29
Out 12

No passado mês de Setembro, publiquei um ebook com vários contos que foram lidos, pela primeira vez, na Letras et cetera. Devido à forte aceitação que tiveram decidi que valia a pena publicá-los no mesmo suporte em que a revista Letras et cetera é publicada.

Todos os textos foram enriquecidos com o talento fotográfico de Marco Rufino.

Tive o enorme prazer de juntar ao livro o prefácio de Sónia Regina, editora da revista.
Deixo-vos o seu belíssimo texto.

Cumprimentos

Mário Rufino

http://nanquin.blogspot.pt/2012/10/prefacio-de-sonia-regina-o-fim-da.html

Prefácio
A imagem invertida da capa nos proporciona outro ponto de vista, não obstante os mesmos elementos. As crianças, ao brincarem de ver o mundo de cabeça para baixo, manipulam a realidade a seu bel prazer: assim dominam os horrores que a cena contiver ou os controlam, alocando-os nos personagens de má índole oferecidos pelas histórias infantis.
O  escritor é um criador não apenas de conceitos e objetos, principalmente de novos esquemas de pensamento. No último conto Mario escreve, em um segundo tempo, as reflexões do personagem:
Espero pela luz da manhã. Sei pedaços de uma história que talvez seja a minha, talvez seja a da menina que me afaga o cabelo todas as manhãs, talvez seja a da senhora que me traz a comida ao quarto. Uma história bonita que se apaga.[Tempo em branco]
O artista tenta decifrar o mundo e sua sensibilidade vai se valer da criatividade e do talento para representá-lo:
Não conseguiu quebrar a forçada ligação que o mantinha agarrado pela vida. Era um movimento que haveria de romper com um estado lastimável para entrar num período de descanso. Ele procurava quebrar a visceral inércia do corpo em tomar nas mãos a decisão de se soltar. O velho estava preso em si mesmo. [Pulseira Electrónica]
A arte concilia a visão adulta com o olhar inocente que contacta a sensação primeira:
Um homem mantinha-se imóvel, de pé, a observar o fluxo de gente que vinha no seu sentido.
A inacção interrogava a velocidade das pessoas que passavam. Era uma questão mecânica. Aquela peça havia deixado de funcionar como previsto. As pessoas desviaram-se e rejeitaram a anomalia. Não podia ser de outra forma. [Last man standing]
O escritor é um artista que trabalha no campo da linguagem, no campo do símbolo. Suas palavras têm significado e referem-se ao sensível. Mobilizando suas experiências e o espírito inventivo, é o sujeito que parte de um conhecimento objetivo e atinge o objeto através da mensagem - embora não explícita – levada ao leitor por suas palavras encadeadas.
Antropomorfizar uma árvore é uma das excelentes estratégias de Mário:
(...) agitando os seus longos braços raivosos, irados por estar presa ao chão (...)correndo atrás de nós, com vontade de nos agarrar entre os seus braços, para nos chicotear por termos, durante tanto tempo, arrancado os frutos à sua carne. [O Fim da Inocência]
Os contos e as resenhas que Mario tem publicado em nossa revista são fruto do trabalho intelectual sobre um conjunto de sensações. Ao permitir ao cérebro trabalhar perceptivamente, entretanto, ele deixa que se manifeste a consciência pura, o puro ver – o olhar da inocência que, para a arte, não finda: Num ramo cabem todas as palavras [As flores], como ele mesmo escreveu.
Parabenizamos Mário Rufino pela bela jornada com a palavra. Gratos por sua presença em Letras et cetera e convite para escrever este prefácio, que tanto nos honrou, desejamos muito sucesso nesta nova fase.

publicado por oplanetalivro às 11:26

23
Out 12

Caro aluno e leitor,
Permite-me, antes de tudo, tratar informalmente o meu amigo. Somos da mesma família e partilhamos as mesmas preocupações.
Hesitei em escrever-te devido à minha incapacidade em ser sucinto. A minha ideia era adaptar a mensagem à forma vigente de comunicação, mas não consegui. Tentei enviar um SMS, mas não deu resultado. "Não leias" pareceu-me muito redutor. Tentei uma mensagem electrónica, mas mesmo assim não fiquei satisfeito. "Não leias. Não percas tempo a ler só por ler. Pratica desporto. Tens mais sorte com as raparigas" pareceu-me melhor, mas insuficiente. Perdoa-me, mas tem de ser por carta.
Aflige-me perceber que estragas o teu tempo a fazer autópsias. A barriga rebela-se e agiganta-se durante o tempo em que estás sentado. Não te admires que ela te tape a visão.
Diz-me..porque perdes tempo a autopsiar um cadáver quando podes saber como foi a sua vida? Não és tu aborrecente? Ou já não passaste tu pela adolescência? Puxa pelo pouco de positivo que tem essa fase e insurge-te. Há direitos adquiridos. Tu não tens de ser torturado.

Ouve o que te vou dizer:
Estuda. Deves estudar Literatura. Não sei muito bem o que é Literatura, mas deixemos isso para depois. Tens de estudar, lamento, mas terás oportunidade de te vingares.
Quando acabares os testes, agradece à professora ou professor o facto de te ter ensinado tanto sobre economia doméstica. E explica-lhe, pois certamente ela/ele não vai entender. De tanto ouvires falar de narrador omnisciente, discurso directo, indirecto ou diabo-a-sete, de fazeres um levantamento do vestuário que as personagens usavam em "Os Maias", por exemplo, de caçares interjeições na "Odisseia" de Homero tu juras por tudo que não vais cometer a ousadia de gastares dinheiro com um livro! Afirma com todas as tuas células que jamais te passará pela cabeça tentares perceber, após aquela tortura medieval, o que é a Literatura. Deus te valha! Que te sirva de lição! Olha bem para a figura dos professores!!!
Certamente fazem parte da elite que começou a ler "Guerra e Paz" antes de provar alimentos sólidos e já sabia ler, escrever e compor poesia antes de andar. Diz-lhes isso e lamenta, do fundo do coração, a sua sorte.
Aprende!
Felizes são aqueles que começam a ver o Patinhas quando são crianças e ainda não sabem ler.
Observa!
Se te disserem que nasceram entre livros, repara bem se não sofrem de asma devido ao pó! É o único efeito que os livros têm naquela idade. Os pais deviam ser denunciados à Segurança Social por deixarem uma criança pequena, desprotegida, pegar em "A Divina Comédia".
Deixa-me dar-te um conselho, dentro dos meus limitados conhecimentos:
Chateia quem pensa que estabelece as regras. Eu sei que já o fazes, mas aprende a fazer melhor. Quando te derem um livro para ler, pergunta "Porquê este e não outro?"; quando te pedirem para dissecares o conteúdo, pergunta "Porquê assim e não assado?» E não fiques por aqui! Espera o contra-ataque. Eles vão ripostar. Convém estares preparado. Vai a uma biblioteca e lê o livro que os professores te disseram para ler e mais uns quantos que pensares serem apropriados. O critério de escolha depende de ti. Escolhe por peso, tamanho ou proximidade. Mas pega neles e lê. Depois, quando te disserem que tal livro pertence ao programa da escola, insiste  «Porquê?». Vão ficar furiosos contigo. Acredita. O meu filho faz-me isto e resulta sempre. Não baixes as defesas! Não te deixes surpreender quando te perguntarem "Então...diz-me lá...o que é que tu lerias?" Na realidade, eles não querem saber o que tu queres ler. E pensam que tu não sabes responder. Sorri e questiona-os sobre o que acham deste ou daquele livro. Olha para a face e repara na mudança de pigmentação na pele. Faz-lhes perguntas... Não sobre o narrador, por amor a Deus!!! "Que tipo de relação é que determinado livro tem com outro livro?" "E o autor? Que influências é que teve?" "Poderá dizer-se que a interpretação do texto é plural ou está consolidada nos manuais?"
Por esta altura mandam-te embora, mas tu já tiveste a tua vingança. Olha...faz isto só no fim do ano lectivo. Por muito que batalhes, vais ter sempre de escrever sobre a omnisciência do narrador desde o primeiro teste até ao último. Vais aprender uma lição muito triste. As pessoas não gostam de que lhes façam perguntas para as quais não sabem as respostas. É como os políticos. Antes de irem para os debates precisam de saber, mais ou menos, quais são as perguntas que estão estabelecidas.

A carta já vai longa. Não prometo que não te volte a escrever. Se precisares de ajuda...

Abraço e força!!!! Tem paciência!

Mário
publicado por oplanetalivro às 15:21


Estética, Literatura e Ensino



Estética, Literatura e Ensino

De uma forma consensual, é reconhecido a Baumgarten (1750) o estabelecimento dos fundamentos de pensar e escrever sobre o estudo que diz respeito à beleza, às artes, ao receptor e ao artista.
Falamos da «Estética» de Baumgarten definida como ciência da cognição sensível, que atribui grande importância aos sentidos como fundamentação dos juízos, considerados, até então, pertencentes ao domínio inferior do conhecimento.
Este autor foi decisivamente influenciado por Wolff, conhecido como o autor do termo «consciência».
No que à literatura diz respeito, a mesma não se deixa aprisionar numa definição. Como podemos definir algo que se baseia em conceitos como beleza, estranhamento, originalidade? Não podemos; e vislumbramos a literatura como um conceito mutável e infiel ao tempo.
Apesar da tentativa de apreendê-la num conjunto de obras ou autores denominados de cânone, a verdade é que a literatura não se limita a esse conjunto. Deixa, isso sim, ser representada pelos mesmos para, algum tempo depois, aparecer representada noutras formas de diferente beleza mas continuamente estranha e original.
A palavra literatura deriva do latim, de littera,ae, e significa o ensino das primeiras letras. Ao longo do tempo, modificou-se o sentido para arte das belas letras, ou arte literária.
Levanta-se imediatamente alguns problemas: “arte”; “belas” (que não poderemos discutir aqui) e a percepção imediata da subordinação da literatura à letra, subestimando a chamada (agora) literatura oral (o som não veio antes do símbolo?). Falamos de literatura, principalmente, quando nos referimos a documentos escritos ou impressos. Pensemos que se Pessanha continuasse a ler os seus poemas sem os escrever não poderíamos considerar Clepsidra como uma obra marcante da literatura portuguesa.
Quando falamos em obra literária pensamos em objecto palpável e não numa sequência sonora. É curioso pensar que a poesia só se completa quando lida em voz alta...
A civilização toma consciência de si própria através da escrita projectando a mensagem através do diferimento da leitura da mesma.
Para Massaud Moisés, por exemplo, a ideia de uma literatura oral, popular, é simplesmente folclore e só tem status literário quando é escrita. (A hierarquização, a competitividade é uma constante na criação literária e na análise literária como iremos ver neste ensaio.)
No entanto, Alfonso Reyes não partilha da mesma opinião, pois, em rigor, a literatura é oral por essência devido à anterioridade do som ao carácter gráfico. O adiamento da apreensão do sentido acontece por limitações de memória e de transmissão às novas gerações. Tentamos enganar o tempo. É uma fatalidade histórica.
Hoje temos, obviamente, novos recursos que nos permitem arquivar informação com clara influência na ampliação do conceito de texto. No entanto, nem todo o texto escrito é classificado como literário. Apesar de todo o texto se destinar à leitura, não se categoriza todo o texto como literário. E confrontamo-nos com a questão: o que é literatura?
Por mais esforços que façamos o problema não se resolve porque falamos em conceito e não em definição de literatura.
O conceito de algo caracteriza-o como acidental ou particular e decorre de impressões subjectivas. Quando falamos em beleza notamos a incapacidade de tornar o conceito em definição, ou seja, de reunir características que sejam universalmente aceites.
Alfonso Reyes afirmou que, das três formas principais de actividade produtiva do espírito, a filosofia ocupa-se do ser, a história e a ciência do suceder real e a literatura do suceder imaginário, composto por elementos reais mas construído num outro plano de existência.
Uma situação é certa e real: a linguagem não se limita a ser um meio de comunicação.
Literatura implica vontade de ser diferente, vontade de se estar noutro lugar.
A diferença entre a linguagem literária e a comum reside no cultivo deliberado, por parte da primeira, da forma que organiza, aperfeiçoa com um propósito artístico.
Não aprofundaremos este assunto porque é demasiado vasto e não é o leit-motiv deste ensaio. É um assunto não para um simples ensaio mas para uma (ou várias) tese de doutoramento (provavelmente condenadas ao fracasso se o objectivo for conseguir definir a literatura).

A literatura ensina-se?

Consegue-se ensinar algo que não conseguimos definir?
Da mesma forma que o Amor e a Fé, a Literatura pode ser conhecida de forma parcial mas, na sua essência, não se aprende, frui-se; é individual e intransmissível.
É possível conhecer o que é, por exemplo, um género literário, o que a História Literária diz acerca disso, quais são as circunstâncias socioculturais das produções literárias. Esta aprendizagem é possível e ajuda a contextualizar a parte principal, aquela que pertence ao foro íntimo e que não é possível descrever de forma sistemática.
Quando abordamos o ensino da Estética é difícil sabermos o que ensinar. Deixamos de falar da história e da teoria que se aprende como qualquer outra disciplina.
O contacto com uma obra de arte é um processo intuitivo de desenvolvimento pessoal e de personalidade.
Para José Gil (1999) as fases de percepção artística, e inerente natureza, são as seguintes:
- Começa-se por olhar um objecto considerado uma obra de arte e tem-se uma percepção trivial. Depois do olhar ultrapassar as formas triviais vê-se estruturas e materiais diferentes que não são imediatamente visíveis.
Algo se desloca no quadro que faz com que o olhar descubra outras relações. O olhar passa das formas triviais (uma casa ou uma natureza morta) para as relações de textura, de espaço.
Ainda não é o espaço da forma estética.
“ De certo modo, estas estruturas espaciais que descubro estão separadas das formas triviais, aparecem por contraste e, ao mesmo tempo, por aderência. Vão aderindo, por que são estruturas espaciais dessas formas triviais”
Numa fase distinta, obtém-se a percepção estética, a que José Gil chama de percepção de forças. Quando se diz que um quadro é triste e melancólico estamos a caracterizar um conjunto de forças que dão uma linha, uma forma de todas elas.
“ A percepção estética final é a percepção da forma de uma força”
As forças aparecem devido a uma deslocação da relação entre as formas triviais e espaços encobertos, abrindo uma ruptura na percepção do quadro.
Através da entrada no quadro e consequente viagem no mesmo, o espectador estabelece uma conexão ou comunicação indispensável para a percepção estética.
Em relação à interpretação, o espectador caminha pelo percurso imaginativo do artista. Ao imaginar-se percorrendo o quadro existe um movimento de qualquer coisa que não é um corpo próprio dentro de um espaço topológico; José Gil denomina esta situação de ponto-corpo ou ponto-material.
“Toco (se for um quadro com características hápticas) com o olhar, como se fosse o meu dedo a sentir a rugosidade ou o liso da textura.
Há como que uma pele que ali se passeia, mas que não é de um corpo. É também um ponto abstracto, porque posso entrar num abstracto. É um ponto-corpo, porque é um ponto que é um corpo e que pode deixar de o ser, pode aderir a uma superfície, a uma cor, pode reduzir-se, pode quebrar-se em mil fragmentos. Segue o movimento da imaginação, que é o movimento dessas forças que vimos aparecerem debaixo das estruturas triviais, nas frinchas entre as formas triviais e os espaços”
A imaginação molda e transforma o corpo. É o espectador que completa o quadro. (O pensamento de Merleau-Ponty em “O olho e o espírito” é uma excelente leitura sobre esta matéria.)

Abraham Maslow insistiu na criação de um modelo educativo que assentasse na educação estética pois, actualmente, o ensino resume-se a um conteúdo profissional. O objectivo seria a auto-realização dos alunos e o seu desenvolvimento pessoal.
O problema é saber em que consiste a arte e a estética daí imanente...
A literatura como objecto estético não é ensinável.
O que pode ser transmissível são as características particulares, os cenários históricos específicos. Esta base factual que serve para os exames e análises qualitativas/quantitativas da sabedoria.
Este ensino de tipo institucional, abrangendo matéria e modo de ensinar, obedece sempre a opções políticas determinadas. As obras/autores ensinadas/os inserem-se numa política de senso comum com origem em grupos ou classes que defendem os seus interesses. É aquilo a que chamamos de “sistema” quando não conhecemos a face ou o nome de quem promove o caminho denominado de normal.
Qualquer tipo de educação é uma prática profissional que tem o objectivo de fornecer às pessoas determinadas vertentes da experiência social que são partilhadas no interior de dada sociedade. Exemplos desta situação são o conhecimento do universo, normas sociais, crenças, ideologias, aptidões e práticas do quotidiano, etc.
O processo de socialização passa pela apropriação e assimilação desta experiência pelos indivíduos. O sistema de ensino é um pilar fundamental da sustentabilidade deste processo.

Não se ensina literatura da mesma forma que não se ensina a amar, a ter fé, a ser bom (bondade); pode-se influenciar através do nosso sentimento, do nosso entusiasmo, como professores, e de uma imersão cultural que valorize a leitura. O que se pode ensinar é a atitude dialógica com a arte, a capacidade de ver além do mundo significativo e, também, de nos relacionarmos pessoalmente com este mundo com total abertura e enriquecimento com os significados descobertos.
O principal é a transmissão do usufruto pessoal, da estranheza, do incómodo que determinado texto, determinado autor nos causa. Apesar de, como Ricoeur afirmou, a transmissão exacta do que eu sinto seja impossível; na recepção da mensagem ela é adaptada a quem sente.

Mário Rufino
08/2006

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Bibliografia

! AMARAL, Fernando Pinto do (1999) “O Sentido e as Cambiantes”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 233-237
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! BARTHES, Roland (1988) O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70,
! BRITO, Joaquim Pais de (1999) “Os Objectos Imaginários”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 133-139
! CASIMIRO, Mário (1999) “Imaginar a Prova”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 129-132
! CASTORIADIS, Cornelius (1999) “Imaginário e Imaginação na Encruzilhada”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 85-106
! CENTENO, Yvette (1999) “Imagem e Símbolo na Obra Literária”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 119-120
! COMETTI, Jean-Pierre (1999) “A Imaginação sem o Poder- pragmatismo e imaginário social”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 29-48
! GIL, José (1999) “Imaginar a Imaginação”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 53-66
! HELENO, José Manuel (1999) “Castoriadis: A Libertação da Imaginação”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 107-111
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! LOURENÇO, Eduardo (1999) “A Europa e a Questão do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 13-24
! MARQUES, José-Alberto (1999) “Os Deuses ao Espelho”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 79-84
! MARTINHO, Ana Maria Mão-De-Ferro (2001) Cânones Literários e Educação- os casos angolano e moçambicano, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
! MERLEAU-PONTY (2000) O Olho e o Espírito, Lisboa, Vega
! ORTEGA Y GASSET, José (1987) Meditaciones sobre la Literatura y el Arte-la manera española de ver las cosas, Madrid, Clásicos Castalia
! ORTEGA Y GASSET, José (1998) El Espectador, Madrid, Biblioteca Edaf
! PEREIRA, Miguel Serras (1998) Da Língua de Ninguém À Praça da Palavra, Lisboa, Fim de Século,
! PEREIRA, Miguel Serras (1999) Poema em Branco, Lisboa, Fim de Século
! PEREIRA, Miguel Serras (1999) “Átrio”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 9-10
! PEREIRA,Miguel Serras (1999) Exercícios de Cidadania, Lisboa, Fim de Século
! REIS, António (1999) “História: A Memória do Imaginário”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 121-125
! RICOEUR, Paul (1996) Teoria da Interpretação, Lisboa, Edições 70
! SCHOLES, Robert (1991) Protocolos de Leitura, Lisboa, Edições 70
! STEINER, George (2002) Depois de Babel -aspectos da linguagem e comunicação, Lisboa, Relógio d` água
! TAMEN, Pedro (1999) “Um Copo é um Copo é um Copo”, in Do Mundo da Imaginação À Imaginação do Mundo, Lisboa, Fim de Século, pp. 229-231
! TITIEV, Mischa (1991) Introdução à Antropologia Cultural, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
! TODOROV, Tzvetan (1993) Poética, Lisboa, Teorema
publicado por oplanetalivro às 08:26

17
Out 12


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=593433

“Um dia na vida de Ivan Deníssovitch”, de Aleksandr Soljenítsin,  é uma obra que continua a gerar expectativas entre os leitores. Essas expectativas indicam que o texto continua a ser procurado e lido, justificando, desta forma, o aparecimento de novas edições.
É sobre este princípio que a a editora Sextante, do grupo Porto Editora, decidiu lançar uma nova tradução desta obra. É a primeira tradução directamente do Russo para Português.
Reservando um lugar na história para si mesmo ao expor, pela primeira vez, as condições de existência dentro dos campos de trabalhos forçados, Soljenítsin viu “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” ser utilizado como símbolo da abertura política de Krutchev em suposta antagonia para com a política até ali implementada por Estaline. No entanto, a importância do livro não se resume à ruptura com o cânone temático imposto pela ditadura estalinista. Os livros mais conceituados do autor russo continuam a apresentar uma problemática interessante mesmo que subtraída da carga política. Se se considerar que a veracidade do facto reside e acaba no mesmo facto e que a observação já pertence ao domínio da interpretação, o leitor fica perante um dilema ao ler na nota final do autor  “Todas as outras personagens são reais, recolhidas da vida no campo, e as suas biografias são autênticas”. Assim sendo, onde está a fronteira entre a ficção e a realidade?
Esta problemática não está somente presente em “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch”.
É inquietante quando Soljenítsin afirma, nas primeiras páginas de “O Arquipélago de Gulag”, uma das suas obras mais polémicas, que “ No presente livro não há personagens imaginárias, nem acontecimentos imaginários”  mais afirmando, ao referir-se aos factos, “Mas tudo se passou realmente assim”.
O biografismo de Soljenítsin presente em “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” credibiliza a narrativa como criação geneticamente ligada à realidade. No entanto, a dialéctica entre ficção e a realidade não é excluviva do autor e depende da activação do sentido por parte de uma entidade: o leitor.
A recepção do texto por parte do leitor é mais ou menos profunda conforme o conhecimento que tem sobre a época em que decorre a narrativa.
“Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” remete para dois momentos importantes e distintos: o contexto histórico em que  foi escrito (campos de concentração, onde o escritor esteve preso durante o regime estalinista); os contextos históricos em que é publicado. A interpretação do leitor contemporâneo é necessariamente diferente da do leitor na ocasião da primeira edição (1962). Ambas as interpretações estão separadas por uma distância cronológica que permite a abordagem ao texto com condições emocionais distintas.
O livro só se enriquece com tal facto. As interpretações pluralizam-se; não se substituem.
Ao longo desta obra, o leitor tem a possibilidade de acompanhar Chúkov, durante um dia, dentro de um campo de concentração. A narração, através do dirscurso indirecto livre, permite ao autor aproximar e afastar-se dos acontecimentos e formar uma simbiose entre o seu pensamento e os pensamentos e emoções das personagens. Ao mencionar o biografismo e ao optar por esta estratégia narrativa, o autor coloca o leitor muito próximo do que é descrito e consegue credibilizar o que é narrado. Numa primeira leitura, a possivel divergênca entre a verdade histórica e a ficção esbate-se. O interesse concentra-se na aceitação, por parte de quem lê, de uma só verdade: a que pertence ao texto.
No caso de um texto escrito numa língua estrangeira, existe um intermediário, na construção do sentido, entre o escritor e o leitor:
O tradutor.
A mediação efectuada pelo tradutor tem uma influência vital na recepção do texto.
A tradução directamente do russo para o português, por António Pescada, apresenta-nos diferenças muito relevantes em relação à tradução feita por H. Silva Letra para a Europa-América, em 1972..
António Pescada imprime na sua tradução substanciais diferenças sintácticas, semânticas e lexicais. Estamos perante o mesmo texto de Soljenítisin, mas somos confrontados com uma tradução bem diferente daquela que foi feita por H. Silva Letra.
Analise-se as seguintes frases a título de exemplo:
Tradução de António Pescada para a Porto Editora
“Lá dentro pairava um nevoeiro como na sauna – o frio que entrava pela porta e o vapor da sopa. As brigadas estavam sentadas às mesas ou acotovelavam-se à espera de que vagassem lugares. Gritando uns para os outros no meio daquele aperto, dois ou três trabalhadores de cada brigada transportavam tabuleiros de madeira com as tigelas de sopa e de papas e procuravam espaços nas mesas onde os colocar.” Pág. 16
Tradução de H. Silva Letra para a Europa América
A atmosfera estava tão espessa como a de um balneário. Uma corrente de ar gelado introduziu-se através da porta e chocou com o vapor que se evolava da sopa aguada. Os componentes dos grupos estavam sentados ou esperavam no intervalo entre estas. Gritando uns para os outros por entre a multidão comprimida, dois ou três homens de cada grupo transportavam tigelas de sopa e kasha em tabuleiros de madeira e tentavam encontrar espaço para os pousar na mesa”
Pág 21
A descodificação do sentido (semântica), da ordem (sintaxe) e da matéria (léxico) é executada com diferenças relevantes pelos dois tradutores.
Assim sendo, a edição desta obra de Aleksandr Soljenítsin pela Sextante ganha uma enorme relevância.
A “ Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” seguir-se-á a publicação, também pela Sextante, de “A casa de Matriona” e “Zacarias Escarcela e outros contos”. Seria muito interessante que as edições das obras deste autor russo abrangessem, mais tarde, “O Pavilhão dos Cancerosos” e “Arquipélago de Gulag”
Mário Rufino

publicado por oplanetalivro às 17:08

14
Out 12

Constipação, Portagem, Bertrand de Almada Fórum

Não me ocorre nenhuma profissão mais repetitiva do que a de portageiro.
Estica o braço, recebe, digita, entrega. Isto durante um dia de trabalho. Depois vai a casa para voltar, no dia seguinte, com a certeza de que vai repetir tudo outra vez.
Quem está na viatura mal olha para o rosto de quem está a trabalhar. Quem está a trabalhar é obrigado a ver, essencialmente, a sujidade no tejadilho do carro.
A única incógnita é o meio de pagamento. E duvido que seja visto com grande entusiasmo: “será que vai pagar com cartão? Com moedas? Com notas? E se não tenho troco? Grande aventura…”Duvido muito… Mas até esta incógnita está em vias de ser solucionada.

Os pagamentos automáticos estão, lentamente, a relegar a quase inexistente personalização do atendimento para uma exótica memória pertencente à história.
Vivendo na margem sul, é quase obrigatório que eu tenha de passar pela Ponte 25 de Abril quando quero ir para Lisboa.
Hoje, saí de casa com destino ao hospital do SAMS nos Olivais.
Quando cheguei às portagens, tinha duas viaturas à minha frente. Preparei o pagamento. Olhei para o caixote, que não é outra coisa senão um caixote, e vi que estava lá dentro o único funcionário que reconheço de outras passagens.
Na primeira vez que o vi, há meses, pensei “Este gajo é esquisito”.
Antes de lhe entregar o cartão para pagar, brindou-me com um “BOM-DIAAAAAAAAAAA” que me obrigou a responder. Ainda estava a restabelecer-me de tamanha simpatia já ele se despedia de mim com uma “BOA-VIAGEMMMMM”.
Vi-o uma e outra vez e o comportamento manteve-se.
“ Mas este gajo diz isto a toda a gente? Não se farta?” Durante muito tempo continuou a ser esquisito.
Hoje, só queria chegar depressa ao hospital, mas confesso que me animou bastante aquele “BOM-DIAAAAAAAAAAA” e a “BOA-VIAGEMMMMMMMM”.
Sabemos que as constipações são muito mais fortes nos homens do que nas mulheres, a julgar pelas lendárias queixas masculinas. 
Paguei e ainda me ri.
Fui ao hospital, vim para casa, meti-me na cama.
Tinha uma mensagem no telemóvel: Bertrand Fórum Almada.
Um livro que foi por mim pedido há dois meses…talvez três meses… está na loja para ser levantado.

A funcionária a quem pedi e de quem recordo o primeiro nome (Rita) não desistiu e de tanto procurar… encontrou.
Eu não consegui. E tentei!
Numa época em que as livrarias on-line competem, de forma agressiva, com as livrarias tradicionais, estas têm poucas vantagens sobre a comodidade que é a de receber um livro em casa após meia-dúzia de cliques.
As tarefas estão cada vez mais repetitivas e os funcionários são vistos como meros executantes. Mas há casos em que o indivíduo consegue mais do que executar uma função; o indivíduo consegue personalizar a tarefa através da sua persistente tentativa de fazer a diferença, de emprestar algo positivo e intrínseco àquilo que faz.
Eu, cliente, não me esqueço do portageiro nem da colaboradora Rita da Bertrand do Almada Fórum. Eles são a diferença.

Mário Rufino

publicado por oplanetalivro às 21:14
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11
Out 12
O meu texto sobre "Contos Naturais", de Carlos Fuentes, para a Pnet Literatura

http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=5210



Carlos Fuentes foi um escritor de nacionalidade mexicana e pertenceu ao denominado “boom” da literatura latino-americana, juntamente com Gabriel Garcia Marquez e Mário Vargas Llosa.
O seu mérito literário foi reconhecido com a atribuição do Prémio Cervantes 1987, Prémio Príncipe das Astúrias 1994, da Legião de Honra atribuída pelo governo francês 2003 e da Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica 2008.
Carlos Fuentes faleceu em Maio de 2012.
“Contos Naturais” é uma colectânea de contos onde são debatidos conceitos milenares e existenciais como a moralidade, a inocência, a consciência, a liberdade.
Há neste conjunto de 6 narrativas curtas uma que deve ser destacada, pois consegue concentrar os temas que estarão presentes em mais três (“As duas Elenas”,“Malintzin das Maquilas” e “A Criada do Padre”). Intitula-se “Velha Moralidade” e é o primeiro conto do livro.
“A Linha da Vida” e “Uma Alma Pura” são uma abordagem diferente a uma temática comum a todas as ficções presentes no livro: a libertação do ser humano.

Em “A Velha Moralidade”, a  ausência e construção de moral são o eixo temático da narrativa.
Alberto é uma criança que não vê maldade nas mentiras que conta, pois não tem consciência de que está a fazer algo de errado.
“[O Padre] Pediu-me que não tivesse vergonha e lhe contasse tudo porque nunca tivera de preparar um rapaz tão cheio de pecados como eu (...) Eu limitava-me a espremer a cachimónia pensando quais seriam os meus pecados tão feios e como estávamos ambos ali, na igreja vazia, olhar para a cara um do outro sem saber o que dizer, pus-me a recordar os filmes que tinha visto e comecei a despejar bravatas: que assaltei um rancho e levei, além das galinhas, todo o dinheiro (...)” Pág. 17
Se em “A Velha Moralidade” a ausência de maldade é característica de uma criança ingénua, já em “As Duas Elenas” a moralidade é posta à prova pela racionalidade e pulsão sexual.
A malícia e a insinuação habitam as descrições narrativas e são sintomas da emocionalidade das personagens. À monogamia defendida pelo catolicismo, Elena responde com a naturalidade de um ser entregue a uma ordem de valores hedonista. Estamos perante o ponto de vista oposto a “A Velha Moralidade”. Se a visão de Alberto é formada pela ausência de consciência da moralidade, já a de Elena mostra a negação do pensamento religioso e a substituição do mesmo por outra escala de valores.
“Não é verdade que tenho razão? Se um ménage à trois nos dá vida e alegria e nos torna melhores nas nossas relações pessoais entre três do que éramos na relação entre dois, não é verdade que isso é moral?” Pág. 29
Em “A criada do padre” continuamos perante a relação tortuosa entre pecado-religião-libertação do indivíduo.
Neste conto, a presença de dois personagens masculinos permite a Carlos Fuentes mostrar a antagonia entre as características psicológicas dos mesmos. Nas ficções anteriores, o papel do homem exemplifica a falsidade, a insensatez, a perfídia. Já em “A criada do padre”, apesar do carácter malévolo do padre Benito (a religião é uma constante neste livro), existe uma figura masculina que irá ajudar Mayalde a libertar-se. É uma nuance importante no papel do homem.
“Quando o padre Benito desceu até à aldeia para dar a extrema-unção ao padeiro, já Mayalde entregava a sua virtude a Félix. O padeiro demorou a morrer e o casal de jovens pôde amar-se com tranquilidade, escondido atrás do altar da pacificadora. As roupas eclesiásticas serviram de cama fofa e o cheiro pertinaz do incenso excitava-os - a ele por ser exótico; a ela por ser habitual; a ambos por ser sacrílego” Pág 97
“Uma alma pura” e “A linha da vida” acrescentam algo mais a esta obra. Ambas as narrativas abordam a libertação do ser humano através da morte. No primeiro caso, Juan Luís, ao ver-se derrotado pelas dramáticas circunstâncias, opta por determinar o seu próprio destino. É a emoção que o leva a percorrer o caminho que ditará o fim. Já em “A linha da vida”, a libertação pela morte acontece através das mãos de outrem. No entanto, a entrega a esse destino é decidida, até certo grau, pela própria vítima. A (des)motivação vem de factores emocionais, é certo, mas também de privações físicas.
“(…)vamos de volta para a prisão. Tenho medo deste monte vazio de almas; tenho medo de andar solto, sem grilhetas…Que mas ponham, depressa, Gervasio, Gervasio!...
Pedro apertou os punhos em volta dos tornozelos e, por um minuto, voltou a sentir-se prisioneiro. Prisioneiro de homens quero ser, não prisioneiro do frio e da dor e da noite.” Pág. 115

“Contos Naturais“ apresenta-se tematicamente homogéneo e com interessantes variações estilísticas.
Usando, prioritariamente, um estilo que prima pela concisão da frase e clareza na mensagem, Carlos Fuentes opta, em alguns momentos, por estratégias diferentes. Note-se a sobreposição de imagens num momento em que Alberto tem febre alta:
“Sinto as suas mãos geladas sobre a minha pele quente. O avô agita a bengala e grita palavrões aos padres. O linimento tem um cheiro muito forte. Atiça os cães contra os padres. A eucalipto e a cânfora. Os cães limitam-se a ladrar, assustados”. Pág. 21
 O leitor é seduzido por uma prosa fluida, coerente e sem dispersão. O leitor envolve-se, facilmente, devido à musicalidade e clareza da prosa.
O factor surpresa é muito bem gerido pelo autor.
Estamos perante uma obra em que questões universais e intemporais como a liberdade, a moral, a consciência, a razão, a inocência consubstanciam, com sucesso, as diversas narrativas presentes no livro.



Mário Rufino
publicado por oplanetalivro às 09:55

09
Out 12

“A Herança Perdida” de James Wood é uma homilia à Literatura.






James Wood é crítico literário em “The New Yorker” desde 2007. Antes disso, já o tinha sido em “The Guardian” e em “The New Republic”. É professor de “A prática da crítica literária” em Harvard University.
“A Herança Perdida” é o segundo livro do autor, após “A Mecânica da Ficção” também editado pela Quetzal, e reúne os ensaios publicados em “The New Yorker”, em “The New Republic”, entre outras prestigiadas publicações.

O autor, em “A Herança Perdida”, levanta dúvidas onde outros ficam presos em certezas absolutas e ideias fossilizadas. E consegue-o através de diversas perspectivas que, em algumas vezes, implicam teorias diferentes.
Na essência, James Wood concretiza um princípio que deve estar presente na crítica literária: Interrogar tudo e todos. E não o faz de forma gratuita, pois explica e fundamenta os seus argumentos. Ele demonstra uma flexibilidade analítica extraordinária ao mudar de prisma teórico quando pensa ser mais apropriado. O leitor tem oportunidade de constatar diferentes tipos de abordagem tanto no mesmo ensaio como em diferentes ensaios:
A Dimensão Estética em Flaubert; Historicismo em “A Herança Perdida: O legado de Ernest Renan e Matthew Arnold”; o Biografismo em Hamsun, Melville; a Narrativa em Tchékhov, a Recepção em Bloom, a Crítica de Personagens em Austen…
Dois dos mais importantes ensaios do livro são “O Shakespeare de Bloom” e “A Liberdade do Não Muito”
Em “O Shakespeare de Bloom” pode verificar-se, pela própria natureza das posições de Harold Bloom (cânone, a angústia da influência), a capacidade de argumentação que Wood viria a aplicar em todos os outros ensaios.
Wood desconstrói o pilar sobre o qual assenta toda a teoria de Bloom: Omnipresença e omnipotência de Shakespeare
Já em “A Liberdade do Não Muito” podemos ler sobre a ligação entre a Realidade, a Verdade e a Ficção. A questão da identificação do leitor com o que está no texto literário tem importância vital na compreensão desse mesmo texto literário.
“ A nossa linguagem habitual sobre como nos relacionamos com as personagens de ficção – simpatizamos com elas, identificamo-nos, sentimos empatia – implica uma  grande troca, um impacto considerável, uma partilha de identidades, (…) ”Pág. 12
Esta partilha de identidades liga vários momentos essenciais na criação literária: o momento da escrita e o momento da recepção do texto por parte do leitor.
A problemática adensa-se quando a análise incide sobre os autores que “compõem” o autor, e os livros que formam a capacidade de descodificação do texto por parte do leitor.
Quanto mais se procura a origem mais se tem a sensação de que a desconstrução do texto só irá levar à impossibilidade de identificar sua raiz. Estamos no campo da morte do autor e no da desconstrução derridiana.
No entanto, James Wood não se limita ao desconstrucionismo, ou marxismo, fenomologia, new criticism, etc…
Em “A Liberdade do Não Muito” (até certo ponto é o ensaio que concentra a essência do livro), o autor opta pela Teoria da Recepção do Texto quando comenta autores tão distintos como Beckett e Dickens, mas é em “O Shakespeare de Bloom” que o seu pensamento é mais acutilante.
“O seu livro [Shakespeare: A invenção do humano] é a continuação, por vezes encarniçada, de uma guerra que tem vindo a travar há mais de uma década contra os marxistas, desconstrucionistas e materialistas culturais, os quais designa por «a Escola do Ressentimento. Pág. 46
As opiniões de Bloom são confrontadas com, essencialmente, a Teoria da Recepção. Esta teoria consiste, simplificando, na deslocação do problema da produção e representação de um texto até ao momento da sua recepção/leitura.
“Mas, diz-nos o materialismo cultural, se examinarmos o impressionante leque de interpretações e representações, ao longo dos séculos, temos de concluir que é impossível que Shakespeare tenha todos esses significados e que somos nós, e apenas nós, que atribuímos um significado a Shakespeare” Pág. 50
Apesar de se opor às certezas absolutas de Bloom, Wood aproxima-se do autor de “Cânone Ocidental” no que respeita à crítica de personagens. Se Bloom concentra a sua atenção em Falstaff, Hamlet e Lear (personagens de Shakespeare), já em “ A Consciência Heróica de Jane Austen”, Wood concentra a sua análise na construção das personagens de Jane Austen.
O crítico literário adjectiva a autora de “inovadora feroz”. As influências sobre outros escritores vão desde Dickens a Woolf.
“Com ela, Dickens aprendeu que as personagens podem depender de um só atributo e ainda assim transbordar de vida. Com ela, Forster aprendeu que as personagens não têm de mudar para serem reais; têm apenas de revelar cada vez mais da sua essência estável à medida que o romance avança.” Pág. 63
No entanto, a grande inovação de Jane Austen foi, segundo o autor, conseguir representar a comunicação fragmentada da mente consigo mesma. É neste radicalismo que se funda o fluxo de consciência existente na prosa de Woolf e de Joyce.
A observação de Wood antagoniza as opiniões maioritárias. O seu sarcasmo não poupa, por exemplo, Steiner, em “A Presença Irreal de George Steiner”, quando afirma que um dos principais pensadores do século XX/XXI “teme dar mostras de ignorância, ainda que retórica, ao que junta uma veneração supersticiosa da «grandeza», em que a «grandeza» é separada do referente para não ser mais do que magia portátil, uma espécie de feng shui” Pág.232
DeLillo é também alvo da argúcia de Wood. Sobre “Submundo”, considerado a obra-prima de DeLillo, o crítico literário afirma que “não obstante ter capítulos de grande brilhantismo, não concentra os seus triunfos avulsos da maneira que um romance tão longo deveria fazer. Em vez disso, como [DeLillo] não consegue levar a que as partes se liguem entre si, encaixa-as à força”

Nunca é de mais sublinhar que o autor de “A Herança Perdida” não fecha a discussão, mas antes a promove. As suas afirmações são devidamente fundamentadas. Nada é gratuito nas suas observações.
Dada a acessibilidade da prosa e da fundamentação, esta obra poderá ser lida e compreendida não só por um público académico, mas também pelo leitor que tem interesse em fruir, de forma mais aprofundada, o texto literário.
“A Herança Perdida” é uma criação que dota o leitor/académico de mais ferramentas para a descodificação do texto literário.

Mário Rufino


publicado por oplanetalivro às 12:34

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