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Set 13




Philip Roth, eterno candidato ao Nobel da literatura, é um dos mais importantes escritores norte-americanos da segunda metade do século XX. «Engano», publicado recentemente pela D. Quixote, é uma verdade fingida por Roth…

A narrativa decorre através de várias conversas, ou partes de conversas, em que Philip dialoga com a sua amante sobre diversos assuntos que vão desde o adultério à questão judaica. 
O que, no princípio, serve de fuga ao quotidiano evolui para a normalização e rotina. É um labirinto emocional. A fuga à moralidade não dá, ao contrário do suposto, mais liberdade. Os amantes mantêm-se enclausurados.
A verdadeira liberdade de Philip é exercida na ficção. Como ficcionista, ele movimenta-se numa zona cinzenta. A manipulação dos factos na construção de um outro universo permite-lhe manter-se num limbo entre a verdade e a ficção.
De outra forma, também se pode dizer que existem duas verdades: a da realidade e a do livro.
Essa manipulação acontece desde a estrutura do romance até a nada inocente atribuição do seu próprio nome de autor, Philip (Roth), ao personagem.
O autor desafia o leitor a separar a realidade da ficção ao criar um simulacro de si próprio, Philip Roth, para se poder imaginar a ter um “affair” no livro.
O leitor mais incauto facilmente confunde esse personagem com o autor.
A colagem da ficção à biografia, por parte dos críticos, é alvo de sarcasmo:
«Eu escrevo ficção e dizem-me que é autobiografia, escrevo autobiografia e dizem-me que é ficção, por isso, já que sou tão burro e eles tão espertos, deixá-los a eles decidir o que é ou não é» (pág. 181)
Philip  é um predador de comportamentos, histórias e palavras.
A narrativa, em grande parte construída em discurso directo, concentra a tensão existencial dos seus actores em cenas (maioritariamente) curtas. Numa mise-en-scène minimalista os diálogos são intensos, sem superficialidades, e desconcertantes.
Durante esses diálogos, que antecedem ou sucedem o acto sexual, as próprias personagens ficcionam-se através de role-playing. O fingimento é a base de toda a ficção.
A estrutura do romance é um bom exemplo da plasticidade deste género literário. A fragmentação, a ausência de descrições e a caracterização emocional das personagens entregue (maioritariamente) à acção obrigam o leitor a abandonar a sua passividade. Roth exige que o leitor participe activamente na construção do sentido.
Os capítulos aproximam-se, em alguns casos, da encenação teatral. A própria construção do romance (caderno de notas, por exemplo) é o romance na sua vertente mais visível e interpretável.
Nos últimos capítulos, que iluminam tudo o que foi escrito/interpretado anteriormente, o leitor percebe que também ele próprio foi envolvido numa teia de enganos.
Essa comédia de enganos não acaba na já referida questão biográfica. Roth vai mais longe. Várias personagens criadas em livros anteriores habitam «Engano». Elas aparecem, ainda que fugazmente, para diluir ainda mais a fronteira entre facto e imaginação.
Além disso, o role-playing ganha outra dimensão.
Através do seu simulacro, Roth ensaia um debate entre ele e um júri. A matéria de análise é as facetas mais polémicas da sua obra: a questão judaica e o sexo. O júri existente tanto pode ser a representação dos leitores, dos críticos ou mesmo das mulheres.
À adjectivação de misoginia, por parte de feministas, o autor responde assim:
«O senhor faz parte da massa de homens que vêm infligindo às mulheres grande sofrimento e extrema humilhação... humilhação de que só agora começam a ser libertadas, graças à ação incansável de tribunais como este. Porque é que publicou livros que infligem sofrimento às mulheres? Não pensou que esses livros podiam ser usados contra nós pelos nossos inimigos?
- A única coisa que posso dizer é que essa vossa suposta democracia de igualdade de direitos tem propósitos e objetivos que não são os meus como escritor.» (pág. 109)
A literatura não se rege pelos princípios morais da sociedade.
Novamente, Roth pega na realidade, molda-a como matéria-prima, e cria uma realidade paralela, ficcionada.
Em «Engano», Roth junta aos temas chave da sua obra (a questão judaica, o sexo, a traição) elementos tão importantes como são a confrontação do romance com os seus próprios limites e a dialéctica do escritor com a ficção e realidade.
Mais do que um livro sobre a traição e adultério, «Engano» é um livro sobre o fingimento e a pérfida relação entre realidade e ficção.
«Engano», publicado em 1990 nos EUA, é uma soberba construção literária.

publicado por oplanetalivro às 09:05



http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=653971

“Emigrantes”, de Ferreira de Castro

A literatura não tem obrigação de lutar nem de salvar ninguém. A literatura não tem de estar vinculada a qualquer “ – ismo”. Não tem, mas pode.
Ferreira de Castro (n. Oliveira de Azeméis; 1898-1974), escritor e jornalista, é considerado um dos precursores do neo-realismo. A sua produção literária é declaradamente combativa e “engagé”.
“Emigrantes” marca o início da edição de toda a obra ficcional de Ferreira de Castro, pela Editora Cavalo de Ferro.
A ideologia subjacente à prosa de “Emigrantes” é motivo e assunto na construção do respectivo romance. O autor declara-os no Pórtico (prefácio):
“O problema da emigração não é, porém, um problema-causa, mas consequência de outro mais vasto e mais profundo. Assim, sob a forma do primeiro, o nosso romance pretende dar a essência do segundo”. Pág.10
A ambição e a necessidade motivam o Homem a abandonar a sua zona de conforto para aceder a novas oportunidades. A Migração sempre foi característica intrínseca ao Ser Humano. O abandono de território para procurar novos terrenos de caça era uma constante nos primórdios da nossa existência. A evangelização, o “espalhar a palavra”, implicava, também, a peregrinação para terras desconhecidas. Podemos observar estes aspectos em livros (ou documentos) como “Carta de Pêro Vaz de Caminha” “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, ou “Tratados da Terra e Gente do Brasil“, de Fernão Cardim, entre muitos outros nas ricas e plurais “Literaturas de Expressão Portuguesa”.

O que viria a ser França, Luxemburgo e Suíça, anos mais tarde, era então Brasil e os Estados Unidos da América: terra de oportunidades e abundância.
O Portugal do início do século XX é um país rural, pouco desenvolvido. O analfabetismo impera. Dentro destas condições, as pessoas de baixas habilitações têm a ambição de serem ricas, ou de, pelo menos, não passarem dificuldades. É o caso de Manuel da Bouça, personagem que acompanhamos do princípio ao fim do romance. Ele é um homem movido pela curiosidade, mas não só. A necessidade e a ambição empurram-no para uma aventura com objectivos precisos, mas de consequências imprevisíveis. Ele representa a escassez de escolaridade e posses.
Manuel da Bouça hipoteca, no presente, o que tem em Portugal (courelas) e separa-se da sua família (mulher e filha) para, em terras estrangeiras, entregar-se a uma quimera com o objectivo de alcançar uma vida melhor, no futuro. Não era o único. Uma palavra aparece recorrentemente no texto para caracterizar o fluxo migratório (portugueses, italianos, russos…): “Rebanho”.
 “ (...) lares inteiros que se deslocavam, famintos de pão e de futuro” Pág.79
O escritor, emigrante durante muito tempo no Brasil, faz da sua própria experiência, enquanto empregado em diversos trabalhos precários, matéria literária. As “dores” de Manuel da Bouça são, em parte, as do autor.
Também ele sofreu com a divisão de classes que fechava ao pobre as possibilidades de conquistar uma vida melhor. Talvez por isso, a pobreza seja apresentada de forma romântica e honrada.
“Manuel da Bouça pensou: «O urso trabalha para o dono. É o dono que lhe dá de comer, mas dá-lhe de comer com o resultado do trabalho que o próprio urso faz. Se não tivessem preso o urso, ele podia comer sem precisar do dono. Quando eu trabalho para os outros, eu sou, salvo seja, como o urso. Mas, com certeza, no Brasil e na América, os homens não são como ursos, pois lá eles enriquecem em pouco tempo.” Pág. 40

“Emigrantes” mantém, em 2013, a contemporaneidade e a pertinência temática, apesar da sua primeira publicação ter sido em 1928.
Ferreira de Castro construiu uma obra com uma riqueza lexical pouco vista em autores surgidos no primeiro decénio do século XXI. A prosa de “Emigrantes” é densa; nela abunda a adjectivação, os diminutivos e a metáfora. Os diálogos estão próximos da oralidade. As combinações semânticas deste nível “Como de costume, despenhadas as doze na igreja na matriz…” enriquecem o texto literário.
Quanto a Manuel da Bouça, ele é um homem em trânsito. É o pobre, o último do rebanho.
O autor parece amplificar, com “Emigrantes”, a voz do “Velho do Restelo”, no Canto IV dos “Lusíadas”:
"A que novos desastres determinas/ De levar estes reinos e esta gente?/ Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo dalgum nome preminente?/ Que promessas de reinos, e de minas/ D'ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? que histórias?/ Que triunfos, que palmas, que vitórias?

Mas quem seríamos nós, povo português, se optássemos por não procurar?

Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
.



publicado por oplanetalivro às 08:58

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