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Abr 12


“A minha Cozinha”
Clara de Sousa
Livros D`Hoje

Se há dois mundos que me agradam e se completam, então esses são o da Literatura e o da Culinária. Comer, beber e ler são parte integrante da ideia de Paraíso. Apesar da “pressão” social para nos relacionarmos com a comida de uma forma funcional, estigmatizando os que não são magros, o prazer de beber, comer e ler ultrapassa essa “pressão”. Assim mesmo e sem receios. Então quando se analisa a ligação entre os alimentos e a sensualidade, o caso ganha outra gravidade…para quem não come.
Helena Vasconcelos em “Amor, Comida e Sexo” resume, de forma brilhante, a relação histórico-cultural entre o Ser Humano e a comida “Assim, a cultura romana estabelecia a relação entre o sexo e a comida numa base hedonista, centrada no prazer, a dos cristãos numa pecaminosa, criando os fundamentos de uma condenação moral do excesso, (não é possível esquecer como a origem do pecado é representada pela dentada que Eva dá numa maçã), e a dos bárbaros numa virilidade ligada à acção e à sobrevivência.
A História, particularmente a história literária, apresenta-nos uma relação mais complexa do que o sentido primário entre os alimentos e o Ser Humano. A Literatura, a memória e a sensualidade estão ligadas não só à forma como ao uso dos próprios alimentos. Proust, por exemplo, constrói a monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” partindo do cheiro e do gosto das madalenas. Obras como “O Banquete” de Platão, “Madame Bovary”de Flaubert, “O Amor nos tempos de Cólera”,de Gabriel Garcia Marquez, ou o mais recente “Correcções” de Jonathan Franzen (e muitas mais) contêm em si elementos que traduzem a ligação histórica entre a comida e a literatura. Ler “Alice no País da Maravilhas” enquanto se bebe “grappa” e se come pedaços de chocolate é levar a viagem literária a outro nível. E é uma viagem que obriga a repetição.
A necessidade de partilha, a continuação da memória e o “prazer” de comer e beber e conversar são a alma de “ A minha Cozinha”.
Clara de Sousa, profissão jornalista, idade…intemporal, escreveu o seu primeiro livro de culinária. É um livro de afectos, onde se comemora o prazer do convívio à mesa e onde se demonstra, principalmente, como a culinária é uma forma de transmissão cultural e familiar.
O seu gosto pela literatura não é recente. Clara de Sousa é formada em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras de Lisboa. E foi sobre literatura que começámos por falar: “O peso da borboleta” de Erri de Luca; “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai; “O Rebate” de J. Rentes de Carvalho, “Peregrinação de Enmanuel Jhesus” de Pedro Rosa Mendes e muitos mais…
Nesta breve conversa regista-se a conjugação destes mesmos ingredientes: A literatura, a gastronomia, a transmissão do património familiar e a…sensualidade.


A Clara cozinha desde os 9 anos e aprendeu muito com a sua mãe.É importante para si transmitir essa herança cultural aos seus filhos?

- Gostaria muito que eles tivessem desenvolvido a curiosidade e a pro-actividade que eu desenvolvi desde cedo na cozinha, mas admito que sou mais “castradora” do que a minha mãe. Preocupo-me em demasia com a possibilidade de se queimarem ou cortarem e fiscalizo mais. Mesmo assim, os tempos são diferentes… eu passava mesmo muito tempo na cozinha, fosse a comer, a conversar, a fazer os TPC ou simplesmente a preparar as refeições ou a “viajar” na maionese. Hoje em dia, nos seus tempos livres, os miúdos têm muitas mais opções, em muitos casos, muito mais sedutoras. Mais do que meus ajudantes, os meus filhos são, sobretudo, provadores… e são implacáveis.


Disse numa entrevista “O meu pai é um homem de demonstrar muito afecto através daquilo que dá”. O convívio em volta das suas receitas é uma forma de distribuir esse afecto?

- O meu pai é transmontano e quem conhece os transmontanos sabe da importância que a partilha de comida tem em termos sociais e culturais. Quem entre numa casa transmontana tem logo mesa posta e se não comer “ofende” o anfitrião. Eu cresci neste registo. Por um lado, uma casa de porta aberta para os amigos e para as “patuscadas”… e por outro, uma mãe que era uma referência, doméstica e não só, na arte de bem cozinhar. Uma mãe que sorria ainda mais quando a elogiavam por essa qualidade… quando lhe diziam que nunca tinha provado nada tão bom… quando lhe pediam os segredos, os truques; no fundo quando partilhavam o mesmo amor que ela pela cozinha. Nesse aspecto, eu e a minha mãe falávamos a mesma linguagem e é essa que tento perpetuar, seja com os que me estão mais próximos seja com os que estando longe e não me conhecendo pessoalmente entendem “esta minha linguagem” e a sua verdadeira essência. Nas apresentações do livro eu considero que é um pequeno mimo e é muito engraçado ver como as pessoas, que estão relativamente atentas/tensas, ficam muito mais soltas depois de comerem a mousse. Sim, é partilha – o que é bom partilha-se.


Cozinhar algo de especial só para si faz algum sentido?

- Não faz muito sentido é verdade. O desejo de partilha fala mais alto na preparação desses momentos especiais. Não consigo esse estímulo quando é só para mim, porque fico em “circuito fechado”. Com a família e os amigos é completamente diferente. Todos nós precisamos de uma maneira ou outra de aprovação – a cozinha acaba por ter os dois sentidos nessa estrada: a da partilha geradora de bons momentos e o retorno nas palavras de aprovação que dão estímulo para novas partilhas.  


Saiu da rotina em que estamos habituados a vê-la. Como tem sido a reacção do público? A pluralidade de talentos ou funções é muito invejada na nossa sociedade…

 - Tem sido uma reacção extraordinária, porque as pessoas têm possibilidade de confirmar que tudo isto é verdadeiro e vem do coração. A venda do livro só por si, para mim, não significa nada. O sucesso seria pífio e não se perpetuaria se não houvesse uma identificação, se fosse um livro pretensioso a querer ser mais do que aquilo que é. E as pessoas perceberam a razão da partilha, pelo amor que tenho a esta arte e pela simplicidade das receitas – mais do que eu, neste momento, são as pessoas que compraram o livro e que testam as receitas que melhor o promovem. E são elas que já me exigem um segundo este ano. Mas sobre isso ainda não decidi. Já li um ou outro comentário desagradável como se eu me estivesse a aproveitar da minha visibilidade mediática para fazer um livro sobre algo de que não sou especialista. Ora, a verdade é que eu não preciso de mais visibilidade e esta aventura até me poderia ter sido prejudicial. Mas quando fazemos as coisas pelas razões certas, acredito que o resultado só pode ser o melhor. Além do mais, os melhores pratos que comi em toda a minha vida foram feitos por “especialistas domésticos”. Paralelamente, sou jornalista há 20 anos e não tenho o curso de Comunicação Social e tal como eu muitos dos meus colegas e isso enriquece uma redacção, não a empobrece. A verdade é que há áreas em que a “especialidade” se desenvolve e apura com a prática. No jornalismo ou na culinária a prática já é de muitos anos.Sobre essa ideia ridícula de que só podemos ter um talento, enfim, é reveladora do espírito de quem pensa assim. Se cria inveja, paciência. A inveja corrói quem a tem. Eu prefiro olhar para uma pessoa multifacetada e sentir que ela é um estímulo para mim. Curiosamente, por causa do livro e do entusiasmo que coloco nestas partilhas culinárias, muitas pessoas ganharam ânimo para se aventurarem e testarem essas capacidades que pensavam que não tinham. O meu conselho para elas é um reflexo da minha postura perante a vida: o facto de correr mal uma ou mais vezes, não significa que vá correr sempre mal. Provavelmente só fizemos a opção errada para testarmos essas capacidades. E há-de haver um dia em que corre bem e a partir daí ganha-se a confiança necessária para que na maior parte das vezes corra bem. É tudo uma questão de abordagem, de atitude. Eu por natureza sou optimista e pró-activa, acho sempre que vou conseguir e entro em acção. Seja na cozinha, na bricolage, no jornalismo… Foi sempre assim. Já em criança era muito curiosa com as coisas que me rodeavam e que de alguma forma não compreendia ou não conhecia, fazia muitas perguntas e gostava de ter respostas que fizessem sentido, não bastava um ‘porque sim’. Se queria trabalhar a madeira, tinha de sentir a madeira, se queria treinar o meu cão, estudava e testava e insistia até conseguir, se queria assistir a um parto de uma coelha, ficava horas com o nariz encostado na porta da coelheira… e por aí fora. Isso fez-me percorrer com naturalidade e entusiasmo os vários caminhos que me trouxeram onde estou hoje.


Gastronomia, Literatura e jornalismo. Como é que concilia a sua profissão com o prazer de cozinhar e de ler?

- Fazendo uma gestão equilibrada do tempo… na lógica de “sempre por prazer” nunca por obrigação. Ter uma profissão que é uma segunda pele ajuda muito a esse estado de espírito. Quanto ao resto, há alturas em que dedico mais tempo a uma coisa, ou a outra, dependendo das fases por que estou a passar. Neste momento, por efeito do livro, acabo por dedicar mais do meu tempo livre à culinária do que à literatura, admito.


Na página do facebook sobre o seu livro escreveu algumas receitas, no dia dos namorados, muito…apelativas (Camarões de l'amour, - Frango com a fruta do pecado, Banana afrodite ou Fondue apimentado). Pode a comida ser uma forma de sedução?

- Se a comida é uma linguagem de afectos, é naturalmente sedutora. E pode também estar apimentada de sensualidade. É o que quisermos fazer dela, desde que bem feita será certamente eficaz.

 Parece-me que nem foi necessário recorrer aos seus dotes culinários para ser considerada a “mulher mais sexy de Portugal”…

-Pois eu sempre achei que a designação não fazia sentido – não fui, não sou, não serei nem nunca me senti. O que senti foi que as pessoas votavam na lógica de gostarem de nós, independentemente da parte sexy.

24 horas para se conquistar a pessoa de quem se gosta. Do seu livro, o que recomendaria desde o pequeno-almoço até ao jantar?

-A conquista da pessoa de quem se gosta não vem nas páginas dos livros… nem no meu nem nos que dizem ter soluções para tudo. A conquista da pessoa de quem se gosta só é possível com uma linguagem que não se escreve e muitas vezes nem se diz. Desculpe Mário, mas para esta não tenho a receita…


Das várias receitas que experimentei- todas excelentes- o doce de abóbora e o folhado de espinafres, bacon e chévre, ficaram deliciosos, apesar do cozinheiro. No entanto...”Pesto de Urtigas” é arrepiante. Fica bem com o quê?

- Pesto só fica bem com ‘pasta’, mais nada… seja pesto de urtigas, pesto de rúcula, pesto de espinafres ou, o meu preferido, pesto de manjericão!

 Lanço-lhe um desafio. Qual a melhor leitura para acompanhar:

Mousse de Lima – “As Formigas - Boris Vian”
Tarte de Caça – “As velas ardem até ao fim - Sándor Márai”
Salmão curado em casa – “Como água para chocolate - Laura Esquível”
Pezinhos de coentrada – “Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago

Há sempre um ingrediente secreto, algo que não partilhamos com ninguém. Qual a receita que não vimos neste livro nem iremos ver nos próximos?

-Essa já revelei na introdução: bacalhau com natas, receita da mãe. Porque ela só a revelou quando percebeu que iria partir.

O seu livro tem tido imenso sucesso. Quem já experimentou muitas das suas receitas pergunta, inevitavelmente: Quando é que publica um segundo livro?

- Mário… por favor… não me faça perguntas difíceis J


Mário Rufino

publicado por oplanetalivro às 11:45

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