Soljenítsin e as cicatrizes do totalitarismo
Aleksandr Soljenítsin (1918-2008), escritor russo nascido em Kislovodsk - URSS, ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1970. A sua postura crítica sobre o esmagamento da liberdade individual pelo Estado omnipresente e totalitário implicou a expulsão do autor do país natal e a retirada da respectiva nacionalidade. Viria a regressar a casa, em 1994, após o desmantelamento da URSS. Parte essencial do drama na sua obra é o confronto entre o individual e o social. Em «”A Casa de Matriona” seguido de “Incidente na Estação de Kotchetovka”» (Sextante), o autor russo fragmenta a perspectiva, de forma a expor as suas dúvidas.
Na primeira ficção, «A Casa de Matriona», Ignátitch tem necessidade de sair do centro urbano e entrar num esconso local, longe da amálgama humana. A disformidade da condição individual motiva-o a afastar-se para observar e pensar. Ele precisa de reencontrar-se e reconhecer a essência da sua pátria, uma Rússia profunda, campestre, mas também muito pobre.
«À noite, quando Matriona já dormia e eu estava a trabalhar à mesa, o som da rara e breve corrida dos ratos sob o papel de parede era abafado pelo restolhar uniforme e incessante das baratas para lá da divisória, como o ruído distante do oceano. Esse rumorejar era a vida delas.» (pág. 19)
Uma vez na aldeia, é confrontado com obstáculos inesperados A organização social, hipoteticamente montada a pensar na libertação do indivíduo, é uma máquina burocrática e intolerante. O “Kolkhoz”, propriedade rural colectiva, é uma microssociedade estatal regulada e controlada por um presidente e respectivas forças de policiamento. O que seria uma organização para a libertação do homem, preso pelo capitalismo, transforma-se num grupo de autocontrolo, onde cada elemento é observado pelos restantes habitantes, formando, assim, um mecanismo social de (auto) censura.
Quando em pobreza, a diferença apresenta-se, para Ignátitch, como simples de explicar:
«Ora pois, dantes [os camponeses] roubavam ao senhor, agora tiram a turfa ao Estado» (pág. 124)
A relação da pessoa, individual ou colectiva, com os bens é de avidez e acumulação, seja para subsistência ou riqueza. A perda, tal como é descrito na pág. 60, é considerada vergonhosa e estúpida. Mas Matriona é diferente. A pobre senhoria de Ignátitich sobrevive com dificuldade perante as adversidades climáticas, sociais e individuais. Ela é uma mulher que «tivera seis filhos e que tinham morrido todos, um após o outro, ainda muito pequenos, de tal modo que nunca teve dois vivos ao mesmo tempo». (pág. 36)
A complexidade desta personagem é surpreendente, e será esta complexidade a prender a atenção de Ignátitch. A análise sobre o indivíduo, e a sua problemática relação passiva com o poder, incidirá sobre Matriona, enquanto a análise social será sobre a aldeia. Tudo numa relação de interdependência. Matriona é o contraponto da ambição, pois «não se matava a trabalhar para comprar coisas e depois cuidar delas mais do que da sua vida». (pág. 64)
Já em «Incidente na estação de Kotchetovka» estamos perante a (auto) censura, novamente.
Zótov é um burocrata empenhado, mas com muitas e incomodativas dúvidas perante o avanço do exército alemão, durante a II Guerra Mundial. O colectivo impõe a (auto) censura ao indivíduo.
Zótov repete, para afastar o sentimento de culpa e o medo, versos ouvidos:
«Se a causa de Lenine assim morrer/ para que continuo eu a viver?» (pág. 74)
Ele não fala nem quer pensar. É uma tortura silenciosa. O sentido da sua vida está dependente da sua utilidade na Revolução. No momento crucial desta ficção, o peso do vínculo ao colectivo irá enfrentar a consciência de Zótov.
Tal como em «A Casa de Matriona», a construção da consciência individual e/ou colectiva é a essência deste texto. Interdependentes, elas são também contraditórias.
A excelência de Soljenítsin percebe-se, inclusivamente, na utilização de estratégias de narração demonstrativas da interrogação sobre os limites da ficção e da veracidade.
O estilo indirecto livre tem as características ideais para a simbiose entre o pensamento do autor, do narrador e personagens.
Soljenítsin utiliza a ficção, a realidade e o biografismo como matéria-prima na construção das suas obras literárias. Já o havíamos mencionado, quando escrevemos, no Diário Digital, a crítica literária a «Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch», também da Sextante.
Sobre «A Casa de Matriona», o escritor russo referiu-a como «autobiográfica e autêntica». A autenticidade do episódio contado em «Incidente na Estação de Kotchtovka» é destacada, também. Os acontecimentos narrados aconteceram em 1941 e foram noticiados nos jornais Nóvi Mir e Outubro.
Soljenítsin interroga, mesmo que não seja a sua principal intenção, as fronteiras entre a realidade e a ficção, entre o que é o facto e a respectiva interpretação /recriação. As palavras são a sua pele marcada com as cicatrizes do totalitarismo.
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