http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=649997
“Cidade Aberta” (Quetzal), de Teju Cole (n. Brooklyn, EUA), exerce uma das muitas possibilidades abertas pela literatura: ensinar a fazer perguntas.
O autor, de ascendência nigeriana, esboça um mapa da mente humana, enquanto divaga pelas avenidas e ruas de cidades emblemáticas como Nova Iorque e Bruxelas. A complexidade do relacionamento do ser humano com a sociedade, a que está ou não adaptado, e consigo próprio, numa perspectiva modernista, ou seja plural, inconstante e incoerente, é o leitmotiv de “Cidade Aberta”.
A crescente secundarização da oralidade implica, dentro das grandes cidades, mais isolamento. A voz é imersa pelo ruído. O individuo é motivado a não exprimir o pensamento. O homem fica cada vez fechado em si mesmo. Tal qual o narrador Julius.
A distância em relação ao Outro é enorme, apesar de o Outro estar mesmo ali, junto a Julius.
“Uma mulher morrera ali mesmo, do outro lado da parede à qual eu agora me encostava e eu não tinha sabido de nada. (...) Isto era o pior de tudo. Não reparara na sua ausência como não tinha reparado na alteração – porque deve ter havido uma alteração que se produzira nele [marido].” Pág. 30
A dialéctica entre a Arte (pintura, arquitectura, literatura) e a realidade é constante e essencial.
Escritores como Coetzee, De Man, Walter Benjamin, Tahar Ben Jelloun e Edward Said são citados de forma justificada. “Cidade Aberta” é uma porta para outros livros importantes para o esclarecimento/enriquecimento do leitor. Dentro desta dialéctica, Teju Cole oscila entre o pessimismo e o optimismo.
A capital financeira do Estados Unidos da América e a capital política e burocrática da União europeia são as bases para um livro que é, essencialmente, um mecanismo literário de reflexão. Teju Cole não construiu uma narrativa assente num enredo complexo; aliás, o autor reduziu a história ao mínimo possível. A divagação emocional e intelectual ficou, desta forma, mais liberta das peripécias que surgiriam de um romance de acção. Pouco ou nada se passa, excepto na cabeça de Julius, o médico psiquiatra, também de origem nigeriana, que nos vai narrando as suas inquietações.
Entre Nova Iorque e Bruxelas, Julius (ou Teju Cole?) aborda a clivagem entre o islamismo e o cristianismo, entre a figura de Jesus e a de Maomé, a imigração dos países do Médio Oriente e de África para a Europa e Estados Unidos, A Questão Judaica – essencial, segundo o personagem Farouk, para a compreensão dos problemas de assimilação, adaptação e inserção cultural - a diferença entre etnias, as guerras civis no Haiti e no Uganda. Tudo apresentado num texto coerente, fluido, e de uma invulgar lucidez.
Uma das questões no texto de Teju Cole é a dicotomia entre o pensamento de Martin Luther e King e o de Malcolm X. Se o primeiro defendeu a igualdade entre todos, o segundo reclamou o respeito pela alienável diferença.
A transversalidade do pensamento do autor nascido nos EUA, mas criado na Nigéria até aos 17 anos, permite a análise de várias vertentes do confronto cultural. Cole não se reduz a uma só parte. O leitor tem a possibilidade de “assistir” a um debate entre a cultura que recebe e a cultura recebida; tem a possibilidade, também, de acompanhar as interrogações do autor sobre as várias “tonalidades” do racismo.
Será que nos aproximamos do Outro para nos conhecermos a nós mesmos?
Seremos nós o nosso o nosso objectivo?
Nos EUA e na Europa, podemos facilmente apontar exemplos de dificuldades ou negação de adaptação pelas 2ªs e 3ªs gerações dos imigrantes, já nascidas no país onde vivem e onde fizeram a sua alfabetização. São gerações que não se revêem no seu país de origem e que adoptam uma visão romântica da cultura dos países dos progenitores.
Ultrapassado o período áureo do multiculturalismo, o cidadão é confrontado com a possível falência do projecto. A capacidade de chegar ao Outro, tanto na compreensão como no respeito, é limitada pela genética incompletude do Ser Humano. Chegamos perto, como indivíduos e sociedade, mas não o suficiente. Tentamos perceber o Outro, mas não conseguimos deixar de o julgar.
Terá o 11 de Setembro sido o epitáfio da tolerância nos EUA? Talvez não.
“Aquele sítio [do WTC] era um palimpsesto, como o era toda a cidade, escrita, apagada, reescrita”. Pág. 70
Mariorufino.textos@gmail.com