura, que tem mais interrupções, é menos linear, em que partes do livro são telefonemas, cartas, outras são narração. No fundo, são técnicas narrativas que não têm nada a ver umas com as outras. Uma coisa é estares a narrar os acontecimentos no passado na 1ª pessoa, outra é estares a descrever ou, como jornalista, a parafraseares um telefonema.
Acabei por experimentar essas coisas novas neste romance e gostei de o fazer. Gostei de sair da minha zona de conforto, experimentar algo novo, e também centrar o livro numa personagem feminina, o que não tinha acontecido antes.

Que dificuldade é que essa opção te criou, como escritor?
As dificuldades foram as de verosimilhança, de não cair na tentação de escrever na voz feminina como se estivesse a escrever numa voz masculina, mudando apenas os acontecimentos e não a voz. Quando comecei a escrever, demorei três ou quatro dias a arrancar. Não conseguia arrancar bem, voltava para trás, arrancava outra vez. Mas conhecia bem aquela personagem. A personagem Teresa, em torno de quem o livro todo gira, é inspirada notoriamente em duas mulheres que conheço muito bem porque são da minha família. Tive dificuldade em ter de olhar para elas de uma maneira com que nunca tinha olhado: sem o afecto do parente, mas com o olhar mais minucioso e mais escrutinador de uma pessoa que escreve. As dificuldades foram surgindo, mas ao mesmo tempo que surgiam foram sendo eliminadas pela minha crença de que aquela personagem era verdadeira. Isso acontece-me muitas vezes. As dúvidas que eu tenho, enquanto vou escrevendo, vão sendo eliminadas pelo facto de aquela história ser tão verdadeira, ou aquelas personagens daquela história serem tão verdadeiras para mim.

A adopção de uma voz que nada tem a ver contigo é uma forma de alteridade? De compreenderes o “Outro”?
Sim, eu acho que faço uma literatura do “Nós”, como dizia na “mesa” de hoje [“Conversa Cruzada” - Homens que são como lugares mal situados- Festival Literário da Madeira], que é uma coisa que eu tenho pensado nos últimos tempos. São raros os meus livros que dizem respeito ao próprio narrador, embora grande parte deles tenha um pendor autobiográfico, como  “O Ano Sabático”, por exemplo,  que parte de uma história verdadeira.
Só me consigo rever pela identificação. Só consigo relacionar-me com outro ser humano, com os seus sentimentos, emoções, as coisas pela qual essa pessoa passa, se ao mesmo tempo identificar certas coisas que são comuns a todos nós. Se fores a uma sessão de terapia de grupo, aquilo funciona porque as pessoas se identificam umas com as outras. As partilhas nesse grupo só funcionam porque os outros se identificam com sentimentos, com faltas, com ausências, com angústias, etc. Nesse aspecto, eu não sou um escritor nada “umbiguista”. Quero compreender-me, mas quero compreender-me por identificação com o “Outro”. Essa alteridade talvez tenha a ver com o facto de eu quando nasci ter tido um gémeo idêntico que não sobreviveu. No fundo, passei a minha vida toda à procura de uma identificação que desapareceu. Daí essa necessidade de eu escrever sobre o “Outro”.
«Em nada era diferente daquele homem vestido a rigor no comboio, cuja ilusão se propagava indefinidamente, a ilusão de uma ária de Puccini que, na verdade, não passava de um programa de rádio destinado àqueles a quem a vida oferecia frigoríficos, viagens a Benidorm e a morte» (pág. 72)
O narrador criou uma imagem muito afastada da realidade do outro.
Um dos problemas da vida é esse.
É uma história verdadeira. Eu estava no comboio para o Porto e ao meu lado, mas na outra fila,  estava sentado um senhor bem vestido muito compenetrado, de olhos fechados, com um “smartphone”. Achei um gesto bonito o facto de um homem, dos seus sessenta anos, estar assim ali sentado. Às tantas, ele deve ter carregado num botão errado e eu percebi que ele estava a ouvir um relato qualquer de futebol. E eu tinha a certeza de que ele estava a ouvir música clássica, uma ária qualquer. Deu-me vontade de rir. Aquilo só o tornou ainda mais humano aos meus olhos porque eu estava a imaginar uma coisa que ele não era. Estava a imaginar que aquele homem teria uma vida como eu acho que gostaria de ter quando chegar à idade dele. Provavelmente não vou ter. Provavelmente vou ser exactamente igual a ele. Vou estar no comboio a ouvir um relato de um jogo de futebol do Benfica em vez de estar a ouvir uma ária de Puccini.
Isso para explicar o quê? Philip Roth tem uma frase muito engraçada: “O grande problema da vida são os outros”. É nós não compreendermos os outros. E como não compreendemos queremos compreender. Fracassamos sempre, ou quase sempre nesta tentativa de compreender o “Outro”. O “Outro” é fundamental para nos compreendermos a nós próprios, não tenho dúvidas. Mas claro que nos vamos equivocando. Podemos olhar para esses equívocos de duas maneiras: uma é de ficares de certa forma revoltado por os outros não corresponderem às tuas expectativas; outra maneira de olhares para as coisas é a de que as tuas expectativas são sempre irreais. A realidade mostra-nos constantemente que as nossas expectativas saem goradas porque nós tendemos a procurar o absoluto e a perfeição, quando se calhar deveríamos estar muito mais à procura das falhas dos outros que também temos em nós. Isso é algo que eu tento mostrar nas minhas personagens. Acho que elas quando chegam ao final dos romances, ou a certa parte dos livros, começam a perceber que os seus defeitos são aquilo que as une às outras pessoas.

Redenção?
Há redenção, sim. E a redenção passa por tu te aceitares. E claro aceitar o “Outro”, também. Tu não te podes aceitar se não tiveres muita gente que te aceite também. É algo que acho ser fundamental para qualquer tipo de alegria ou de felicidade que tu possas ter nesta vida.

O narrador acaba por aceitar Saldaña Paris. Apesar de todas as transformações pelas quais Saldaña vai passando, o narrador é compreensivo, quando o mais provável seria afastar-se…
O mais provável seria afastar-se, sim, mas repara que há uma certa parte do livro em que ele passa por ser um antagonista, porque ele olha para o Saldaña, em Paris, como um tipo estranho que não se compreende bem. Há uma cena fundamental no livro em que ele passa pela praça à noite, e o Saldaña Paris está a afagar a estátua e ele em vez de parar e dar atenção ao seu amigo prossegue e vai dormir com a colega da filha. E essa cena é fundamental porque significa que ele escolheu o caminho como todos fazemos. A partir desse momento, essa culpa- e a culpa é talvez a impressão mais pesada que nós carregamos. Fomos criados nesta cultura judaico-cristã em que a culpa está presente- é usada como elemento transformador. Se tu alimentares a culpa, estás tramado. Mas se usares a culpa para deixares de alimentar o passado e deixares de recear o futuro e começares a tentar perceber o presente, aí podes ter essa tal redenção de que falámos.

Há uma grande dependência afectiva entre as personagens. Vi a tua “mesa” e ouvi-te falar em liberdade. Qual é a relação entre o vínculo afectivo e a liberdade individual? São antagónicas?
Não são antagónicas. Tenho descoberto que liberdade não é vontade própria. É algo que eu acho que é muitas vezes confundido. Achamos que temos direito às coisas; temos esta vontade própria que nos diz para fazermos determinadas coisas.  A nossa vontade própria, muitas vezes, tende a enganar-nos no sentido em que há os actos por nossa vontade própria e os actos que estamos a usar na nossa liberdade, mas que estamos no fundo a cortar a liberdade a outras pessoas. Para mim a liberdade tem muito mais a ver com solidariedade. Eu sou tanto livre quanto me conseguir identificar com o próximo. Isso sim, é ser livre. A minha vontade própria até agora trouxe-me mais problemas do que soluções. Ao exercer a minha vontade, ao fazer as coisas à minha maneira, ao fazer aquilo que eu quero e ao não considerar aquilo que os outros querem, incorri frequentemente em egoísmos, nesse encerramento no “eu” que é tão contrário ao “nós” que eu procuro nos meus livros. Tem que haver liberdade, necessariamente, mas é uma liberdade que se confunde com solidariedade. É isso que se passa no romance. É um romance que é profundamente solidário com um homem que dá a mão ao outro e que em troco recebe algo que não estava à espera de receber.

E é possível chegares ao "Outro", à essência das pessoas e das coisas, através da ficção?
Não sei se é possível na ficção, mas também duvido que seja possível na realidade. Na vida quotidiana, somos pessoas a viver de um modo fragmentário, pois estamos condicionados por uma série de circunstâncias exteriores.
Na ficção, tu não tens esses condicionamentos, ou seja tu podes relacionar-te com os outros. Mais uma vez, os meus livros são quase autobiográficos. Admiro escritores que escrevem desta maneira, a começar por Henry Miller, Javier Cercas. São escritores que escrevem como se a ficção fosse mais forte que a realidade, ou que fosse mais importante. De facto, em ficção temos o tempo e o material e talvez a sabedoria necessária para compreender aquela personagem como raramente conseguimos compreender uma pessoa. E com isto não estou a tentar substituir personagens por pessoas. De facto, Saldaña Paris existe. Quando o conheci, havia muitas coisas que não compreendia nele e se calhar com este livro compreendo melhor. Ainda que não seja a história dele!

É um instrumento de reflexão?
Sim, é exactamente isso. É espantoso este poder que os livros têm em nos abrir portas e de nos abrir emoções, que são contrárias à razão, porque a razão tem os seus limites; a razão está sempre a tentar justificar as nossas acções. Nós, como seres racionais, estamos sempre a tentar justificar o que fizemos. Mesmo quando fizemos uma coisa errada tentamos achar uma justificação para essa coisa errada que fizemos. Os livros que eu leio e os livros que eu escrevo -mais os que eu leio porque eu leio muito mais livros do que aqueles que escrevo. Gosto muito mais de ler- abrem-me portas que eu não consigo racionalmente abrir. Se eu estivesse fechado, sozinho, a tentar resolver um problema racionalmente, passaria o tempo todo a arranjar desculpas. Os livros abrem portas que eu não sabia que estavam lá. E são portas emocionais; não são portas racionais.
Temos estado a falar da literatura como um meio de chegar aos outros. Pergunto-te se não será, também, um meio de ser reconhecido pelos outros. Leio as seguintes frases do teu livro. Diz o pai de Saldaña Paris: «Afinal de contas, os escritores vivem do ego, ou não é assim? Querem ser lidos e que digam bem deles. Ou que digam mal ou que digam alguma coisa. Não, senhor. Eu nunca andei cá para alimentar vaidades» (págs. 253/254)
O pai de Saldaña Paris é uma espécie de Cassandra; ela está a avisar sobre a destruição de Tróia e ninguém lhe dá atenção. Ele é um personagem cínico e que ergueu muros muito sólidos na sua relação com o filho e com o exterior, mas dentro desse onanismo ele consegue dizer algumas coisas que são verdadeiras.
Nós, como escritores, evidentemente que dependemos do reconhecimento alheio. Se eu não vender livros, se não der entrevistas, se não aparecer, eu continuo a ser escritor, mas deixo de ser uma figura reconhecida publicamente como autor. Escritor serei sempre e já o era antes de publicar livros.
Se me dá prazer que muitas pessoas leiam os meus livros? Dá-me imenso prazer, obviamente.
Quando alguém me escreve, ou quando alguém vem ter comigo e diz que se identificou com isto ou aquilo, e temos uma conversa sobre isso, é o maior prazer que eu posso ter porque significa que não estou sozinho.
No fundo, escrevo para não estar sozinho.

Nas páginas 228/229 fazes a comparação entre Miguel e o namorado da filha, ou seja entre o pós-doutorado em literatura e o mecânico de automóveis, em que o académico inveja quem suja as mãos: «Carlos sujava as mãos todos os dias, e o fruto do seu trabalho era visível no mundo»Na página 260, o pai de Saldaña diz: «para que é que interessa a poesia agora? Vai resolver o nosso problema?»
A Literatura tem alguma utilidade?
É uma velha questão. Isso recorda-me Aristóteles. Detesto citar, mas recordei-me de Aristóteles. No primeiro ano de filosofia, estudámos Aristóteles. Ele escreveu num livro que a filosofia só é possível quando estamos bem alimentados, bem vestidos, confortáveis.
 Um tipo que está num campo de concentração não tem tempo para pensar em Ética. Não tem capacidade física para se preocupar com as coisas com que nós, que estamos alimentados e bem vestidos e temos uma vida “normal”, “perdemos” tempo. Nessa passagem, o que eu quis mostrar foi que a vida de um professor ou de um académico pode ser muito enriquecedora, mas também pode ser uma forma de te afastares da vida, refugiando-te nos livros. Os livros não são a vida. Os livros são uma reflexão posterior que só quando já tens alguma vivência, ou quando passaste por uma série de problemas e inquietações, podem vir em teu auxílio, ou podem dizer-te alguma coisa.

Saldaña cavou o seu fosso por causa de mentiras, ou verdades incompletas, e acabou por sair desse fosso com a ajuda de mentiras, também. 
É moralmente aceitável mentir para salvaguardarmos alguém?
Se é moralmentea aceitável mentir para salvaguardarmos alguém? Sim. Tenho quase a certeza de que sim e tenho quase a certeza de que se eu estivesse na posição do narrador, faria o mesmo. Todo o romance assenta nessa mentira, e essa mentira vem no tal poema do Dylan Thomas sobre a mentira. Ele mente para salvaguardar o amigo, embora eu tenha a sensação de que ele mente para melhor lhe dizer a verdade. O mundo está tão cheio de maldade e de coisas que são incompreensíveis por estarem carregadas de mal! Neste festival [Festival Literário da Madeira] falou-se imenso disso; Auschwitz, por exemplo. Às vezes não podes encarar esse mal de frente. Não creio que o ser humano consiga encarar esse mal de frente, nem o mal que sucede neste livro, através do personagem Franklim, o tio da Teresa.

Por que razão Saldaña deixa e espalha os seus poemas por onde passa?
Isso é uma espécie de “comic relief”. Conheço o Saldaña Paris, o verdadeiro, o poeta; ele escreve de uma maneira muito curiosa e deixa poemas por toda a parte. Escreve nos cafés e esquece-se dos poemas lá. Tem a gaveta cheia de coisas que nunca publicou. Achei engraçado que o personagem também fizesse isso. Achei que era uma maneira de o fazer mais livre. Ele, que é um tipo tão preso aos seus fantasmas, precisava dessa liberdade.
publicado por oplanetalivro às 18:33

22
Abr 14






                                                                          &

SOBRE "A SEGUNDA MORTE DE ANNA KARÉNINA"http://oplanetalivro.blogspot.pt/2014/04/a-segunda-morte-de-anna-karenina-de-ana.html









SOBRE O "O REI DO MONTE BRASIL"http://oplanetalivro.blogspot.pt/2012/11/o-meu-texto-sobre-o-rei-do-monte-brasil.html


PRÉMIO URBANO TAVARES RODRIGUES (Prémio Literário de Novela e Romance Urbano Tavares Rodrigues, iniciativa conjunta da FENPROF e SECRE)
publicado por oplanetalivro às 06:53


«A Segunda Morte de Anna Karénina»: jogo de máscaras


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=660519


Ana Cristina Silva constrói a sua mais recente obra literária, “A Segunda Morte de Anna Karénina” (Oficina do Livro), apoiando-se num clássico enredo de traição e vingança. A interrogação espalha a sua sombra da primeira à última página. Algumas perguntas terão resposta, outras não.

Violante procura reconciliar-se com o passado. Interroga-se sobre o que seria de si caso não tivesse dado o único filho (Rodrigo) para adopção. O ex-marido procura saber se é pai do filho de Violante, ou se o filho é fruto da traição. Rodrigo encontra a sua resposta perante as interrogações apresentadas pela sua identidade sexual. Eduardo, o amante de Rodrigo, recalca os seus desejos sexuais.
Em todos existe um jogo de máscaras. O jogo entre o real e o irreal e entre a verdade e o fingimento deixa o leitor em suspenso. A relação entre Violante (actriz) e Luís Henrique (actor), seu ex-marido, confunde-se com os papéis por eles representados no teatro. O fingimento é parte integrante do casamento. A veracidade das palavras e dos sentimentos é obscura. A separação entre real e representado é problemática. O já mencionado jogo de máscaras mantém-se na ligação entre Rodrigo e Eduardo, além de nas suas relações com as correspondentes famílias. A Literatura assume, em ambos os casais, um papel fundamental na construção da personalidade.
Violante debate-se com a ausência de qualquer instinto maternal, mesmo a dor é, para ela, inacessível. No funeral do seu filho percebe que “ (…) a cerimónia fúnebre não lhe desperta a mínima comoção. A dor, que lhe parecia iminente antes de ali chegar, é na verdade inalcançável” (pág. 10).
O filho Rodrigo faleceu na Batalha de Lalys (09-29 de Abril de 1918), Primeira Guerra Mundial. Durante o combate nas trincheiras escreve diversas cartas ao seu amante, Eduardo. É através da leitura desses textos que o leitor tem oportunidade de observar a evolução emocional de um homem que se debate com as suas tendências sexuais. Rodrigo, a personagem mais bem construída deste romance, conta ao seu amante o percurso que trilhou até à aceitação e pacificação.
A autora consegue, com sucesso, fazer o paralelismo entre a guerra em França e a guerra social. As provações nas trincheiras reduzem o juízo social ao que realmente é: “O meu amor por ti tinha poder para perturbar o modo de vida burguês em que cresci. Também disso tive medo. Aqui, as consequências são, sem dúvida, menores, tiros e obuses podem tirar-me a vida, mas nunca a reputação de homem honrado” (pág. 42)
Mas Eduardo tem uma perspectiva diferente. Para ele, a homossexualidade baseia-se em “vícios de carácter”, ou defeitos no seu espírito.
O desenvolvimento desta tensão entre os dois e dentro deles próprios é muito bem gerido pela autora. A velocidade da narração potencia o drama, sem cair em sentimentalismos, e permite ao leitor entender a complexidade emocional destes dois personagens. A menor eficiência na gestão dessa mesma velocidade, quando acompanha Violante, leva a crer que a autora se sente mais confortável quando adopta o tom confessional na 1ª pessoa narrativa. No entanto, a homogeneidade da narrativa nunca é posta em causa.
De forma similar a outros livros, a autora opta por diferentes perspectivas na construção do romance. O leitor é entregue à visão de uma 3ª entidade, quando acompanha Violante, mas tem a possibilidade de interpretar, através do discurso directo, a comunicação epistolar entre Rodrigo e Eduardo.
A estrutura é mais conservadora neste livro do que no anterior, “O Rei do Monte Brasil”. Há dois fluxos narrativos diferentes, intercalados, em “A Segunda Morte de Anna Karénina”. O drama de Rodrigo é paralelo, mas não independente, ao de Violante, sua mãe.
A sombra de “Anna Karénina” pousa sobre o livro de Ana Cristina Silva. A intertextualidade entre a obra de Tolstoi e a da autora portuguesa é logo declarada no título. As personagens da escritora portuguesa partilham características com Vronski, Lévine, Kitty e Anna: A oposição entre amor carnal e físico, aproveitamento e sacrifício, vida e morte, o comportamento social e o individual.
Ana Cristina Silva- autora de “Cartas Vermelhas” (2011), livro seleccionado como Livro do Ano pelo jornal Expresso e finalista do Prémio Literário Fernando Namora, e de “O Rei do Monte Brasil” (2012), finalista do Prémio SPA/RTP e vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues 2013, tem conquistado, gradualmente, leitores e críticos.
“A Segunda Morte de Anna Karénina”, seu décimo romance, é mais uma etapa na consolidação da sua presença na Literatura Portuguesa.
publicado por oplanetalivro às 06:47

18
Abr 14



ENTREVISTA: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2014/03/entrevista-com-valerio-romao-diario.html

"A noção de paternidades falhadas não tem tanto a ver com a falha no sentido de ser mau pai, ou má mãe, mas sim com uma incompletude na assunção de maternidade ou paternidade."

                                                                     &


CORRENTES D`ESCRITAS: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2014/04/correntes-descritas-primeira-vez-de.html

"Dentro das Correntes, todos os autores são um mundo, mas poucos metem tanto medo como o de Valério Romão." 
                                                                      &


"A sua capacidade literária é perceptível na inteligência e labor com que transforma matéria real em linguagem literária."








publicado por oplanetalivro às 15:27

Correntes d´Escritas: a primeira vez de Valério Romão




O escritor Valério Romão participa pela primeira vez nas Correntes. Hoje vou entrevistá-lo. Preparar a entrevista com o autor de “Autismo” e “O-da-Joana” foi uma experiência dolorosa. Entendê-lo é mergulhar na dor. É mexer no lodo da alma. É ser violado pela angústia.

Valério Romão expôs-se à possibilidade do ridículo; exerceu o seu direito a ser ridículo. Em vez de ser apontado, ele mostrou que a dor, a liberdade, o medo, o egoísmo, a individualidade são matérias comuns a todos nós. Em vez de ser apontado, ele mostrou-nos a raíz da dor.
Valério Romão chegou. Sentou-se à minha frente. Escreve. Não sabe que o observo. Se eu lhe contasse, sentir-se-ia como uma personagem dos seus romances. Eu poderia castigá-lo como ele o faz com as suas criações. Mas o meu hipotético sadismo foi ultrapassado pelo seu masoquismo. Poucos são os autores capazes de mostrar, de forma tão aguda e funda, as profundezas lodosas da sua dor.
A primeira mesa em que participa tem, entre outros valorosos participantes, o pai de Fazal Elahi, Badini, Salim, Isa… Chegou ontem sem guarda-chuva. Afonso Cruz, Valério Romão e Patrícia Portela sentados à mesma mesa de Ivo Machado, Miguel Real e Hélder Macedo.
Faço um cinematográfico “zoom” a Valério Romão. É ele o alvo da minha atenção.
T-shirt estampada, casaco que poderia ter sido roubado a Chris Martin, dos Coldplay, cabelo… desalinhado? cCnfuso? Talvez amotinado. Barba.
O mais interessante está por dentro. Os leitores terão oportunidade de usufruir de uma visita guiada pelos meandros dos universos “valerianos”, brevemente, no Diário Digital.
Em “Palavras + Correntes = X”, Valério Romão olhou ironicamente para a Moral, afirmando “[nas Correntes] Há espaço para tudo, até para a Moral”. Enquanto os outros intervenientes difundiram a sua análise por um largo espectro proporcionado pela falácia da equação, Valério Romão incidiu a sua atenção no que não é quantificável: na vida das pessoas.
É a visão presente nos seus livros. O inquantificável é dominador. Não é o PIB que assusta, é a fome; não é a escala de Richter que assusta, é a terra a tremer.
Parece ser um autor assolado pela culpa, pela penitência e pela ironia com que se analisa e observa os outros.
Dentro das Correntes, todos os autores são um mundo, mas poucos metem tanto medo como o de Valério Romão. 
publicado por oplanetalivro às 15:16

04
Abr 14


Ndalu Almeida, ou seja: Ondjaki. Escritor angolano nascido em 1977. O seu pseudónimo significa “Guerreiro” em Umbundu, uma das línguas mais faladas em Angola.

Licenciado em Sociologia, Ondjaki desde cedo despertou para a Literatura. Os prémios depressa apareceram. Em 2007, recebeu o “Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco” com a obra “Os da minha rua”. Na Etiópia, foi galardoado com o prémio “Grinzane for best african writer”, em 2008. No Brasil, foi vencedor do “Prémio Jabuti”, na categoria juvenil, com o livro “AvóDezanove e o segredo soviético”.
O seu livro “Os Transparentes” ganhou o “Prémio José Saramago”, em 2013.
O Diário Digital entrevistou o autor na Póvoa de Varzim, durante o festival literário “Correntes d`Escritas”. Era cerca de uma da manhã, quando a conversa começou. Ondjaki tinha terminado um debate literário com Miguel Sousa Tavares, Manuel Jorge Marmelo, Rui Zink, Carlos Quiroga e Manuel Silva Ramos. A fila para lhe pedir um autógrafo e uma fotografia era extensa. Quando o autor conseguiu sair, já o auditório estava vazio e a Feira do Livro, adjacente ao auditório, fechada.
O Povo angolano sabe que a Senhora Ideologia [personagem de “Os Transparentes”] morreu?
Não sei se o povo angolano sabe. Não é que eu no meu livro matasse a Senhora Ideologia. O que no meu livro acontece é que finalmente se dá a notícia às pessoas de que a Senhora Ideologia já morreu. Mas realmente, para te responder à pergunta, eu não sei se o povo angolano sabe que a Senhora Ideologia já morreu.
Na minha opinião, em Angola a Ideologia morreu.
E foi substituída por o quê?
Não faço ideia, nem sei se quem a matou tinha a noção do que estava a fazer.
Fiquei com a sensação de que há mais uma violação da terra e da gente do que um esforço de desenvolvimento? É isto que se passa em Angola?
- Não sei se o povo está a ser violado ou violentado, mas o que há ali [“Os Transparentes”] – claro que o livro é uma ficção- é o ponto de vista da minha preocupação pessoal como autor- é uma tentativa de chamada de atenção para que, de facto, não se confunda o modernismo do cimento, ou até o modernismo do dinheiro e do petróleo com o desenvolvimento social. É verdade que um país como o nosso esteve 40 anos em guerra. Evidentemente que há reconstrução de pontes e de estradas, mas para mim seria preciso dar prioridade à reconstrução moral,  cívica, da cultura e da educação. Para mim, é onde o dinheiro devia estar a ser usado prioritariamente.  Onde eu vejo o dinheiro ser usado prioritariamente é no betão e na reconstrução de estradas. Muito bem, mas a reconstrução de uma ponte é ter dinheiro, que o governo angolano tem, chama o chinês e o chinês faz a ponte. Isto até nem precisa de muita planificação: chamar o engenheiro e os trabalhadores e fazem.
A reconstrução... não é bem uma reconstrução, é um reinvestimento na cultura e na educação, que também há, mas eu vejo mais a nível do cimento. Sim, há novas escolas. Sim, há novos postos de saúde. Sim, há novas universidades, mas a prioridade - repito- devia ser dada à qualidade do ensino e não aos prédios onde ensinam. É preciso repensar a qualidade dos professores que temos e do nível de ensino. O mesmo se aplica à cultura. E isto não é visível, porque não é como uma ponte que aparece daqui a 6 meses, mas talvez daqui a 6 anos ou daqui a 60 pudéssemos então- oxalá possamos- ver um país a renascer. Claro que os países se reinventam, e Angola está a renascer e está a reinventar-se. Eu acho é que tem de se pensar que maneira é que todos nós, cidadãos e políticos, queremos que Angola se reinvente. Como é que a queremos? Que Angola queremos nós, cidadãos, para o nosso futuro?
Está tudo a acontecer muito depressa…
Depressa é inevitável! O depressa está em todo o lado. Está em Nova Iorque, está em Joanesburgo e em nós também, mas o depressa tem de ser contrariado, o depressa não existe, o depressa não funciona. O depressa traz defeito. O depressa é perigoso...mas enfim… eu não sou político. É uma mera reflexão pela via da ficção.
A tua literatura é uma arma de combate social?
Eu acho que não, ou seja eu não uso com essa intenção. É óbvio que o livro pode ter várias leituras; é óbvio que “Os Transparentes”, dentro destes livros que eu escrevi, é talvez o livro com uma carga política um bocado mais forte. Existe ali qualquer coisa de inquietação política, mais do que crítica ou outra coisa qualquer. O que eu quero transmitir é inquietação; a minha pessoal, acho que transmito a de algumas pessoas também, é a minha pessoal e assumo-a. O livro está assinado por mim.
Eu só chamo a atenção para coisas que eu gostaria que fossem passíveis de reflexão e de discussão aberta.
Em “Os Transparentes”, Luanda é a personagem principal?
Eu acho que sim. Acaba por ser. Não é a primeira vez. Há um livro chamado “Quantas madrugadas tem a noite” em que o pano de fundo e uma das personagens principais é a cidade. Aqui em “Os Transparentes” é mais evidente. Luanda aparece com os seus tentáculos e esses tentáculos são as pessoas, desde o vendedor de conchas ao ministro; desde a avó, que veio de Huambo e que vive em Luanda enclausurada numa outra língua que não é a dela, até ao menino que transporta baldes de água e lava os carros. Estas pessoas fazem uma certa Luanda. Evidentemente que outros escritores poderão optar por uma outra visão de Luanda.
Angola, tal como Luanda, é um país permanentemente em obras/reconstrução?
Ainda é e ainda será. Lá está! É preciso ver que a reconstrução está a ser feita a vários níveis: do ponto de vista de quem manda, que é o governo, mas do ponto de vista também de quem lá vive e tem o seu próprio conceito de reconstrução. Luanda, especificamente, é uma cidade que vive em função do dinheiro- e onde há dinheiro isso tende a acontecer; onde há menos dinheiro as pessoas vivem menos em função do dinheiro- ali há muito dinheiro e toda a gente gira em torno do dinheiro, seja o dólar seja o kwanza.
Isto é uma coisa que me deixa triste. É Natural? Bom, talvez, mas deixa-me triste; é uma outra Luanda em relação às luandas que já houve e às luandas que eu conheci antes. Havia menos dinheiro, ou pelo menos circulava menos dinheiro.
O ministro tem gelo enquanto a população sofre com a falta de água. É possível escrever sobre a classe média? Ela existe?
Está a aparecer devagar uma classe média. Não é, sociologicamente, a classe média típica, se analisarmos vários indicadores, porque a classe média não se faz só por valores monetários. Eu acho que, neste momento, se eu te falar de uma classe média, eu vou estar a falar exclusivamente no salário das pessoas. Nesse sentido, sim; há uma nova camada que está nos bancos, há uma nova camada que está a ganhar melhor. Isso vai ser a nossa classe média, mas é preciso atenção porque sociologicamente a classe média deveria compreender outros indicadores: aptidões intelectuais, aptidões sociais, acesso a determinado tipo de bens e de direitos. Isso não sei se existe porque está tudo muito ainda em função do dinheiro, tanto a oportunidade quanto o acesso. Isto complica. Não deveria ser só o dinheiro a permitir o acesso a determinado tipo de serviços ou de bens. A água é um exemplo: mesmo quem tem água em casa é porque tem tanques de água e quando a água vem, que não é todos os dias, armazena a água e depois tem água que parece corrente. Mas a água não vem todos os dias para toda a gente em Luanda. No caso de Luanda; já nem falo nas outras províncias. A meu ver, é uma das prioridades. Seria interessante ver um político ou governante dizer “Vocês já viram que já resolvemos o problema da água?” Isto para ele seria um trunfo político; para mim seria uma coisa normalíssima que os políticos estivessem preocupados. Num país com o número de rios que nós temos- há províncias com mais de 3 rios- seria incrível se conseguíssemos finalmente que a população… Eu até digo prioritariamente a água! Mais do que a luz porque a água faz mais falta a toda a gente.
Em “Os Transparentes” procura-se petróleo, mas falta água. A que se deve esta inversão de prioridades?Isto é na ficção. Não há petróleo “onshore”, digo eu… É simbólico, mas essa simbologia estende-se a muitos políticos no mundo que raramente adoptam como suas prioridades  as prioridades de quem conta com eles. É muito raro um político adoptar como prioridade aquilo que realmente faz falta. São outras agendas! Isto é incrível!
Estou a ouvir-te e, tirando alguns aspectos particulares, consigo identificar a Europa.
Claro! Estás a ver a França, estás a ver a Espanha, a Itália e estás a ver Portugal. Claro!
Angola teve uma guerra civil, houve uma “catarse” de sangue. Dá-me a sensação- obviamente que é ficção- de que há uma constante destruição e reconstrução na Luanda de “Os Transparentes”. É necessária uma nova catarse, uma nova forma de niilismo na transformação da sociedade angolana?
Não sei se a palavra é “Necessária”... Não sabemos muito bem o que vai acontecer. O partido que está no poder está no poder há muitos anos, a pessoa que está no poder como Presidente da República, por variadíssimas razões, está no poder há muitos anos. Angola vai ter que lidar com isso. Um dia, Angola vai ter de que repensar isso; vai ter que se perguntar porque ficou tanto tempo o mesmo partido e o mesmo presidente. É impossível que ninguém se pergunte. As pessoas se perguntam, muitas vezes…
A Literatura é a expressão de uma identidade. Parece-me que a literatura angolana já está consolidada…
Sim, mas é feita por um pequeno número de pessoas. Hoje o Ungulani, de Moçambique, estava a me dizer que nos nossos países o número activo de escritores face à dimensão populacional é curto. Angola neste momento deve estar com cerca de 18 a 20 milhões de habitantes.  Vamos admitir que sejam 200 [escritores], oficialmente. É pouco. 200 escritores para 20 milhões é pouco.
Não podemos mandar para a faculdade e desejar que sejam escritores. Não podemos controlar, mas podemos favorecer as condições para que apareçam, não é? As pessoas vivem em condições que não permite sonhar com o ser escritor. Neste momento, a juventude sonha com ser desportista ou cantor. E porquê? Porque são duas coisas que resolvem o problema das pessoas pela via do dinheiro, pela via da fama, pela via do encosto -encosto-me a este, encosto-me àquele. Escritor, algumas pessoas querem ser, pelo prestígio, mas não é uma carreira promissora.
Então não há uma crise de identidade em Angola?
Não, eu acho que não. De um modo de um geral, os angolanos sabem muito bem o que são; alguns estão equivocados, como noutras culturas.
Eu prefiro pôr em questão e prefiro pensar sempre que não é possível falar em identidade angolana enquanto conceito fechado e que é bom que esse conceito seja arejado e que possamos reconstruir todos os anos, todas as décadas. Se há pessoas que estão convencidas que sabem exactamente o que é a identidade angolana...bom...essas pessoas têm o seu caminho a fazer.
Em “Os da minha rua“ usaste muitas memórias de infância?
Sim, sim…
E em “Os Transparentes”?
Quase nada.
Há pessoas que são baseadas em pessoas que conheço.
Essas histórias não são minhas; toda a gente conhece essas histórias. O meu trabalho é agrupar essas histórias e, claro, dar-lhe um traço de escrita, que é meu. Toda a gente em Luanda sabe daquelas histórias. Toda a gente.

Existem características tuas espalhadas pelas personagens, presentes principalmente em Odonato? Lembro-me do idealismo de Odonato e da frase que disseste na entrega do prémio Saramago “Na palavra cantil guardo a utopia, para que durante a vida eu possa não morrer de sede”; lembro-me também de PauloPausado e a sua mania em coleccionar pessoas estranhas e ouvir conversas…
Há coisas nossas que no momento certo precisamos de usar. Não é “agora vou fazer isto baseado em mim”, mas naturalmente uma ou outra coisa deve saltar; um ou outro personagem deverá falar-nos mais ao coração do que outros. Certamente não me identifico, como pessoa, com o ministro. Também não sei se com o Odonato...Eu conheço pessoas assim que acreditaram numa certa esquerda, a dada altura, e que são de esquerda ao contrário de outros que não sabem bem o que é; tanto não sabiam o que eram como ainda hoje não sabem. E tanto lhes faz. Eram hiper-comunistas, hiper-marxistas/leninistas, mas mal o sistema mudou foram se casar na Igreja. Eu não tenho nada contra uma pessoa que se case na igreja!
Não é como a esquerda italiana que tem a esquerda italiana católica. Em Angola, quando tu eras Marxista-Leninista, em princípio, não eras católico, mas até podia ser que se fosse, pois a pessoa estava escondida. Mas aqueles que diziam abertamente que não eram depois vão se casar pela igreja e depois têm 4 Mercedes em casa, no quintal! Esses que se diziam de extrema-esquerda, hiper-colectivistas e Marxistas-Leninistas! 4 Mercedes… acho que alguma coisa aqui não está bem.
Odonato representa um bocadinho isso. Acho que o Odonato às vezes ainda diz isto: “Eu acreditei naquilo que me disseram; que era para todos, que era para dividir”. E de repente vê que não é nada disto. Isto é uma desilusão não só política como humana. Ele está todo destroçado. Ele não come, o filho desapareceu. Coitado! Também dei-lhe uma conjuntura não muito fácil. Ele tinha que ficar transparente, pois já não aguenta. Ele desaparece de si mesmo! É esta transparência.
Ele tem essa pureza, essa ingenuidade...
Sim, sim… eu achei-o excessivamente puro, no aspecto literário. Aquela pessoa não existe. Não pode existir. Na verdade, era eu que precisava dele para contar uma história e pu-lo assim. Acho que ele não existe.
E o filho Ciente? É um personagem simbólico? Não lhe deste esperança nenhuma. Ele não teve saída.
Não, não… Ele já estava condenado à partida. Na realidade, ele ajudou-me imenso para o pai ficar mais desesperado, ir à procura dele. O Odonato é um frustrado, de buscas frustradas, e tem um filho assim. O filho, não. O outro personagem, amigo do filho, que é um ladrão e que se chama ZéMesmo, é muito mais uma brincadeira simbólica do que o Ciente. O Ciente, simplesmente, ajuda o personagem do pai a dizer certas coisas e a fazer certas coisas.
E qual é o simbolismo de ZéMesmo?
Daqui a uns anos as pessoas vão perceber. [risos]
As personagens são adjectivadas com alcunhas que demonstram traços físicos ou de personalidade. Porquê esta manipulação lexical/semântica?
Isso começou com “O Assobiador”, que é um livro já antigo, e achei interessante. Eu queria um livro em minúsculas porque dão uma certa fluidez no discurso e, ao mesmo tempo, uma certa confusão, que é Luanda. Então não me interessava muito estar preocupado com os pontos e os parágrafos, nem me interessava se a pessoa parava de ler, ou onde parava. Era isto. Essa estrutura gráfica era muito mais até para criar nos nomes uma coesão, pois não é preciso estar a separar e faz-me confusão. Gosto muito de ver os nomes todos juntos: HospitalMilitar, RádioNacional. É o fluxo de Luanda que não pára, ou pára com aquelas divisórias de capítulos que são pausas, na realidade.
No cinema [Os Transparentes], as imagens são dadas, mas os sons são feitos pelas pessoas. Qual o significado da parábola do cinema?
Não sei se tem um significado. Era muito mais um sonho. Acho isso muito bonito. Porquê? Porque no teatro, que é uma arte muito mais humana na hora de ver- no cinema está lá uma tela fria, a gente olha e vê- temos tudo ali:
A voz, a respiração, a falha, o suor do actor.
E eu pensei que aquilo era uma maneira de inventar uma interacção que o cinema não tem. Tu tiras o som, ou o JoãoDevagar [tira o som], e dizes: “Não, não, não… Aqui, neste cinema, cada um vai fazer o som”. Apelar às pessoas a participarem nesse filme. Claro que pode ser o filme da vida, o filme da cidade. No meu caso, ele ainda faz uma coisa “pior”; depois põe um filme pornográfico, à noite. Mesmo no filme pornográfico as pessoas é que fazem os sons. Tu podes optar por fazer o som do filme pornográfico, mas também podes optar por outra coisa, ou seja tu interferes no filme, usas a imagem, mas interferes. E esse é o poder de criação de cada um. Nós podemos interferir mesmo naquilo que aparentemente já está destinado para ser assim.
O som parece-me ser muito importante na tua prosa: jazz, o cinema, a situação (pág. 214) em que o carteiro fica “a ouvir a orquestra de sons brandos que o prédio lhe trazia”. O que pensas que a mistura de línguas e dialectos traz à tua literatura? Dedicas especial atenção na construção dessa melodia?Não, à melodia propriamente não diria. Os projectos, às vezes, conseguem dizer-me que ritmo é que terão; ou seja, “O Assobiador”, como é muito mais lírico, muito mais calmo, muito mais delicado, tem um tipo de linguagem. O Madrugadas [Quantas madrugadas tem a noite], que já é de uma Luanda muito mais dura e rústica, tem outro tipo. E isto varia um pouco porque há zonas ligeiramente poéticas e há zonas mais duras. Por exemplo, o livro tem diálogos muito longos, de 4 ou 5 páginas, que é o que os luandeses fazem muito. É obrigatório falar, não podemos estar calados mesmo que não tenhamos nada para dizer. Às vezes as pessoas diziam-me “Este diálogo está um bocado extenso”; eu dizia “Desculpa lá, mas é mesmo assim. Não é para ser uma perfeição literária; isto aqui é para reflectir um bocado sobre o que se está a viver em Luanda”. Tive essa delicadeza- claro que não é fácil - em tentar dizer “Aqui fala-se à toa. Aqui fala-se por falar”, por um lado. Por outro, é uma homenagem às pessoas que estão sempre a criar! O diálogo é o teatro que os luandeses fazem todos os dias! Esse teatro acontece muito por via do diálogo. Tu vês em qualquer conversa que a pessoa tem necessidade de criar a palavra ou a acção. Ele está a contar-te uma coisa que não aconteceu. Parece uma obrigação. Isso eu acho muito interessante!
Uma pessoa chega atrasada e conta-te uma história. Bom, está bem. É para se justificar. Mas é que não é só para se justificar! É porque ela acha mais interessante estar aqui cinco minutos contigo a inventar-te uma história do que simplesmente dizer-te a verdade, mas não é para se desculpar do atraso! É óbvio que chegou atrasada! Não! É porque já agora tem a oportunidade de te contar uma história inventada ou adaptada! Eu acho fantástico que as pessoas tenham a necessidade de teatralizar a própria realidade! O que os psicólogos dizem acerca disso? Podem dizer muita coisa por que o povo está sempre com necessidade aquilo que vive… Acho que isso pode dizer muito, não é? Quer efabular ou não está muito satisfeito com aquilo que vê. Ou os dois.
Esse “contar histórias”, essa oralidade ainda é base da passagem cultural?
Nas cidades, eu não sinto. Evidentemente que há espaços rurais que, felizmente, estão protegidos dessa invasão do ritmo tanto do tempo quanto do dinheiro. Ainda tem comunidades rurais- as chamadas comunidades étnicas- que preservam as suas tradições de maneira interessante: as festas da circuncisão, o modo como é pedido o casamento, o modo como os enterros são feitos, os cânticos para a colheita, os cânticos para apelar à chuva. Isso existe.
Agora vivo no Rio, mas sou de Luanda, e não tenho acesso às histórias ditas tradicionais.
Eu gosto que essas histórias sejam contadas por pessoas que as conhecem bem porque se não cai-se no exotismo literário e eu não tenho paciência nenhuma para isso.
O que achas que se perde ou que se ganha na passagem dessa oralidade para a escrita?
S
ão universos que às vezes se encontram, mas são universos diferentes. Há histórias que foram feitas, e ainda são usadas há milhares de anos, para serem contadas oralmente. O aproveitamento que podemos fazer dessas histórias, dando-lhes um tratamento literário, é outro caminho. Vale a pena? Vale, se o escritor for bom vale a pena, mas é preciso não esquecer que há histórias que fazem e farão parte da tradição oral. Talvez morram porque as comunidades rurais e o espaço rural do mundo está a terminar.
Foste para o Rio de Janeiro há quanto tempo?
Estou lá há 6 anos.
A passagem do interior para o exterior mudou a tua visão?
Deve ter mudado. Há até o efeito da distância, o efeito da saudade, que nos torna mais críticos ou nos torna mais brandos. Eu procuro ficar numa linha divisória entre a procura da clareza da distância sem querer a frieza do desconhecimento, de não estar lá. Não quero essa frieza. Não quero-me armar em que sou o maior crítico agora que não estou lá. É muita delicada a fronteira entre: critico, porque acho que tenho de criticar, mas eu não estou lá então que direito tenho em criticar?
É uma dúvida que me assombra todos os dias.
publicado por oplanetalivro às 14:01

03
Abr 14
Um grande Livro!

http://p3.publico.pt/cultura/livros/11481/quothabitante-irrealquot-de-paulo-scott


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publicado por oplanetalivro às 14:11

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