«A Casa com Alpendre de Vidro Cego»: O insustentável peso da vergonha
“Ela não sabia ao certo quando se apercebera daquilo: do perigo.” (pág. 5) E assim começam as aventuras e desventuras de Tora. A Trilogia de Tora inicia-se com “A Casa com Alpendre de Vidro Cego” (ARKHEION), da escritora norueguesa Herbjorg Wassmo (1942; Vesteralen, Noruega). A trilogia é continuada com “O Quarto Silencioso” (1983) e finalizada com “Céu Doloroso” (1986).
Apesar de ser a primeira parte desta trilogia, “A Casa com Alpendre de Vidro Cego”, traduzido por João Reis, tem qualidade suficiente para subsistir como criação literária independente dos consequentes livros. Herbjorg Wassmo consegue seduzir o leitor a conhecer o destino de Tora, uma complexa e bem construída personagem literária.
Tora suporta o peso de uma culpa alheia. O medo e o remorso castigam-na e retiram-lhe a possibilidade de ser criança. Ela é obrigada a crescer demasiado depressa. A analogia que a personagem faz com um gato que fora apanhado por um cão é sintomática do que sente: A culpa tinha de ser do gato – porque ninguém era seu dono e tomava conta dele.
Ele incomodava de tal maneira as pessoas que o esfolaram. Incomodava de tal maneira os cães que o arrastaram pela merda. Era assim que era. Fora decidido por alguém há muito tempo. Não havia como escapar” Pág. 75 Filha de mãe norueguesa, Ingrid, e de um soldado alemão, destacado para a Noruega quando a Alemanha ocupava o território, Tora não consegue ultrapassar o ónus da vergonha e a acidez do ódio.
A vergonhosa relação da mãe com o inimigo está sempre presente na memória dos habitantes daquela aldeia do norte da Noruega. Ingrid foi apanhada, sem nunca mais se libertar, pelo julgamento moral da população. Ela vive como uma condenada, desligada de si própria e da sua filha. Sem nunca ter conhecido o pai, Tora é obrigada a suportar um padrasto alcoólico, irascível e constantemente desempregado. A mãe, muito ausente pela necessidade de trabalhar dia e noite, nunca está para impedir os constantes abusos do seu marido, Henrik. Quem deve proteger espalha o medo e a vergonha.
“Se, de repente, ele entrava numa divisão onde ela estava sozinha, Tora sentia-se como se alguém lhe atirasse um pano sujo e peganhento para cima” Pág. 66
Henrik, já destruído pela imoralidade e alcoolismo, e a mãe, que parece destruída pelo tempo, são agentes activo e passivo na destruição de Tora. A decadência individual, tanto no aspecto moral como no físico, está intrinsecamente ligada, como é habitual na literatura nórdica, ao meio envolvente. O clima e a inóspita paisagem têm influência directa no enredo e na caracterização das personagens. O desemprego, nesta aldeia que sobrevive da pesca, é um flagelo social. O indivíduo é cercado pela impossibilidade de uma vida melhor. A pobreza e consequente degradação são dominantes. A sociedade onde Tora cresce é um informal matriarcado.
Apesar de ser uma mulher dominada pela passividade e pela amargura, é Ingrid que sustenta a sua casa. Quando Rakel, tia de Tora, vê o seu calmo e paciente marido sucumbir perante as adversidades, não deixa de assumir as responsabilidades e iniciar a recuperação. É precisamente Rakel que constrói um porto seguro para Tora. Tudo o que a criança sabe sobre o seu pai é contado por Rakel. É em sua casa que a criança se sente segura. Apesar da idealização da figura paternal e das características afáveis de Simon, marido de Rakel, a figura feminina assume-se como pilar familiar e social. A força está na mulher. Tora sente isso, e Rakel sabe que assim é. Só falta Ingrid descobrir.
“A Casa com Alpendre de Vidro Cego” é um exemplo de que o texto literário não tem de ser obscuro nem composto por uma estrutura intrincada. A riqueza do romance de Herbjorg Wassmo está, precisamente, na clareza da sua prosa, na complexidade psicológica das personagens e no realismo do retracto social de uma aldeia pobre moral e estruturalmente. Deste valor literário sobressai a maior conquista da escritora norueguesa: Tora, a resiliente.