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“Caligrafia dos Sonhos”, livro mais recente do vencedor do Prémio Cervantes Juan Marsé, é uma obra que tem o equívoco como importante pilar da sua narrativa. A errância de Ringo, que nem é o seu nome verdadeiro, pela veracidade ou invenção dos acontecimentos interroga a promiscuidade entre realidade e ficção. Quase tudo se baseia na credibilidade, e não na veracidade, do que é contado. Ringo opta constantemente pela reinvenção de memórias ou pela projecção no presente de uma fantasiada realidade. Os seus desejos abordam o Real de forma criativa, apesar de ele negar que o faça:

“Eu não invento nada”
Quando tivemos oportunidade de conversar, a propósito de uma entrevista para o Diário Digital, Juan Marsé afirmou que «Esta observação por parte de Ringo provém do seu conflito com a realidade, da sua recusa de uma realidade de que não gosta. A sua família não é a sua família, o seu pai não é seu pai… (…) Esse conflito das personagens transfere-se, inconscientemente, da sua parte para as novelas. «Eu não invento nada».»
O jogo praticado entre ele e os amigos em que, de forma oral e interactiva, contam histórias uns aos outros é transportado para a escrita. 
O que os olhos apreendem só interessa se for utilizado pelas mãos (é quase obsessivo o interesse pelas mãos).
«A vida dos outros, se os outros não estão nos filmes ou nos romances, merece-lhe apenas uma olhadela por cima do ombro e uma consideração aborrecida» Pág. 65

Ringo encontra o caminho que o leva, hipoteticamente, à essência dos acontecimentos:

“Julga que somente nesse território ignoto e abrupto da escrita e das suas ressonâncias encontrará o trânsito luminoso que vai das palavras aos factos, um lugar propício para repelir o ambiente hostil e reinventar-se a si mesmo” Pág. 164

Se ele reinterpreta, outras personagens também o fazem através da metáfora, arma defensiva contra o delito de opinião provocado pela ditadura.

O seu pai adoptivo e respectivos companheiros estabelecem um pacto com a realidade em que vivem. Ringo resiste até onde pode.

As personagens são dotadas de particularidades físicas, sociais e psicológicas que as transformam em personagens deslocadas. Estamos perante o desenraizamento e solidão.
“Caligrafia dos Sonhos” é também uma obra aberta a outras formas de expressão, desde a mais abstracta (música) à mais concreta (cinema). Juan Marsé utiliza instrumentos de construção narrativa que, de maneira endógena e exógena, são parte importante do romance que escreveu. O cinema está presente tanto nos diálogos como na fundação do próprio texto. A música também é uma presença constante tanto na caracterização psicológica como na prosa burilada até à simplicidade.

«Sei o que vai acontecer, mas do ponto de vista formal não acaba sendo o que deveria ser, por isso insisto uma e outra vez e corrijo muito. E isto para que resulte em algo fácil para o leitor. Não tem o leitor que sofrer com as dificuldades que o escritor sofreu escrevendo, pelo contrário. Atrás dessa aparente facilidade houve um grande esforço e muitas dificuldades.»

As referências literárias são constantes e denunciadas. A “indisciplina” das leituras de Ringo é idêntica à própria formação literária do autor.

“A formação é autodidacta, totalmente. Aos treze de anos deixei o colégio para trabalhar. Quando deixei o colégio não tinha aprendido quase nada. Então fui autodidacta e guiei-me por «olfacto», por instinto… Romances de quiosque, de aventuras e policiais. Alguns anos depois descobri os romances franceses, russos e foi um deslumbramento. Não tive nenhum guia. Baudelaire, Stendhal…; os russos Tolstoi, Dostoievski…; os ingleses Dickens, Stevenson…; os americanos Faulkner, John dos Passos, Hemingway”

Este livro é, segundo o autor, o mais autobiográfico de todos. Mas isso pouco importa. 
“Caligrafia dos Sonhos” é uma mentira muito bem contada.



Mário Rufino


publicado por oplanetalivro às 13:55

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