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Mai 12

Entrevista com Juan Marsé sobre “Caligrafia dos Sonhos”

«Caligrafia dos Sonhos», editado pela Dom Quixote, é um território habitado por equívocos. Juan Marsé, prémio Cervantes, seduz o leitor através de uma prosa burilada, que propicia uma leitura fluida. A empatia do leitor para com as personagens é imediata. A melancolia está presente desde a primeira palavra. A realidade exerce uma relação promíscua com a ficção até não sabermos o que é real ou não. E será que isso interessa?
Na livraria «LeYa na Buchholz», numa manhã de muita chuva, o espanhol Juan Marsé acedeu a uma conversa com o Diário Digital que ilumina o sentido e a Poética de «Caligrafia dos Sonhos».
Conseguiu construir um «edifício» muito coerente, muito homogéneo. Sente muita segurança quando escreve? Escreve facilmente?
Por trás dessa aparente facilidade há um grande esforço, pelo menos no meu caso. Para alguns escritores parece que a prosa lhes brota de uma forma natural e espontânea. Não é o meu caso. Custa-me muito escrever. Há episódios que levei meses a resolver. Sei o que vai acontecer, mas do ponto de vista formal não acaba sendo o que deveria ser, por isso insisto uma e outra vez e corrijo muito. E isto para que resulte em algo fácil para o leitor. Não tem o leitor que sofrer com as dificuldades que o escritor sofreu escrevendo, pelo contrário. Atrás dessa aparente facilidade houve um grande esforço e muitas dificuldades.
Foi sempre assim desde o primeiro livro?
Sim, sim, sempre foi assim. Quando termino um livro e começo outro… de certo modo… tudo o que aprendeste no livro anterior muitas vezes não te serve para o seguinte. É algo como teres utilizado uns instrumentos e quando terminas o livro tens que tirar e usar outro tipo de instrumentos para o livro seguinte. Ainda que aparentemente nos livros pareça o mesmo. A crítica costuma dizer que estou sempre escrevendo sobre os mesmos temas, as mesmas cenografias, a mesma época.
Há muitas similitudes de personagens, de cenografias, de temática, mas cada vez que termino um livro… Eu digo que sou um escritor que, quando acaba de escrever um romance, anda pela rua pensando se é capaz de escrever outro.
É sempre uma angústia entre um livro e outro…
É como terminar um esforço e ficar exausto, ainda que tenhas em mente outros projectos…
Pôr em andamento um romance de 300 ou 400 páginas implica um determinado esforço e insisto no que disse antes: às vezes[implica] um maior conjunto de instrumentos.
A acção acontece, normalmente, em Barcelona. É uma acção local. No entanto, a temática é universal. A sua visão incide sobre personagens marginais. Porque é que a sua atenção incide nesse tipo de personagens?
A resposta é muito simples: as personagens que vivem conflitos são as interessantes. As que vivem sem conflitos e felizes todo o tempo carecem de interesse. É o famoso princípio do romance de Tolstoi «Ana Karenine». Ele diz algo como «Todos os matrimónios felizes são iguais. Os matrimónios infelizes são cada um à sua maneira». O conflito é consubstancial à novelística.
Há muito do autor Juan Marsé neste livro?
É quiçá o romance mais autobiográfico. Há muita inventiva, também; há muitas mentiras; muitas coisas não ocorreram, realmente. Não saberia separar uma coisa da outra ou o que pesa mais, mas há aí também uns quantos episódios que correspondem ao que a minha família me contou. Mas isso também me pareceu irrelevante… quero dizer… o interesse das personagens e das situações na literatura é independente de que venha do real ou do imaginário. A verdade é que a mim sempre me interessou muito pouco. Mais! Às vezes desconfio…
Quando vou ao cinema e o filme começa com «Tudo o que ocorre nesta história é real ou sucedeu-se», esse detalhe interessa-me muito pouco. Eu decidirei se creio ou não creio…
O problema põe-se, por exemplo, nas biografias. O que é real e o que é interpretação…
O problema de todo o livro biográfico ou autobiográfico é fazer credível o que estás contando. É o mesmo com a literatura de ficção. O leitor tem de perceber [o texto] como algo credível. A literatura testemunhal é um tipo de narrativa (a biográfica, a que se ocupa de acontecimentos sociais, políticos, religiosos, históricos) onde a veracidade do testemunho é importante, evidentemente. Na literatura de ficção é igual que as personagens provenham de um modelo real ou não. É igual.
Utiliza muitos episódios seus em «Caligrafia dos Sonhos»?
As minhas memórias estão nos meus romances. Alguns episódios correspondem ao que podemos chamar de memória pessoal. E está a memória colectiva: a memória que não pertence somente a mim, mas também a determinados grupos sociais, a uma época, e, no meu caso, muitas novelas permitem ao leitor [ver] os anos do pós-guerra, a ditadura ou os anos mais duros da ditadura que foram os anos 40 e 50…
Há sentimentos que são universais. Tanto podem existir em Barcelona como em Lisboa, como em…
De alguma maneira, quase todos os países tiveram uma experiência semelhante. Portugal teve 48 anos de ditadura. Terminou no ano de 74; poucos anos depois, em 78, terminou o franquismo.
Há uma grande influência da música, do cinema e da própria literatura. Há várias ligações a textos de outros autores. Recordo-me de «Fome», de Knut Hamsun.
Essas leituras foram as dos 15 anos, quando começava a descobrir a literatura… digamos… séria e escapava já um pouco ao que havia lido até então, como a «literatura de quiosque». Salgari Verne, por exemplo… Há uma experiência pessoal de cinema, também. Há uma inerente homenagem a filmes que naquela época foram importantes para mim. Aquele cinema de Hollywood que era o que víamos e que fazia parte da cultura popular daquela época. Eram cinemas de bairro que passavam dois filmes e documentários… Passávamos toda uma tarde. Havia poucas distracções e o cinema era importante. Hoje, a juventude tem muito mais coisas, sobretudo com o desenvolvimento da tecnologia.
Então o cinema era importante nesse sentido. Afortunadamente foram os melhores anos. A partir dos anos 60, na minha opinião, assiste-se a uma decadência que persiste. Converteu-se num espectáculo tecnológico absolutamente deslumbrante, mas, no terreno da criação, dos diálogos e da narrativa estritamente cinematográfica, perdeu muito.
A sua formação como leitor e escritor dependeu muito de leituras «indisciplinadas» ou de autores canónicos?
A formação é autodidacta, totalmente. Aos treze de anos deixei o colégio para trabalhar. Quando deixei o colégio não tinha aprendido quase nada. Então fui autodidacta e guiei-me por «olfacto», por instinto… Romances de quiosque, de aventuras e policiais. Alguns anos depois descobri os romances franceses, russos e foi um deslumbramento. Não tive nenhum guia. Baudelaire, Stendhal…; os russos Tolstoi, Dostoievski…; os ingleses Dickens, Stevenson…; os americanos Faulkner, John dos Passos, Hemingway.
Quando escrevi o meu primeiro romance estava à margem do mundo literário, completamente. Não conhecia ninguém.
Não foi uma educação formal…
Não, foi autodidacta.
…e no entanto chegou ao Prémio Cervantes.
Ah! Isso foi uma lotaria. Havia outros autores… Não costumo relacionar literatura e prémios. Nem sempre a boa literatura se corresponde com os prémios. Há exemplos…
Quando Ringo conta as histórias há uma interacção entre narrador e quem está a ouvir. É uma transmissão/interacção oral…
É um jogo que praticava quando era rapaz sobretudo quando não tínhamos nenhuma bola para chutar. Usávamos uma bola de trapos. Conseguir uma bola de futebol era dificílimo. Quando não tínhamos nada disto sentávamo-nos e contávamos histórias. O menino mais imaginativo era o que contava mais histórias e nem sempre era eu. Era pura invenção, uma mescla de coisas que havíamos lido e também de histórias que ouvíamos contar em casa.
Quando escreve pensa no leitor?
Não. Penso na relação que se estabelece entre mim e a minha escrita. Se não gosto, ninguém vai gostar. Se me aborrece, aborrece qualquer leitor.
Enquanto eu lia sobre o personagem Ringo, pensava em Juan Marsé. Ele era muito observador e muito solitário. Foi muito interessante «ouvir» Ringo dizer «eu não invento nada». É mentira. O leitor deve desconfiar do escritor?
Esta observação por parte de Ringo provém do seu conflito com a realidade, da sua recusa de uma realidade de que não gosta. A sua família não é a sua família, o seu pai não é seu pai… Há também o despertar do desejo, do erotismo, aos 15 anos, por uma rapariga que é também um exemplo de contradições, de cara mais feia, mas de bonitas pernas. Ele está muito excitado, mas não sabe formular-se Esse conflito das personagens transfere-se, inconscientemente, da sua parte para as novelas. «Eu não invento nada». As coisas são assim. Está de mal com a realidade até que pactua com a realidade através de uma ficção, uma mentira que é a carta que escreve.
Ele substitui a realidade pela ficção…
…mas substitui a realidade mais dura e mais carregada de sentimento de culpa. E substitui-a por outra realidade superior que se chama ficção. Finalmente pactua com a realidade mas é mediante a ficção. Esse é o tema nuclear do romance. No fundo, é uma homenagem à literatura de ficção que é a de que eu gosto e me interessa. Além do mais, toca o tema da iniciação da aprendizagem da vida.
…a última frase é muito interessante «Um rapaz tão observador, tão formal e responsável». 
Ele converte-se num rapaz formal e responsável porque, aparentemente, está conformado com a realidade. Não tem uma vocação de rebelde no sentido convencional. Em todo o caso, ele foi um rebelde com a realidade até que pactua e, no final, se converte num rapaz tão formal e, ao mesmo tempo, tão crédulo.
Crédulo?
Sim.. Porque… vamos ver… porque ele sabia… Como posso explicar isso? É um pouco complicado. Estou-me metendo num dos terrenos mais complicados de explicar, pois é a natureza de uma personagem… Tem a ver com o seu equívoco a respeito da senhora Mir e sua filha. Ele sempre acreditou na história da senhora Mir com o senhor Alonso. É uma história ridícula, de velhos, uma coisa muito feia. No entanto, escapou-se-lhe a verdadeira realidade. Por isso, é um rapaz formal, responsável, mas que se equivocou. Através da aprendizagem da verdade e da realidade ele foi pelo caminho da credibilidade, mas acaba surpreendido do seu próprio equívoco.
As mãos têm um valor muito forte no seu livro. Ringo queria ser pianista, o pai tem sempre as unhas verdes…
… e a rapariga que estuda violino tem as mãos como plumas.
Porquê essa atenção com as mãos?
Pois…Não sei [risos] Não saberia explicar a razão, mas é certo. Nem eu mesmo havia percebido isso. E e há também as mãos da Senhora Mir...
Há uma relação de ódio com a religião. Estou a pensar no episódio com o pai no autocarro.
Isso é real. Recordo-me de forma muita exacta e precisa. Nessa época diziam-te que no autocarro havia que se levantar para uma senhora grávida e um sacerdote, também. O meu pai não podia ver padres. No entanto, respeitou sempre a minha mãe, que era católica. O meu pai dizia muito mal dos padres…



Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

publicado por oplanetalivro às 15:13

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