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Nov 12

A Literatura não tem qualquer utilidade.
Porque insistem em ler?

1-A leitura é quase uma experiência religiosa. Abrimos o livro e ficamos quase imóveis, entregues ao silêncio, perscrutando a nossa consciência. Há uma voz que nos aborda, uma entidade que nos conta algo que aconteceu. E o leitor entrega-se, com maior ou menor interesse, a essa entidade. Tem um desejo, somente: Anseia que o narrador o faça acreditar no que está a acontecer.

2-No que é que a Literatura é útil? Em nada. Procurar uma função na Literatura é um erro do leitor e não da Literatura, em si. O texto literário não quer mais do que aquilo que tem, não reclama uma função, nem tem intenção de melhorar seja quem for. Ler não serve para se ser uma pessoa melhor, uma pessoa bondosa. Stalin e Hitler eram leitores vorazes. Tinham bibliotecas recheadas de livros. Einstein criou os fundamentos que levaram à Bomba Atómica. Eles leram muito.

3-Nós sabemos de cor muitas coisas. Sabemos de cor muitos episódios da nossa História. Guardamos na memória os momentos de coragem do nosso povo. Está nos livros, fica nos livros, não aprendemos nada com a informação que retemos. Nada.

4- “Cor”- significa, em Latim, Coração. Por extensão de sentido, saber-de-cor, é algo que sabemos e sentimos, algo que vem do coração e sai sem esforço. Em inglês, por exemplo, diz-se “To know by heart” – saber pelo coração.
Coragem- do Latim “Coraticum”, derivado de “Cor”…que significa coração. Poderá ter vindo, também, da palavra francesa “Coeur”.É no coração que, em muitas culturas, habitam a inteligência, a sabedoria, o ânimo, a rectidão. “Ele/Ela tem bom coração”, dizemos muitas vezes. Um dos sinónimos é constância.
  
5- Novamente: Afinal…porque é que lemos? Não sei. Mas posso, se me permitem, aconselhar a procura de outras características na Literatura. Se há algo que a Literatura pode fazer por nós, então é ensinar-nos a fazer perguntas. Quando começarmos, como povo, a fazer perguntas diferentes podemos aceder a respostas diferentes. Procurai perguntas. Provavelmente, começarão a interrogar-se sobre a qualidade de quem nos pede para ter coragem perante tanto sacrifício, de quem nos fala ao coração, quando, afinal, são o antagonismo das características mencionadas. Onde estão a rectidão e a constância de quem nos pede coragem?

MR


publicado por oplanetalivro às 10:38




O Sino da Islândia


Halldór Kiljan Laxness, autor islandês premiado com o Nobel da Literatura em 1955, relata-nos em “O Sino da Islândia” (Íslandsklukkan), editado pela Cavalo de Ferro, a odisseia de Jón Hreggviðsson.

Na Islândia do século XVII, Jón Hreggviðsson é acusado de assassinar o carrasco, ao serviço do Rei da Dinamarca, que tinha a missão de levar um sino, devido ao estanho com que fora construído, para Copenhaga. Esse velho sino é o símbolo da independência da Islândia, país pobre, oprimido, e sob o jugo da coroa dinamarquesa.
“Embora um islandês possa pensar que possuir uma quinta reles seja uma façanha, as propriedades pouco valem no estrangeiro, minha querida filha - disse o juiz. - A pedra preciosa no anel de um conde rico em Copenhaga vale mais do que condado inteiro na Islândia (...) Não somos [islandeses] apenas oprimidos, mas também um povo em risco de extinção” Pág. 76
Os recursos da Islândia são geridos pela Dinamarca, ficando praticamente nada para os habitantes. Forçados a roubar para viver, os islandeses são frequentemente enforcados ou flagelados devido a crime.
Segundo os dinamarqueses, os islandeses não são pessoas; são seres sub-humanos dentro de um território, não considerado como um país, chamado Islândia.
O percurso de Jón Hreggviðsson é marcado pela sua insubmissão às mãos do homem e à austeridade da terra. A sua viagem decorre ao longo de um período extenso e por entre paisagens e culturas de diferentes países. É um homem entregue à sua caprichosa sorte.O seu destino encontra-se subordinado a forças que não domina.  Ele sofre, tal como Ulisses em “Odisseia”, desafiantes aventuras. O seu ânimo é quebrado. O seu corpo sofre castigos e privações. Mas Jón não desiste. 16 anos depois da sua fuga, ele encontra-se com a mulher que o salvou da decapitação pelo crime, pretensamente, por si cometido: Snaefriour Eydalín. E tem um pedido:
“Vim pedir-lhe para lhe dizer [à filha de 15 anos]  que Jón Hreggviðsson foi outrora novo e que teve cabelo preto, e que não sabia o que era o medo; mas que esse tempo passou.” Pág.212
Memória é palavra chave na literatura islandesa e, em particular, na obra de Laxness. A transmissão da história pela oralidade antecede o processo de diferimento da mensagem através da escrita. Além disso, em sociedades - como a islandesa do Século XVII- onde o analfabetismo é predominante, a transmissão de conhecimento através do relato é essencial para a transmissão cultural e para a formação de uma identidade colectiva. É o que acontece com a constante presença de “Canção de Pontus” cantada por Hreggviðsson e as referências às sagas. No entanto, a batalha pela preservação da identidade é transversal a vários estratos sociais e a diferentes níveis de educação. E é neste contexto que surge Arnas Arnaeus.
Arnas Arnaeus tenta preservar, a custo da sua fortuna e do seu próprio bem estar, a cultura islandesa registada em manuscritos que eram utilizados, muitas vezes, para remendar roupas e sapatos. É uma luta contra o tempo e contra a pobreza, tanto material como espiritual.
“Arnas deu tudo o que tinha para reunir livros antigos, para que, mesmo que morramos, o nome da Islândia possa ser salvo” Pág. 76
A sobrevivência física versus a preservação da memória colectiva. O sino da Islândia simboliza a manutenção da história e da cultura islandesa perante a imposição de costumes dinamarqueses e a condenação à pobreza através do esbulho da riqueza da Islândia.

“O Sino da Islândia” está para a literatura islandesa como a “Odisseia” está para a Literatura Mundial.
Jón Hreggviðsson, tal como Ulisses, sofre nas mãos do homem, sofre os caprichos da natureza e das divindades, e demonstra o que é intrínseco a cada ser humano: incoerência.
A hipotética incompatibilidade de sentimentos é acentuada, principalmente, através das atitudes da personagem principal. Jón é infantil, mas também demonstra maturidade para ultrapassar as adversidades; é cruel, mas também cede perante necessidades de outrem; é arrogante ao desafiar forças superiores a ele, mas frequentemente chora e humilha-se para obter o perdão.
É óbvio que há diferenças essenciais no texto de Laxness em relação ao de Homero. No entanto, o relato é, igualmente, a técnica escolhida por Laxness para narrar esta história. O autor optou por uma estrutura clássica de narração, onde o narrador mantém uma distância propícia à análise. Essa distância é contrariada, somente, por pontuais adjectivações que procuram demonstrar a sua incredulidade com a má sorte  do personagem principal.
Dividido em 3 fases distintas, é nos últimos capítulos de cada fase que o romance se consolida. Estes capítulos são fulcrais para a compreensão da história, pois iluminam o ciclo composto por todos os capítulos anteriores. O autor demonstra a sua mestria na construção deste texto literário quando dá condições a que determinada personagem resuma, de forma clara, o que se passou com ela até àquele momento.
A partir do fim da 1ª e 2ª etapas, Laxness tem condições para desenvolver o romance noutras direcções.
A irascibilidade de Jón é a irascibilidade de Ulisses e há diversos episódios que são ecos da obra de Homero. Um episódio sobejamente conhecido é o de Ulisses, vestido como um mendigo, de roupas rasgadas, ser somente reconhecido pelo seu velho cão. Esta acção, com algumas alterações, também se encontra em “O Sino da Islândia”:
“Quando a mulher se aproximou, o cão parou de uivar e abriu várias vezes a boca com um olhar de desespero que só um cão consegue fazer, e depois levantou-se e foi até junto dela. Tinha a barriga colada aos ossos com a fome. Ao aproximar-se, reconheceu-a, apesar das suas roupas, e tentou mostrar-lhe afecto: ela viu que era o cão de Braeoratunga.” Pág. 319

“O Sino da Islândia” é, desta forma, um diálogo com obras canónicas.
Laxness conjuga personagens que poderiam ter sido pintadas por Pieter Bruegel com a atmosfera criada pelas pinturas de William Turner.
A Editora Cavalo de Ferro edita, após “Gente Independente” e “Os Peixes Também Sabem Cantar”, o livro que pode ser considerado a obra-prima de Halldór Laxness. A edição de “O Sino da Islândia”, traduzido meticulosamente por João Reis, é um relevante acontecimento editorial pela sua evidente qualidade literária.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com




Halldór LaxnessHalldór Laxness by Halldór Kiljan Laxness
My rating: 5 of 5 stars

Obra-prima

Texto para o Diário Digital:
http://oplanetalivro.blogspot.pt/2012...

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publicado por oplanetalivro às 10:12

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