30
Abr 13


"Last man standing"

Quando tudo se move, não há nada mais perigoso do que a imobilidade.



Todos os dias saio do metro e corro para o comboio, atravesso o túnel de acesso à estação, valido o bilhete e entro numa carruagem. Conheço algumas pessoas que comigo viajam à mesma hora. Ouço as suas histórias, sei onde trabalham, lembro-me do que dizem, mas só de uma ou duas é que consegui memorizar o nome.
Tenho inveja dos passageiros que adormecem no comboio. Não consigo cair naquela inconsciência. As bocas abertas, a cabeça encostada ao vidro, o livro no colo, aberto, mas inacessível…
Temos de correr atrás do tempo. Não podemos parar. A máxima aplica-se: “Tempo é dinheiro”
Aquele dia não era diferente. A porta do metro abriu, comecei a correr devagar, olhei para o relógio pendurado no tecto, eu estava atrasado, corri mais depressa, ultrapassei algumas pessoas, comecei a transpirar, e, de repente, uma anomalia. As pessoas desviavam-se, cambaleavam, houve uma ou duas que caíram, mas depressa o medo do ridículo as levantou
«Mexe-te idiota!!»
e elas continuaram a correr.
Um homem mantinha-se imóvel, de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu sentido.
A inacção interrogava a velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão mecânica. Aquela peça havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas desviaram-se e rejeitaram a anomalia. Não podia ser de outra forma. Tudo nele era falibilidade. E eu, como todos, evitei-o e continuei no meu caminho. A máquina tem de funcionar. As peças que não funcionam como indicado são substituídas por outras.
Os seus dedos roçaram na minha roupa. Tive quase a certeza de que ele esticara o braço, pois tentei passar o mais distante dele.
Voltei para trás, olhei para ele e parei.
Uma rapariga chocou contra mim, interrompendo o seu trajecto predefinido. Surpreendida, olhou para os meus olhos e seguiu a linha que os unia àquele homem. Ele, ela e eu não nos movimentámos mais e, desta forma, contrariámos tudo o que de nós era esperado.
Uma peça avariava outra peça que avariava outra peça…
Os braços puxavam-no para baixo, de mãos abertas. A gravata amarrava-lhe o pescoço e o fato colava-se à pele que transpirava.
Eu não conseguia prever o comportamento, as reacções. Há padrões que são necessários para sabermos o que fazer. Fiquei parado, só isso, e percebi que mais e mais pessoas se juntavam a mim. Os acessos à estação ficaram bloqueados, ninguém passava e cada vez menos pessoas se moviam. O som foi diminuindo e diminuindo até quase desaparecer. O túnel ficou cheio de gente, cheio de silêncio somente rasgado pela chegada e partida do metro. Mas até isso deixou de acontecer. As buzinas dos carros calaram-se, os motores desligaram-se e o trânsito parou. Muitas pessoas ficaram nos passeios e na estrada a olhar umas para as outras. Pararam. Saíram dos cafés e espreitaram pelas janelas para ver. O trânsito foi acumulando e formaram-se enormes caudas metálicas. Os carros ficaram vazios e cada pessoa olhou para a pessoa mais próxima que olhou para outra e para outra até chegar a ele. O som foi caindo devagar até deixar de existir. Vilas e cidades e depois regiões e depois países e continentes suspenderam a acção.
O olhar convergia para aquele homem. Um pequeno perímetro de espaço vazio protegia-o do contacto físico. Somente ele se distinguia na multidão. Então reparei que os seus olhos mexiam-se. O seu olhar observava tudo o que estava à sua frente. Nós éramos observados por aquele indivíduo.
Todos nos olhávamos e sem saber como, a solidão encheu-nos as mãos e o peito. Deixámos de ter pressa e o tempo pareceu ausentar-se. Ficámos sem mais nada para fazer senão pensar… O pensamento libertou-se e começou a criar ligações entre informação e recordações que eu julgava não ter. Havia demasiada luz, queria levar as mãos aos olhos, parar aquela angústia, preencher aquele vazio que se instalou no meu peito. Mas não conseguia. Ouvia a minha respiração, ouvia a respiração da rapariga que estava ao meu lado e reparei na sua agonia, nos olhos cheios de lágrimas e nos lábios comprimidos. Tinha de me mexer. Não aguentava mais aquilo. Tornou-se insuportável, ninguém aguentou.
Um bebé chorou, uma mulher debruçou-se para o corpo do bebé, ouviu-se a voz maternal, outra pessoa olhou, e outra e outra e os corpos começaram a movimentar-se e todos ficaram aliviados quando a mancha humana começou a confluir para a estação. Uma buzina rasgou o ar, o trânsito lento e rezingão desaguou nos diversos destinos e todos voltaram a andar rapidamente. O som de cada voz foi enrolado naquele novelo de sons.
Comecei a correr, também. Fugi daquele espaço, daquele olhar que parecia saber mais de mim do que eu próprio. Não olhei mais para trás. «Se o corpo pára», pensei, «o pensamento emerge».
As autoridades explicaram que tinha sido uma quebra de energia. Algo em rede que tinha afectado todo o mundo. Talvez uma sabotagem que queria parar a movimentação social, os transportes, os serviços…. As imagens foram escassas. Ninguém protestou. Por um instante, cada pessoa viu-se por inteiro e jamais alguém quis falar sobre isso.
Só agora me atrevo a imaginar o que aconteceu.

O homem ficou entregue à sua alienação lúcida.

Mário Rufino


publicado por oplanetalivro às 11:45
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21
Abr 13


António Guerreiro, ex-jornalista do Expresso/Actual, é o mais recente colaborador do Público/Ípsilon.
Na edição de 19 de Abril de 2013, o autor escreve sobre “O que é um escritor?”.

Quando li (e reli) o artigo, surgiram-me várias interrogações:

1 Qual a razão de não haver mais textos com estas características?

Ao analisar a revista LER de Abril, duas edições do Ípsilon de Abril e uma do Actual também de Abril, pude confirmar que há uma forma de apresentação de textos críticos que se mantém na estrutura Biografia-Sinopse- abordagem do texto literário. A última parte, “abordagem do texto literário”, é constantemente subvalorizada, em profundidade analítica, quando comparada com as duas partes que a antecedem. A leitura do livro é, para a construção deste tipo de texto, secundária.
Há uma corrente de pensamento que passa por entregar ao leitor um texto pronto a digerir. Não tenho nada contra isso. Há muita qualidade nos textos de alguns críticos.
O pensamento vigente (avesso a uma abordagem mais académica) implica uma crescente uniformização da abordagem ao texto literário. Acresce a essa formatação da crítica o facto de haver uma grande concentração de artigos em alguns críticos literários. Nestas 3 publicações, podem existir, mensalmente, entre 6 a 10 artigos escritos por um só autor.
O que me leva a interrogar-me, adaptando uma ideia do texto de António Guerreiro, sobre a qualidade literária das críticas quando estas são sujeitas à lógica da profissão e da necessidade de publicação (semanal, quinzenal, mensal).
O (re) surgimento do pensamento menos impressionista e que apela ao “gosto pela dificuldade” depara-se com o monopólio do que é imediatamente consumível.
Há espaço para as duas correntes. Uma não anula a outra. Aliás, polemizar é fulcral para qualquer tese.



2- Que substância tem o artigo de António Guerreiro?

Numa pequena coluna de 1500 (?) ou 2000 (?) caracteres, António Guerreiro levanta algumas questões que, maioritariamente, não são apresentadas neste tipo de publicações:

- (directamente) O que é um escritor?

- O escritor deve contribuir, nessa condição, para os “desígnios da sociedade civil?”
“É claro que o escritor autêntico, que não escreve por medíocres ou inconfessáveis razões, não pode, sem cair na superficialidade, fazer da sua obra uma contribuição para os desígnios da sociedade útil. [Georges Bataille] “

- O escritor deve estar vinculado às expectativas do leitor/mercado? Ou deve encontrar motivação no enriquecimento da Literatura? Estarão as duas vertentes desvinculadas?
“A figura de José Luís Peixoto neste cartaz publicitário deve chamar-nos a atenção para uma transformação da instituição literária, por acção destes escritores que se dirigem prioritariamente a um “público” e respondem fundamentalmente a exigências externas, o que os coloca na dependência da sanção anónima do mercado”
AG

- A morte do autor. A divulgação da imagem do escritor denuncia a menor qualidade do texto literário?
“ (…) esta boa consciência no tráfico da figura pública do escritor faz com que o Peixoto e todos os seus companheiros (ansiosos por se verem também em mupis de rua) nada tenha que ver com o que dantes se chamava “escritor”, para quem a escrita começa quando o Autor entra no seu desaparecimento, na sua própria morte”
AG

- A relação entre “Autor Maior” e “Autor Menor”. A ansiedade da influência.

Não me vou repetir, pois tenho falado sobre estes aspectos ao longo do tempo (poderão ler em oplanetalivro.blogspot.pt *)

Sublinho o mais importante de “O que é um escritor?”
António Guerreiro, num espaço muito curto, fomenta a discussão.
Não é só de José Luís Peixoto que ele fala. Aliás, Peixoto nem é o mais importante na discussão. O que interessa, realmente, são as perguntas semeadas por António Guerreiro.
Ele polemiza.
O Ípsilon tem ainda mais qualidade e pluralidade. O leitor ganha muito com isso.

Mário Rufino
*

A Morte do Autor: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2013/02/ensaio-sobre-morte-do-autor-para-pnet.html
Estética, Literatura e Ensino: http://oplanetalivro.blogspot.pt/2012/10/estetica-literatura-e-ensino.html
publicado por oplanetalivro às 13:32

08
Abr 13

O meu texto sobre "Contracorpo", de Patrícia Reis, para o Diário Digital

http://p3.publico.pt/cultura/livros/7357/o-parto-marca-separacao-entre-mae-e-filho




publicado por oplanetalivro às 17:21

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