28
Mai 12


“Caligrafia dos Sonhos”, livro mais recente do vencedor do Prémio Cervantes Juan Marsé, é uma obra que tem o equívoco como importante pilar da sua narrativa. A errância de Ringo, que nem é o seu nome verdadeiro, pela veracidade ou invenção dos acontecimentos interroga a promiscuidade entre realidade e ficção. Quase tudo se baseia na credibilidade, e não na veracidade, do que é contado. Ringo opta constantemente pela reinvenção de memórias ou pela projecção no presente de uma fantasiada realidade. Os seus desejos abordam o Real de forma criativa, apesar de ele negar que o faça:

“Eu não invento nada”
Quando tivemos oportunidade de conversar, a propósito de uma entrevista para o Diário Digital, Juan Marsé afirmou que «Esta observação por parte de Ringo provém do seu conflito com a realidade, da sua recusa de uma realidade de que não gosta. A sua família não é a sua família, o seu pai não é seu pai… (…) Esse conflito das personagens transfere-se, inconscientemente, da sua parte para as novelas. «Eu não invento nada».»
O jogo praticado entre ele e os amigos em que, de forma oral e interactiva, contam histórias uns aos outros é transportado para a escrita. 
O que os olhos apreendem só interessa se for utilizado pelas mãos (é quase obsessivo o interesse pelas mãos).
«A vida dos outros, se os outros não estão nos filmes ou nos romances, merece-lhe apenas uma olhadela por cima do ombro e uma consideração aborrecida» Pág. 65

Ringo encontra o caminho que o leva, hipoteticamente, à essência dos acontecimentos:

“Julga que somente nesse território ignoto e abrupto da escrita e das suas ressonâncias encontrará o trânsito luminoso que vai das palavras aos factos, um lugar propício para repelir o ambiente hostil e reinventar-se a si mesmo” Pág. 164

Se ele reinterpreta, outras personagens também o fazem através da metáfora, arma defensiva contra o delito de opinião provocado pela ditadura.

O seu pai adoptivo e respectivos companheiros estabelecem um pacto com a realidade em que vivem. Ringo resiste até onde pode.

As personagens são dotadas de particularidades físicas, sociais e psicológicas que as transformam em personagens deslocadas. Estamos perante o desenraizamento e solidão.
“Caligrafia dos Sonhos” é também uma obra aberta a outras formas de expressão, desde a mais abstracta (música) à mais concreta (cinema). Juan Marsé utiliza instrumentos de construção narrativa que, de maneira endógena e exógena, são parte importante do romance que escreveu. O cinema está presente tanto nos diálogos como na fundação do próprio texto. A música também é uma presença constante tanto na caracterização psicológica como na prosa burilada até à simplicidade.

«Sei o que vai acontecer, mas do ponto de vista formal não acaba sendo o que deveria ser, por isso insisto uma e outra vez e corrijo muito. E isto para que resulte em algo fácil para o leitor. Não tem o leitor que sofrer com as dificuldades que o escritor sofreu escrevendo, pelo contrário. Atrás dessa aparente facilidade houve um grande esforço e muitas dificuldades.»

As referências literárias são constantes e denunciadas. A “indisciplina” das leituras de Ringo é idêntica à própria formação literária do autor.

“A formação é autodidacta, totalmente. Aos treze de anos deixei o colégio para trabalhar. Quando deixei o colégio não tinha aprendido quase nada. Então fui autodidacta e guiei-me por «olfacto», por instinto… Romances de quiosque, de aventuras e policiais. Alguns anos depois descobri os romances franceses, russos e foi um deslumbramento. Não tive nenhum guia. Baudelaire, Stendhal…; os russos Tolstoi, Dostoievski…; os ingleses Dickens, Stevenson…; os americanos Faulkner, John dos Passos, Hemingway”

Este livro é, segundo o autor, o mais autobiográfico de todos. Mas isso pouco importa. 
“Caligrafia dos Sonhos” é uma mentira muito bem contada.



Mário Rufino


publicado por oplanetalivro às 13:55

15
Mai 12


O Primeiro-Ministro e os antipsicóticos

Há muitos anos que tenho a possibilidade de dar aulas de português para estrangeiros. Os alunos são, maioritariamente, pessoas que fugiram a situações de pobreza no seu país paterno.
Chegam sozinhos, sem família.
Têm uma grande divergência de habilitações entre si. São licenciados ou de escolaridade mínima. Assim que entram em Portugal isso pouco interessa. Trabalham na construção civil, nas limpezas, em pequenas lojas, na mercearia onde compro fruta ou, simplesmente, podemos vê-los no Pingo Doce de Entrecampos a receber e agradecer a comida que lhes dão. Fazem o que nós não queremos fazer. Estão na situação em que não queremos estar.

Há um outro tipo de aluno que não vem em fuga, mas vem porque a empresa o destacou para Portugal. São quadros directivos, estagiários sem família ou colaboradores com filhos. Saíram de uma vida estável e entraram numa vida estável.
Não vêm sozinhos. Trazem a família.
Felizmente, a remuneração por eles auferida permite que um dos cônjuges se demita e traga os filhos. As crianças são inscritas em excelentes escolas e depressa atingem o grau de mestria em Língua Portuguesa. Os colaboradores são uma mais-valia para as empresas e admirados pela sociedade.
A maior parte dos alunos faz um enorme esforço físico e financeiro para aprender português. Os cursos são pagos por eles e não pelas empresas.
Tive a felicidade de estar presente perante um aluno moldavo que escreveu uma carta, contextualizada por um exercício formativo, em que dizia que quando tinha chegado se sentia um bebé. Não tinha amigos, não sabia a língua, não sabia onde iria dormir e só tinha a mochila que trazia às costas. A família, mulher e um filho, havia ficado na Moldávia.
Tinha caído desamparado num mundo estranho.

Um governo que promove a emigração dos cidadãos, independentemente das suas habilitações, é composto por pessoas que vendem ilusões. E não sei o que é mais grave, se uma mentira credível, ou uma psicose que empurra terceiros para uma decisão indesejada.
Não nos iludamos. A maior parte da emigração pertence ao primeiro tipo. A família fica em troco da promessa de dignidade.
Acredito que a família é a base de todos os afectos. Seja ela monoparental, composta por dois elementos do mesmo sexo, ou tradicional, a família é um pilar social. Se somos obrigados a hipotecar esse pilar então estamos em acentuada decadência civilizacional.
Seja contra uma ideologia ou episódio psicótico é imperioso resistir. Não somos crianças e dispensamos o paternalismo. Não somos imbecis e não aceitamos ilusões. Não somos máquinas e não aceitamos a instrumentalização. Somos homens e mulheres. Somos pais e mães.

Mário Rufino
Máriorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 15:24
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10
Mai 12

Organização é ainda uma abstracção cultural


Voltar a efectuar a matrícula numa escola primária é uma provação aos ensinamentos cristãos.
Toda a paciência que se tenha, toda a tolerância, toda a bondade são, no meu caso, insuficientes para aguentar, novamente, o inferno de um impensável e indecifrável labirinto burocrático. Com pouco mais do que a idade do meu filho eu ia matricular-me. Era horrível. Eu levava tudo, mas não podia assinar nada. Se faltasse algum documento, um sinal esférico (nada de cruzes) no local devido, tinha de voltar a casa, pedir o que faltava e esperar, repetidamente, horas na fila.
Hoje, véspera do meu aniversário e com mais trinta anos do que o meu filho, enfrentei, outra vez, os espíritos malignos barricados atrás do balcão. Tenho a certeza de que Deus me está a castigar. Vejo a resposta formatada nos olhos de quem me atende
“Falta…”
para incentivar o serial-killer que há em mim, o negro mais negro do lado negro da Força.
Ontem completei uma candidatura para uma universidade estrangeira. Não tive de ir lá. Preenchi tudo online, digitalizei os documentos, recebi uma referência e já está.
Hoje fui, pela segunda vez, à escola para matricular o meu filho. Antes de irmos pela primeira vez, a minha mulher telefonou e perguntou sobre o que era necessário. Espanto ou nem por isso: Quando chegámos à secretaria pediram-nos documentos diferentes. Primeira tentativa falhada. Hoje, faltava um outro documento que não sei como vou obter.
Abstracção da parte de quem organiza alimenta o instinto assassino da minha parte.
Depois da abstinência, as matrículas são o melhor método contraceptivo. Dá vontade de sair da escola e entrar num qualquer hospital, ou sei lá onde se faz isso, e esterilizar a capacidade reprodutiva. Corta aqui, cola ali e acabou-se.
Saí dali quase a correr e parece-me ter ouvido umas três ou quatro asneiras. Se não me engano, era a minha voz…
Quando vinha a conduzir para casa lembrei-me de uma frase dita por uma professora quando passou por mim. Estava a dialogar naturalmente com um aluno:


Stôra: O Pedro foi para o funeral da avó.
imberbe: Coitado.
Stôra: Já sabes que estas coisas é assim

A imperfeição gramatical do ensino institucionalizado era coerente com o que eu sentia:
Eu pouco tinha a dizer perante a anomalia organizacional.

Depois, fiquei preso à frase, como um todo, e aos seus constituintes:
“Já”, “sabes”, “estas”, “coisas” ,“é”, “assim”

O imberbe era…imberbe e, no entanto, segundo a professora, ele JÁ sabia que a vida tem um resultado prático: a morte.
No entanto, a morte esconde-se em abstracções como “coisas” e “assim”, apesar de ser próxima “estas” e permanente “é”.
O Prof José Gil tem razão. Em “Portugal, Hoje – o medo de existir", o professor começa com esta frase “É a vida”. Pois é… mas não devia ser. Aliás, eu perco anos de vida com estes nervos. E as pessoas que lá trabalham arriscam a delas.
O professor tem esta frase maravilhosa:
“[em Portugal] Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve – na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico”


Querem apostar que ele já tentou matricular um filho?

10 de Maio de 1982

perdão...

10 de Maio de 2012



Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

publicado por oplanetalivro às 10:56
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09
Mai 12

Entrevista com Juan Marsé sobre “Caligrafia dos Sonhos”

«Caligrafia dos Sonhos», editado pela Dom Quixote, é um território habitado por equívocos. Juan Marsé, prémio Cervantes, seduz o leitor através de uma prosa burilada, que propicia uma leitura fluida. A empatia do leitor para com as personagens é imediata. A melancolia está presente desde a primeira palavra. A realidade exerce uma relação promíscua com a ficção até não sabermos o que é real ou não. E será que isso interessa?
Na livraria «LeYa na Buchholz», numa manhã de muita chuva, o espanhol Juan Marsé acedeu a uma conversa com o Diário Digital que ilumina o sentido e a Poética de «Caligrafia dos Sonhos».
Conseguiu construir um «edifício» muito coerente, muito homogéneo. Sente muita segurança quando escreve? Escreve facilmente?
Por trás dessa aparente facilidade há um grande esforço, pelo menos no meu caso. Para alguns escritores parece que a prosa lhes brota de uma forma natural e espontânea. Não é o meu caso. Custa-me muito escrever. Há episódios que levei meses a resolver. Sei o que vai acontecer, mas do ponto de vista formal não acaba sendo o que deveria ser, por isso insisto uma e outra vez e corrijo muito. E isto para que resulte em algo fácil para o leitor. Não tem o leitor que sofrer com as dificuldades que o escritor sofreu escrevendo, pelo contrário. Atrás dessa aparente facilidade houve um grande esforço e muitas dificuldades.
Foi sempre assim desde o primeiro livro?
Sim, sim, sempre foi assim. Quando termino um livro e começo outro… de certo modo… tudo o que aprendeste no livro anterior muitas vezes não te serve para o seguinte. É algo como teres utilizado uns instrumentos e quando terminas o livro tens que tirar e usar outro tipo de instrumentos para o livro seguinte. Ainda que aparentemente nos livros pareça o mesmo. A crítica costuma dizer que estou sempre escrevendo sobre os mesmos temas, as mesmas cenografias, a mesma época.
Há muitas similitudes de personagens, de cenografias, de temática, mas cada vez que termino um livro… Eu digo que sou um escritor que, quando acaba de escrever um romance, anda pela rua pensando se é capaz de escrever outro.
É sempre uma angústia entre um livro e outro…
É como terminar um esforço e ficar exausto, ainda que tenhas em mente outros projectos…
Pôr em andamento um romance de 300 ou 400 páginas implica um determinado esforço e insisto no que disse antes: às vezes[implica] um maior conjunto de instrumentos.
A acção acontece, normalmente, em Barcelona. É uma acção local. No entanto, a temática é universal. A sua visão incide sobre personagens marginais. Porque é que a sua atenção incide nesse tipo de personagens?
A resposta é muito simples: as personagens que vivem conflitos são as interessantes. As que vivem sem conflitos e felizes todo o tempo carecem de interesse. É o famoso princípio do romance de Tolstoi «Ana Karenine». Ele diz algo como «Todos os matrimónios felizes são iguais. Os matrimónios infelizes são cada um à sua maneira». O conflito é consubstancial à novelística.
Há muito do autor Juan Marsé neste livro?
É quiçá o romance mais autobiográfico. Há muita inventiva, também; há muitas mentiras; muitas coisas não ocorreram, realmente. Não saberia separar uma coisa da outra ou o que pesa mais, mas há aí também uns quantos episódios que correspondem ao que a minha família me contou. Mas isso também me pareceu irrelevante… quero dizer… o interesse das personagens e das situações na literatura é independente de que venha do real ou do imaginário. A verdade é que a mim sempre me interessou muito pouco. Mais! Às vezes desconfio…
Quando vou ao cinema e o filme começa com «Tudo o que ocorre nesta história é real ou sucedeu-se», esse detalhe interessa-me muito pouco. Eu decidirei se creio ou não creio…
O problema põe-se, por exemplo, nas biografias. O que é real e o que é interpretação…
O problema de todo o livro biográfico ou autobiográfico é fazer credível o que estás contando. É o mesmo com a literatura de ficção. O leitor tem de perceber [o texto] como algo credível. A literatura testemunhal é um tipo de narrativa (a biográfica, a que se ocupa de acontecimentos sociais, políticos, religiosos, históricos) onde a veracidade do testemunho é importante, evidentemente. Na literatura de ficção é igual que as personagens provenham de um modelo real ou não. É igual.
Utiliza muitos episódios seus em «Caligrafia dos Sonhos»?
As minhas memórias estão nos meus romances. Alguns episódios correspondem ao que podemos chamar de memória pessoal. E está a memória colectiva: a memória que não pertence somente a mim, mas também a determinados grupos sociais, a uma época, e, no meu caso, muitas novelas permitem ao leitor [ver] os anos do pós-guerra, a ditadura ou os anos mais duros da ditadura que foram os anos 40 e 50…
Há sentimentos que são universais. Tanto podem existir em Barcelona como em Lisboa, como em…
De alguma maneira, quase todos os países tiveram uma experiência semelhante. Portugal teve 48 anos de ditadura. Terminou no ano de 74; poucos anos depois, em 78, terminou o franquismo.
Há uma grande influência da música, do cinema e da própria literatura. Há várias ligações a textos de outros autores. Recordo-me de «Fome», de Knut Hamsun.
Essas leituras foram as dos 15 anos, quando começava a descobrir a literatura… digamos… séria e escapava já um pouco ao que havia lido até então, como a «literatura de quiosque». Salgari Verne, por exemplo… Há uma experiência pessoal de cinema, também. Há uma inerente homenagem a filmes que naquela época foram importantes para mim. Aquele cinema de Hollywood que era o que víamos e que fazia parte da cultura popular daquela época. Eram cinemas de bairro que passavam dois filmes e documentários… Passávamos toda uma tarde. Havia poucas distracções e o cinema era importante. Hoje, a juventude tem muito mais coisas, sobretudo com o desenvolvimento da tecnologia.
Então o cinema era importante nesse sentido. Afortunadamente foram os melhores anos. A partir dos anos 60, na minha opinião, assiste-se a uma decadência que persiste. Converteu-se num espectáculo tecnológico absolutamente deslumbrante, mas, no terreno da criação, dos diálogos e da narrativa estritamente cinematográfica, perdeu muito.
A sua formação como leitor e escritor dependeu muito de leituras «indisciplinadas» ou de autores canónicos?
A formação é autodidacta, totalmente. Aos treze de anos deixei o colégio para trabalhar. Quando deixei o colégio não tinha aprendido quase nada. Então fui autodidacta e guiei-me por «olfacto», por instinto… Romances de quiosque, de aventuras e policiais. Alguns anos depois descobri os romances franceses, russos e foi um deslumbramento. Não tive nenhum guia. Baudelaire, Stendhal…; os russos Tolstoi, Dostoievski…; os ingleses Dickens, Stevenson…; os americanos Faulkner, John dos Passos, Hemingway.
Quando escrevi o meu primeiro romance estava à margem do mundo literário, completamente. Não conhecia ninguém.
Não foi uma educação formal…
Não, foi autodidacta.
…e no entanto chegou ao Prémio Cervantes.
Ah! Isso foi uma lotaria. Havia outros autores… Não costumo relacionar literatura e prémios. Nem sempre a boa literatura se corresponde com os prémios. Há exemplos…
Quando Ringo conta as histórias há uma interacção entre narrador e quem está a ouvir. É uma transmissão/interacção oral…
É um jogo que praticava quando era rapaz sobretudo quando não tínhamos nenhuma bola para chutar. Usávamos uma bola de trapos. Conseguir uma bola de futebol era dificílimo. Quando não tínhamos nada disto sentávamo-nos e contávamos histórias. O menino mais imaginativo era o que contava mais histórias e nem sempre era eu. Era pura invenção, uma mescla de coisas que havíamos lido e também de histórias que ouvíamos contar em casa.
Quando escreve pensa no leitor?
Não. Penso na relação que se estabelece entre mim e a minha escrita. Se não gosto, ninguém vai gostar. Se me aborrece, aborrece qualquer leitor.
Enquanto eu lia sobre o personagem Ringo, pensava em Juan Marsé. Ele era muito observador e muito solitário. Foi muito interessante «ouvir» Ringo dizer «eu não invento nada». É mentira. O leitor deve desconfiar do escritor?
Esta observação por parte de Ringo provém do seu conflito com a realidade, da sua recusa de uma realidade de que não gosta. A sua família não é a sua família, o seu pai não é seu pai… Há também o despertar do desejo, do erotismo, aos 15 anos, por uma rapariga que é também um exemplo de contradições, de cara mais feia, mas de bonitas pernas. Ele está muito excitado, mas não sabe formular-se Esse conflito das personagens transfere-se, inconscientemente, da sua parte para as novelas. «Eu não invento nada». As coisas são assim. Está de mal com a realidade até que pactua com a realidade através de uma ficção, uma mentira que é a carta que escreve.
Ele substitui a realidade pela ficção…
…mas substitui a realidade mais dura e mais carregada de sentimento de culpa. E substitui-a por outra realidade superior que se chama ficção. Finalmente pactua com a realidade mas é mediante a ficção. Esse é o tema nuclear do romance. No fundo, é uma homenagem à literatura de ficção que é a de que eu gosto e me interessa. Além do mais, toca o tema da iniciação da aprendizagem da vida.
…a última frase é muito interessante «Um rapaz tão observador, tão formal e responsável». 
Ele converte-se num rapaz formal e responsável porque, aparentemente, está conformado com a realidade. Não tem uma vocação de rebelde no sentido convencional. Em todo o caso, ele foi um rebelde com a realidade até que pactua e, no final, se converte num rapaz tão formal e, ao mesmo tempo, tão crédulo.
Crédulo?
Sim.. Porque… vamos ver… porque ele sabia… Como posso explicar isso? É um pouco complicado. Estou-me metendo num dos terrenos mais complicados de explicar, pois é a natureza de uma personagem… Tem a ver com o seu equívoco a respeito da senhora Mir e sua filha. Ele sempre acreditou na história da senhora Mir com o senhor Alonso. É uma história ridícula, de velhos, uma coisa muito feia. No entanto, escapou-se-lhe a verdadeira realidade. Por isso, é um rapaz formal, responsável, mas que se equivocou. Através da aprendizagem da verdade e da realidade ele foi pelo caminho da credibilidade, mas acaba surpreendido do seu próprio equívoco.
As mãos têm um valor muito forte no seu livro. Ringo queria ser pianista, o pai tem sempre as unhas verdes…
… e a rapariga que estuda violino tem as mãos como plumas.
Porquê essa atenção com as mãos?
Pois…Não sei [risos] Não saberia explicar a razão, mas é certo. Nem eu mesmo havia percebido isso. E e há também as mãos da Senhora Mir...
Há uma relação de ódio com a religião. Estou a pensar no episódio com o pai no autocarro.
Isso é real. Recordo-me de forma muita exacta e precisa. Nessa época diziam-te que no autocarro havia que se levantar para uma senhora grávida e um sacerdote, também. O meu pai não podia ver padres. No entanto, respeitou sempre a minha mãe, que era católica. O meu pai dizia muito mal dos padres…



Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

publicado por oplanetalivro às 15:13

03
Mai 12

Sempre tive especial apetência para fugir de trabalhos manuais. A motricidade fina sempre teve apetência para se ausentar quando necessito dela. Dizem que existe, mas nunca a senti.
Montar móveis implica sobrar peças. Repito muitas vezes a mesma coisa. Demoro pouco tempo a estragar e muito tempo a remediar. Em suma, se antes da minha criação Deus deu aulas de bricolage, então eu faltei a todas. As minhas mãos têm a inteligência de um aipo quando precisam de manipular parafusos, porcas, martelos e todos esses instrumentos diabólicos. Por vezes passa-me pela cabeça se tudo aquilo não foi inventado para me azucrinar o juízo. Juro que tenho pesadelos com estas tarefas. Não percebo nada de electricidade, não percebo nada de canalização, não percebo nada de mecânica. Bem conversado, um vendedor era bem capaz de me vender um carro sem motor ao dizer-me que o espaço era para a refrigeração. Resumindo, tenho a competência de uma couve.
No entanto e por mais inverosímil que possa parecer, eu gosto de desmontar, partir, montar, colar e experimentar muito, sempre. São desafios. Por inépcia manual eu reduzo-me às palavras. Como é bom desmontá-las e olhá-las por dentro, perceber os mecanismos, conhecer as vozes que as habitam e os sons de cada consoante, vogal e pontuação
Adoro anomalias. Aliás, sou "anómalo-dependente". Os erros ortográficos são tão bons como bolos de chocolate; as frases agramaticais são tão apetitosas como várias tortas de azeitão em fila, juntinhas, à minha espera. As palavras são analisadas com pinças, olho para elas com carinho, respeito a idade, tento rejuvenescê-las. Muitas vezes encontro algumas jovens, bem acompanhadas por outras mais antigas que lhes conferem tempo e sabedoria. E tudo se mistura neste tresloucado caldeirão em ebulição que é a minha cabeça.
Houve um curso de português em que tive a oportunidade de dar aulas a uma freira de 80 anos (hei-de falar dela). Eu tinha de explicar muito devagar cada dado novo. Ela aprendeu tudo por mérito próprio. Foi um exemplo, uma luz que iluminou aquela sala.
Por alguma razão chegou-me um pensamento à superfície que, aparentemente, nada tinha a ver com ela. Lembrei-me do livro "Ensaio sobre a lucidez" de José Saramago.
«Raios»,
pensei
«O que é que uma coisa tem a ver com a outra?»
Com alguma imaginação generalizei o assunto intrínseco ao livro e adaptei-o àquela frágil  freira. Não me satisfez. Personagens? Não.
Um enigma.
Peguei no título. "Ensaio", "sobre", "a", "lucidez". Fiquei alguns minutos a olhar para as palavras...
Decidi pegar em "Lucidez"...porque o som...dizia-me algo...
«Luci...Luci...»
Fui ao dicionário:
Lucidez: entre outros significados, este é o mais importante para este assunto: "fig. que conhece, compreende, apreende; de espírito agudo, consciente, inteligente, perspicaz, racional" E orienta-me para ir ver LU(C). --     (Dicionário Houaiss).

Recuei uma página.

LU (C) - entre muita informação, recolhi esta: "antepositivo, de uma raiz indo-europeia leuk- "ser luminoso, iluminar"; em latim (espero que o meu professor não se zangue comigo, pois vou abreviar muito) existe Lux, Luxis - luz, luz do dia; os antropónimos Lúcio, Lúcia (nascido/nascida ao alvorecer) e -era aqui que eu queria chegar- Lúcifer.

Avancei uma página:

Lúcifer: entres os epítetos demoníacos, que me abstenho de nomear, encontrei este significado: "aquele que carrega a luz; o portador de luz". Tal como ela.

Eu sei o que devem estar a pensar: "grande paciência!". É verdade! O que me falta em destreza, sobra-me em persistência.
Sou lento, mas chego lá.

MR
mariorufino.textos@gmail.com



publicado por oplanetalivro às 16:55
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02
Mai 12

Na 2ª feira, saí por volta da meia-noite da Feira do Livro e decidi caminhar até Entrecampos.
Carregava algum peso dentro dos sacos. Por vezes, era obrigado a pousá-los para poder aliviar a sensação desconfortável que me marcava os dedos. Ia feliz apesar de cem em cem metros me interrogar sobre a insanidade que me fazia andar em vez de ir de metro.
Já no Saldanha, fui interrogado por uma situação para a qual ainda não tenho resposta.
Pousei os sacos recheados de livros e percebi que um grupo de pessoas se aglomerava junto à traseira de uma carrinha.
«Será que estão a dar livros ou outras ofertas?»,
pensei esquecendo-me de que já não estava no Parque Eduardo VII.
Retomei o meu caminho e passo a passo fui percebendo que algo era diferente. Nas mãos das pessoas, homens essencialmente, havia leves sacos de papel. Homens magros de tez escura, barba como teia a pender da face,  retiravam alimentos desses sacos. Duas pessoas suplicavam comida a um rapaz aflito, que não podia dar mais do que aquela ração.
Os sacos castigavam os meus dedos, pesavam nas mãos, mas eu comecei a andar mais depressa, quase a correr, com medo de ser assaltado...
«Não fui de metro porque preciso de perder peso»,
lembrei-me.
Não consigo nem posso pensar-me como voz passiva deste estado. Antes, sinto-me a voz activa que fugiu e se demitiu... 

MR
publicado por oplanetalivro às 14:44
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