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Mai 12

Sempre tive especial apetência para fugir de trabalhos manuais. A motricidade fina sempre teve apetência para se ausentar quando necessito dela. Dizem que existe, mas nunca a senti.
Montar móveis implica sobrar peças. Repito muitas vezes a mesma coisa. Demoro pouco tempo a estragar e muito tempo a remediar. Em suma, se antes da minha criação Deus deu aulas de bricolage, então eu faltei a todas. As minhas mãos têm a inteligência de um aipo quando precisam de manipular parafusos, porcas, martelos e todos esses instrumentos diabólicos. Por vezes passa-me pela cabeça se tudo aquilo não foi inventado para me azucrinar o juízo. Juro que tenho pesadelos com estas tarefas. Não percebo nada de electricidade, não percebo nada de canalização, não percebo nada de mecânica. Bem conversado, um vendedor era bem capaz de me vender um carro sem motor ao dizer-me que o espaço era para a refrigeração. Resumindo, tenho a competência de uma couve.
No entanto e por mais inverosímil que possa parecer, eu gosto de desmontar, partir, montar, colar e experimentar muito, sempre. São desafios. Por inépcia manual eu reduzo-me às palavras. Como é bom desmontá-las e olhá-las por dentro, perceber os mecanismos, conhecer as vozes que as habitam e os sons de cada consoante, vogal e pontuação
Adoro anomalias. Aliás, sou "anómalo-dependente". Os erros ortográficos são tão bons como bolos de chocolate; as frases agramaticais são tão apetitosas como várias tortas de azeitão em fila, juntinhas, à minha espera. As palavras são analisadas com pinças, olho para elas com carinho, respeito a idade, tento rejuvenescê-las. Muitas vezes encontro algumas jovens, bem acompanhadas por outras mais antigas que lhes conferem tempo e sabedoria. E tudo se mistura neste tresloucado caldeirão em ebulição que é a minha cabeça.
Houve um curso de português em que tive a oportunidade de dar aulas a uma freira de 80 anos (hei-de falar dela). Eu tinha de explicar muito devagar cada dado novo. Ela aprendeu tudo por mérito próprio. Foi um exemplo, uma luz que iluminou aquela sala.
Por alguma razão chegou-me um pensamento à superfície que, aparentemente, nada tinha a ver com ela. Lembrei-me do livro "Ensaio sobre a lucidez" de José Saramago.
«Raios»,
pensei
«O que é que uma coisa tem a ver com a outra?»
Com alguma imaginação generalizei o assunto intrínseco ao livro e adaptei-o àquela frágil  freira. Não me satisfez. Personagens? Não.
Um enigma.
Peguei no título. "Ensaio", "sobre", "a", "lucidez". Fiquei alguns minutos a olhar para as palavras...
Decidi pegar em "Lucidez"...porque o som...dizia-me algo...
«Luci...Luci...»
Fui ao dicionário:
Lucidez: entre outros significados, este é o mais importante para este assunto: "fig. que conhece, compreende, apreende; de espírito agudo, consciente, inteligente, perspicaz, racional" E orienta-me para ir ver LU(C). --     (Dicionário Houaiss).

Recuei uma página.

LU (C) - entre muita informação, recolhi esta: "antepositivo, de uma raiz indo-europeia leuk- "ser luminoso, iluminar"; em latim (espero que o meu professor não se zangue comigo, pois vou abreviar muito) existe Lux, Luxis - luz, luz do dia; os antropónimos Lúcio, Lúcia (nascido/nascida ao alvorecer) e -era aqui que eu queria chegar- Lúcifer.

Avancei uma página:

Lúcifer: entres os epítetos demoníacos, que me abstenho de nomear, encontrei este significado: "aquele que carrega a luz; o portador de luz". Tal como ela.

Eu sei o que devem estar a pensar: "grande paciência!". É verdade! O que me falta em destreza, sobra-me em persistência.
Sou lento, mas chego lá.

MR
mariorufino.textos@gmail.com



publicado por oplanetalivro às 16:55
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