28
Abr 12
A Palavra não define o objecto. A Palavra conceptualiza a ideia que temos do objecto.




publicado por oplanetalivro às 00:03
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20
Abr 12


“A minha Cozinha”
Clara de Sousa
Livros D`Hoje

Se há dois mundos que me agradam e se completam, então esses são o da Literatura e o da Culinária. Comer, beber e ler são parte integrante da ideia de Paraíso. Apesar da “pressão” social para nos relacionarmos com a comida de uma forma funcional, estigmatizando os que não são magros, o prazer de beber, comer e ler ultrapassa essa “pressão”. Assim mesmo e sem receios. Então quando se analisa a ligação entre os alimentos e a sensualidade, o caso ganha outra gravidade…para quem não come.
Helena Vasconcelos em “Amor, Comida e Sexo” resume, de forma brilhante, a relação histórico-cultural entre o Ser Humano e a comida “Assim, a cultura romana estabelecia a relação entre o sexo e a comida numa base hedonista, centrada no prazer, a dos cristãos numa pecaminosa, criando os fundamentos de uma condenação moral do excesso, (não é possível esquecer como a origem do pecado é representada pela dentada que Eva dá numa maçã), e a dos bárbaros numa virilidade ligada à acção e à sobrevivência.
A História, particularmente a história literária, apresenta-nos uma relação mais complexa do que o sentido primário entre os alimentos e o Ser Humano. A Literatura, a memória e a sensualidade estão ligadas não só à forma como ao uso dos próprios alimentos. Proust, por exemplo, constrói a monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” partindo do cheiro e do gosto das madalenas. Obras como “O Banquete” de Platão, “Madame Bovary”de Flaubert, “O Amor nos tempos de Cólera”,de Gabriel Garcia Marquez, ou o mais recente “Correcções” de Jonathan Franzen (e muitas mais) contêm em si elementos que traduzem a ligação histórica entre a comida e a literatura. Ler “Alice no País da Maravilhas” enquanto se bebe “grappa” e se come pedaços de chocolate é levar a viagem literária a outro nível. E é uma viagem que obriga a repetição.
A necessidade de partilha, a continuação da memória e o “prazer” de comer e beber e conversar são a alma de “ A minha Cozinha”.
Clara de Sousa, profissão jornalista, idade…intemporal, escreveu o seu primeiro livro de culinária. É um livro de afectos, onde se comemora o prazer do convívio à mesa e onde se demonstra, principalmente, como a culinária é uma forma de transmissão cultural e familiar.
O seu gosto pela literatura não é recente. Clara de Sousa é formada em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras de Lisboa. E foi sobre literatura que começámos por falar: “O peso da borboleta” de Erri de Luca; “As velas ardem até ao fim” de Sándor Márai; “O Rebate” de J. Rentes de Carvalho, “Peregrinação de Enmanuel Jhesus” de Pedro Rosa Mendes e muitos mais…
Nesta breve conversa regista-se a conjugação destes mesmos ingredientes: A literatura, a gastronomia, a transmissão do património familiar e a…sensualidade.


A Clara cozinha desde os 9 anos e aprendeu muito com a sua mãe.É importante para si transmitir essa herança cultural aos seus filhos?

- Gostaria muito que eles tivessem desenvolvido a curiosidade e a pro-actividade que eu desenvolvi desde cedo na cozinha, mas admito que sou mais “castradora” do que a minha mãe. Preocupo-me em demasia com a possibilidade de se queimarem ou cortarem e fiscalizo mais. Mesmo assim, os tempos são diferentes… eu passava mesmo muito tempo na cozinha, fosse a comer, a conversar, a fazer os TPC ou simplesmente a preparar as refeições ou a “viajar” na maionese. Hoje em dia, nos seus tempos livres, os miúdos têm muitas mais opções, em muitos casos, muito mais sedutoras. Mais do que meus ajudantes, os meus filhos são, sobretudo, provadores… e são implacáveis.


Disse numa entrevista “O meu pai é um homem de demonstrar muito afecto através daquilo que dá”. O convívio em volta das suas receitas é uma forma de distribuir esse afecto?

- O meu pai é transmontano e quem conhece os transmontanos sabe da importância que a partilha de comida tem em termos sociais e culturais. Quem entre numa casa transmontana tem logo mesa posta e se não comer “ofende” o anfitrião. Eu cresci neste registo. Por um lado, uma casa de porta aberta para os amigos e para as “patuscadas”… e por outro, uma mãe que era uma referência, doméstica e não só, na arte de bem cozinhar. Uma mãe que sorria ainda mais quando a elogiavam por essa qualidade… quando lhe diziam que nunca tinha provado nada tão bom… quando lhe pediam os segredos, os truques; no fundo quando partilhavam o mesmo amor que ela pela cozinha. Nesse aspecto, eu e a minha mãe falávamos a mesma linguagem e é essa que tento perpetuar, seja com os que me estão mais próximos seja com os que estando longe e não me conhecendo pessoalmente entendem “esta minha linguagem” e a sua verdadeira essência. Nas apresentações do livro eu considero que é um pequeno mimo e é muito engraçado ver como as pessoas, que estão relativamente atentas/tensas, ficam muito mais soltas depois de comerem a mousse. Sim, é partilha – o que é bom partilha-se.


Cozinhar algo de especial só para si faz algum sentido?

- Não faz muito sentido é verdade. O desejo de partilha fala mais alto na preparação desses momentos especiais. Não consigo esse estímulo quando é só para mim, porque fico em “circuito fechado”. Com a família e os amigos é completamente diferente. Todos nós precisamos de uma maneira ou outra de aprovação – a cozinha acaba por ter os dois sentidos nessa estrada: a da partilha geradora de bons momentos e o retorno nas palavras de aprovação que dão estímulo para novas partilhas.  


Saiu da rotina em que estamos habituados a vê-la. Como tem sido a reacção do público? A pluralidade de talentos ou funções é muito invejada na nossa sociedade…

 - Tem sido uma reacção extraordinária, porque as pessoas têm possibilidade de confirmar que tudo isto é verdadeiro e vem do coração. A venda do livro só por si, para mim, não significa nada. O sucesso seria pífio e não se perpetuaria se não houvesse uma identificação, se fosse um livro pretensioso a querer ser mais do que aquilo que é. E as pessoas perceberam a razão da partilha, pelo amor que tenho a esta arte e pela simplicidade das receitas – mais do que eu, neste momento, são as pessoas que compraram o livro e que testam as receitas que melhor o promovem. E são elas que já me exigem um segundo este ano. Mas sobre isso ainda não decidi. Já li um ou outro comentário desagradável como se eu me estivesse a aproveitar da minha visibilidade mediática para fazer um livro sobre algo de que não sou especialista. Ora, a verdade é que eu não preciso de mais visibilidade e esta aventura até me poderia ter sido prejudicial. Mas quando fazemos as coisas pelas razões certas, acredito que o resultado só pode ser o melhor. Além do mais, os melhores pratos que comi em toda a minha vida foram feitos por “especialistas domésticos”. Paralelamente, sou jornalista há 20 anos e não tenho o curso de Comunicação Social e tal como eu muitos dos meus colegas e isso enriquece uma redacção, não a empobrece. A verdade é que há áreas em que a “especialidade” se desenvolve e apura com a prática. No jornalismo ou na culinária a prática já é de muitos anos.Sobre essa ideia ridícula de que só podemos ter um talento, enfim, é reveladora do espírito de quem pensa assim. Se cria inveja, paciência. A inveja corrói quem a tem. Eu prefiro olhar para uma pessoa multifacetada e sentir que ela é um estímulo para mim. Curiosamente, por causa do livro e do entusiasmo que coloco nestas partilhas culinárias, muitas pessoas ganharam ânimo para se aventurarem e testarem essas capacidades que pensavam que não tinham. O meu conselho para elas é um reflexo da minha postura perante a vida: o facto de correr mal uma ou mais vezes, não significa que vá correr sempre mal. Provavelmente só fizemos a opção errada para testarmos essas capacidades. E há-de haver um dia em que corre bem e a partir daí ganha-se a confiança necessária para que na maior parte das vezes corra bem. É tudo uma questão de abordagem, de atitude. Eu por natureza sou optimista e pró-activa, acho sempre que vou conseguir e entro em acção. Seja na cozinha, na bricolage, no jornalismo… Foi sempre assim. Já em criança era muito curiosa com as coisas que me rodeavam e que de alguma forma não compreendia ou não conhecia, fazia muitas perguntas e gostava de ter respostas que fizessem sentido, não bastava um ‘porque sim’. Se queria trabalhar a madeira, tinha de sentir a madeira, se queria treinar o meu cão, estudava e testava e insistia até conseguir, se queria assistir a um parto de uma coelha, ficava horas com o nariz encostado na porta da coelheira… e por aí fora. Isso fez-me percorrer com naturalidade e entusiasmo os vários caminhos que me trouxeram onde estou hoje.


Gastronomia, Literatura e jornalismo. Como é que concilia a sua profissão com o prazer de cozinhar e de ler?

- Fazendo uma gestão equilibrada do tempo… na lógica de “sempre por prazer” nunca por obrigação. Ter uma profissão que é uma segunda pele ajuda muito a esse estado de espírito. Quanto ao resto, há alturas em que dedico mais tempo a uma coisa, ou a outra, dependendo das fases por que estou a passar. Neste momento, por efeito do livro, acabo por dedicar mais do meu tempo livre à culinária do que à literatura, admito.


Na página do facebook sobre o seu livro escreveu algumas receitas, no dia dos namorados, muito…apelativas (Camarões de l'amour, - Frango com a fruta do pecado, Banana afrodite ou Fondue apimentado). Pode a comida ser uma forma de sedução?

- Se a comida é uma linguagem de afectos, é naturalmente sedutora. E pode também estar apimentada de sensualidade. É o que quisermos fazer dela, desde que bem feita será certamente eficaz.

 Parece-me que nem foi necessário recorrer aos seus dotes culinários para ser considerada a “mulher mais sexy de Portugal”…

-Pois eu sempre achei que a designação não fazia sentido – não fui, não sou, não serei nem nunca me senti. O que senti foi que as pessoas votavam na lógica de gostarem de nós, independentemente da parte sexy.

24 horas para se conquistar a pessoa de quem se gosta. Do seu livro, o que recomendaria desde o pequeno-almoço até ao jantar?

-A conquista da pessoa de quem se gosta não vem nas páginas dos livros… nem no meu nem nos que dizem ter soluções para tudo. A conquista da pessoa de quem se gosta só é possível com uma linguagem que não se escreve e muitas vezes nem se diz. Desculpe Mário, mas para esta não tenho a receita…


Das várias receitas que experimentei- todas excelentes- o doce de abóbora e o folhado de espinafres, bacon e chévre, ficaram deliciosos, apesar do cozinheiro. No entanto...”Pesto de Urtigas” é arrepiante. Fica bem com o quê?

- Pesto só fica bem com ‘pasta’, mais nada… seja pesto de urtigas, pesto de rúcula, pesto de espinafres ou, o meu preferido, pesto de manjericão!

 Lanço-lhe um desafio. Qual a melhor leitura para acompanhar:

Mousse de Lima – “As Formigas - Boris Vian”
Tarte de Caça – “As velas ardem até ao fim - Sándor Márai”
Salmão curado em casa – “Como água para chocolate - Laura Esquível”
Pezinhos de coentrada – “Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago

Há sempre um ingrediente secreto, algo que não partilhamos com ninguém. Qual a receita que não vimos neste livro nem iremos ver nos próximos?

-Essa já revelei na introdução: bacalhau com natas, receita da mãe. Porque ela só a revelou quando percebeu que iria partir.

O seu livro tem tido imenso sucesso. Quem já experimentou muitas das suas receitas pergunta, inevitavelmente: Quando é que publica um segundo livro?

- Mário… por favor… não me faça perguntas difíceis J


Mário Rufino

publicado por oplanetalivro às 11:45

17
Abr 12
O meu texto sobre "Às Cegas" de Claudio Magris no Diário Digital:

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=568574


Magris submerge o leitor numa prosa torrencial, caótica, própria de quem tem, em si próprio, muitos mundos e muitos tempos.
O narrador, que se apresenta pluralmente nomeado, rompe com as delimitações temporais e físicas inerentes à sanidade mental.
Ele é (hipoteticamente) um louco que se multiplica em vários personagens que vivem em tempos diferentes. Desta forma, o autor torna o impossível acreditável quando coloca o narrador defronte de um computador ou a falar para um gravador enquanto narra as torturas a que ele próprio foi sujeito na 2ª Grande Guerra, ou as aventuras e desventuras por que passou no Séc. XIX.
A estrutura narrativa oferece ao leitor diversas possibilidades de leitura. A resolução do conflito interior de quem conta as suas viagens depende, também, da própria solução encontrada pelo leitor. Claudio Magris não entrega, propositadamente, o seu texto como se de um testemunho verídico se tratasse. O tempo, o espaço, a unicidade da voz narrativa e a conclusão de determinado desenvolvimento não são definidos pelo autor. O leitor, tal qual a multiplicidade de vozes existentes no narrador, tem de multiplicar os seus pontos de vista, ou leituras. É isto que é invocado. O paciente, internado num hospital psiquiátrico, dirige-se ao médico, que acreditará ou não no que, de forma diferida, ouve ou lê. O escritor convoca o leitor da mesma forma que o paciente solicita o médico.
“Ninguém sabe como soa a sua própria voz; são os outros que a reconhecem e distinguem”Pág.17
A veracidade está em jogo. A biografia, e ainda mais a autobiografia, coloca sempre a questão da factualidade.
“SIM,DOUTOR,EU TAMBÉM MENTI. Enfim, menti – o meu autobiógrafo embelezou um pouco as coisas, como acontece sempre quando se escreve” Pág.112
Surgem algumas interrogações: Que narrador /autor será este? Será um narrador que investe numa fantasmagoria, em projecções ficcionadas, que baralha o leitor? Será um narrador que demonstra aspectos biográficos numa estrutura factual? Ou será que dentro da ficcionalidade existem alguns aspectos verídicos?
Há, no entanto, um fio comum a tanta multiplicidade. A procura da individualidade, esmagada por contextos históricos, correntes ideológicas mutáveis, é o tosão de ouro procurado por este narrador, por este Jasão, o argonauta. A viagem, tantas vezes mencionada no texto, é longa e faz-se através de um mar de incertezas.
“ (…) a primeira coisa que escrevi foi precisamente aquele ponto de interrogação, que arrasta tudo o resto com ele” Pág. 9
A história, se assim se pode chamar, é subjugada à vertente especulativa, reflexiva, imposta pelo autor.
“Eu faço o melhor que sei, mas é difícil pôr uma multidão [frases/ideias/personagens] em linha” Pág. 17
Claudio Magris, apontado sucessivamente como vencedor do Nobel da Literatura, rejeita em “Às cegas” o papel centralizador do enredo e concentra-se na reflexão sobre o indivíduo. A relação entre a individualidade e a contextualização histórica, a tirania das ideologias e a inevitável formatação pelas regras sociais são sucedidas de um ponto de interrogação.
A intertextualidade entre a sua obra e personagens como Ulisses, Orfeu, Eurídice e, principalmente, Jazão potencia os elementos que fazem deste livro uma viagem pela (in)sanidade mental do indivíduo.


Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
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12
Abr 12


“Garman & Worse”

Alexander Kielland é um autor norueguês do final do século XIX, que, juntamente com Henrik Ibsen, Bjornstjerne Bjornson (Nobel) e Jonas Lie, faz parte dos quatro escritores mais importantes dessa época.
A sua sensibilidade para as questões sociais está bem patente na sua mais importante obra, “Garman & Worse”, traduzida por João Reis e editada pela Eucleia Editora.
I
“E enquanto os anões esforçam os olhos para ver acima dele, o mar canta a sua velha canção. Muitos mal a percebem, mas nunca dois a entendem da mesma forma, porque o mar tem uma palavra diferente para cada um que se coloca cara a cara consigo” pag.7

Olhar para o mar e ouvir a sua canção implica silêncio, obriga a reflexão, e propõe o encontro da pessoa com ela própria, num processo de auto-avaliação. Kielland dota o mar de características humanas (prosopopeia): “ (…) e autêntico bate o coração, o último saudável num mundo doente” e adjectiva o humano de anão que anda num mundo doente. E se o faz, tal se deve à fuga do pensamento quando enfrenta o vazio do infindável mar. Por esta razão o Homem entrega-se à construção, ao trabalho, à frivolidade dos protocolos sociais. Quando Rachel Garman pergunta a Jacob Worse como pode ele viver sem querer quebrar a rotina, a tradição, o pensamento vigente, quando nele há tantas ideias novas, Jacob responde:
“- Tenho um remédio simples, que aprendi com a minha mãe, e que o seu pai também usava – o trabalho. Trabalhar de manhã à noite (…)” pag 157
O Leitmotiv de “Garman & Worse” é o confronto entre inovação e tradição. Ao longo do texto podemos acompanhar a impossibilidade de conjugar estes dois factores dentro do seio familiar e das ligações sociais – através da relação laboral e, intrinsecamente, das diferenças entre classes. O papel da mulher na sociedade e o papel da igreja contextualizam-se, também e de forma clara, neste confronto entre tradição e inovação.
A prosa é objectiva, equilibrada, e elimina o supérfluo. A perspectiva muda consoante o capítulo dando, desta forma, uma pluralidade de pontos de vista. A narrativa é sólida e, apesar dessa mudança de perspectiva, não perde, em momento algum, a sua coerência. O autor tanto se aproxima das personagens (ao ponto de não sabermos a quem é que pertence determinado pensamento, se à personagem ou ao narrador) como delas se distancia.
Os acontecimentos precipitam-se com a chegada de Richard Garman. O irmão do Cônsul Christian Fredrik Garman, dono da firma Garman & Worse, era um náufrago em terra. Tinha vagueado por muitos locais, conhecido muita gente e, no momento em que recebe a carta do irmão para voltar a casa, encontrava-se dominado pelo desespero.
Apesar de todas as possibilidades profissionais que Richard tem, quando chega a casa, ele escolhe a mais inesperada para quem o rodeia: “Sabes, Christian Fredrik, não consigo imaginar um cargo mais adequado a um náufrago como eu do que o de faroleiro aqui” pag. 11
 O náufrago em terra muda-se mais a filha para o farol. É nesta fronteira entre o mar e a terra, de cara voltada para o mar e costas voltadas para a terra, que Richard projecta o olhar sobre o infindável e deixa o mar entrar em si. Renovado, Richard está em casa.
É através de Gabriel Garman, filho mais novo do Cônsul, que assistimos a uma primeira batalha entre a tradição e a inovação. A renovação da indústria implica a actualização da forma de produção da empresa. Morten Garman, filho mais velho do cônsul, defende o fabrico de navios a vapor enquanto o Cônsul continua a defender a manutenção da construção de caravelas. A tradição abranda a inovação:” (…) Christian Fredrik – seguia de perto os seus passos [do pai], sempre de acordo com a máxima: o que faria o pai nestas circunstâncias?” pag. 26
A insatisfação de alguns trabalhadores, com evidente diferença de nível de vida, faz-se sentir. Por várias vezes são referidos o cheiro nauseabundo a peixe e a sujidade nas ruas, enquanto a mansão da família Garman, em Sandsgaard, tem todas as comodidades. A conformidade do trabalhador perante o patrão começa a diluir-se e, desta forma, são introduzidos os problemas dos estratos sociais e relações laborais:
- Não chega – gritava- matarmo-nos a trabalhar para estes tipos? Têm mesmo de ficar com parte de cada migalha que comemos e de cada gota que bebemos? Olhem só para as casas deles! Quem lhes deu tudo aquilo? Nós, avô!” pag. 49”
Novas palavras como “proletariado” são ditas sem serem apreendidas, por serem recentes, pelos mais antigos.
A inovação tecnológica é simultânea à alteração do comportamento da população.
II
A Igreja mantém o seu poder regulador sobre a Razão, a Moralidade e a Tradição. E é por esta tríade que o homem orienta a sua conduta e a mulher se sujeita a um papel secundário. Fru Garman, mãe do Cônsul, apesar de matriarca da família, não governa realmente a sua casa. Apesar da tradição se basear na antiguidade, a presença feminina não está sujeita a essa regra. É, constantemente, relegada para um plano secundário. Esta é a regra vigente e conservada, também pela igreja. Quando o director da escola, estudante de teologia com pretensões a Pastor, quer fazer o seu primeiro discurso na igreja é fortemente influenciado por Rachel, filha do Cônsul. Rachel não partilha as ideias vigentes. Rachel (e Jacob) é uma “livre pensadora”
Na igreja, após o discurso escandaloso e de matriz anticanónica de Johnsen, director da escola, sobre a falsidade do coração humano e a escolha do caminho da verdade em detrimento de rituais, o sentimento entre as mulheres tornou-se indefinido. Por hábito, procuraram nos homens a sua própria opinião: “Entre as mulheres, o sentimento parecia bastante indeterminado, e muitos olhares inquiridores eram lançados em direcção aos homens, na esperança de adivinhar qual seria a sua opinião, fosse de um pai, um marido, um irmão, ou de facto qualquer outra pessoa do sexo oposto com quem cada mulher tinha o hábito de formar a sua própria opinião” Pag.89
A pessoa mais procurada foi, no entanto, o deão.
Este personagem é o mais sedutor de todas as personagens do livro. Quando todos esperavam agressividade perante tal discurso, o deão respondeu com uma voz afectuosa, um sorriso nos lábios e uma retórica que seduziu o director a mudar de opinião.
Sempre que surge um problema, uma quebra na rotina estabelecida, a sedução do deão recompõe a ordem. Não o faz através da imposição ostensiva de regras de conduta, mas pela sedução e envolvência da sua capacidade oratória.
A tradição mantém-se através da repetição cega dos costumes, da formação da Moral, por parte da igreja e personificada no personagem do deão e, também, através da educação escolar que, aliás, se encontra muito ligada à igreja: “O professor propagava o seu tema favorito: que era impossível que os jovens adquirissem um conhecimento apropriado sem levarem pancada; e toda a formação superior desapareceria se não se impusesse um limite ao humanismo moderno, a que ele preferia chamar doença” pag.39
Jacob Worse e Rachel Garman representam a ruptura com a Razão e Tradição vigentes. Jacob, em conversa com Rachel, dá mais um exemplo da dificuldade em contrariar o que há muito está estabelecido. No seu caso, o pensamento inovador foi derrotado pelo conservadorismo. Ele havia fundado uma associação para a qual fora nomeado presidente. Devido aos rumores de falta de legitimidade por não ter havido eleições, ele próprio as propôs. Perdeu, surpreendentemente, para outra pessoa que nunca havia ido a nenhuma reunião. Mais tarde, descobriu que o deão havia influenciado a opinião das pessoas. Desta forma, o pensamento antigo derrotou o moderno.
Ao contrário da inadaptada Rachel, Madeleine, filha de Richard Garman absorveu as regras de etiqueta e as regras da sociedade, após alguns anos na cidade. Tudo isto apesar de ter morado 10 anos em Bratvold, no farol, e convivido com os pescadores. A relação de Madeleine com a localidade onde crescera mudou radicalmente “(…) nunca queria ir para a sua casa em Bratvold juntamente com o seu pai, mesmo que só por alguns dias. Parecia temer olhar outra vez para o céu” Pag.94
Tornara-se uma mulher mais activa, mais citadina e muito menos introspectiva, menos perto do mar.
Enquanto Madeleine fazia o percurso de adaptação à Razão vigente, Rachel Garman não cessava de se indignar com o papel da mulher na sociedade: “Tudo a parecia irritar [Rachel]. Não aguentava ouvir estes homens discuti-la e á sua posição como se fosse algum animal estranho, e sem nunca terem a preocupação de lhe perguntar a sua opinião” pag.67



III
Desde o início até quase ao fim do livro existe um navio em fase de construção. Se há uma materialização da tradição, em “Garman & Worse”, então ela existe através dessa embarcação. Apesar de muitas forças estarem envolvidas na construção, só o Cônsul sabe o nome que vai dar ao navio.
Era fulcral para o Cônsul que a embarcação estivesse pronta a zarpar em determinado dia. Mas algo nefasto acontece e que vai ter repercussões definitivas nos intervenientes. Um incêndio deflagra-se nas imediações. Apesar do filho do Cônsul propor novas medidas de combate ao fogo, o Cônsul recusa e continua a usar as velhas bombas de água, que não surtem qualquer efeito. “O jovem Cônsul adquiriu uma postura firme; parecia ouvir um eco de todas as desavenças entre eles. Era a velha história, o novo contra o velho, e ele respondeu sucinta e friamente: - Ainda sou o chefe da família. Volta e faz o teu dever como eu mandei” pag.123
A tradição da família afunda-se defronte de todos. No entanto, é o filho mais novo, juntamente com a força dos trabalhadores da empresa, que consegue salvar o que o Cônsul já dava como perdido. Soltando o barco para água, consegue extinguir o fogo que consumia a embarcação. Mais tarde, temos a oportunidade de saber qual seria o seu nome. O navio seria baptizado com o nome do pai do Cônsul, mas em vez disso, e de forma metafórica, é o filho mais novo a baptizar o navio: Fénix. E assim se transmite, para o presente e futuro, um passado renovado.
A problemática da clivagem entre estratos sociais é abordada, já nos capítulos finais, com um humor cínico e negro. Evitando desvendar mais do que o necessário, refiro-me à desigualdade entre pobres e ricos mesmo depois de mortos. Enquanto um cortejo fúnebre reúne grande parte da população, é acompanhado por uma orquestra e monopoliza as coroas de flores existentes, outro cortejo, bem mais simples, com uma única coroa de flores que sobrara em todas os estabelecimentos, espera, com o caixão pousado, defronte de uma cervejaria. Só pode entrar um cortejo de cada vez e este, mais pequeno e menos composto, tem de aguardar. Os sete palmos de terra que o padre apregoa serem uma medida de igualdade entre ricos e pobres não é, afinal, assim tão fiável. Os pobres têm o seu espaço para serem sepultados. O coveiro desvia velhas ossadas, que são desenterradas conforme se abre outra sepultura, e guarda-as num pequeno porão para dar lugar a outro pobre numa nova cova. O coveiro, pouco sensibilizado pela pobreza, afirma: “Os pobres dão tanto trabalho na morte quanto em vida. Nunca morrerão como pessoas respeitáveis, um por um, de vez em quando; mas morrem todos ao mesmo tempo, sabe, e então vêm para aqui e querem ser enterrados.” pag.152
IV
As ideias novas casam com a necessidade de mudança.
O diálogo entre Rachel Garman e Jacob Worse mostra, de certa forma, o caminho percorrido pelas personagens e, devido à universalidade de “Garman &Worse”, o próprio caminho dos leitores: Jacob afirma “Novas descobertas e experiências surgem a toda a hora, e dúvidas e questões escondem-se por baixo e minam toda a construção. Verdades aceites e bem estabelecidas são arrasadas, e aqueles que são incapazes de se adaptar aos novos tempos reúnem-se confusamente em volta da estrutura apodrecida, amaldiçoando a juventude e prevendo a destruição da sociedade” pag 157
Esta problemática mantém-se actual apesar de agora a velocidade dos acontecimentos ser muito maior. O Homem, actualmente, só tem capacidade de reacção perante a extraordinária mutação das tecnologias. A facilidade de acesso a muita informação, numa rapidez invulgar, tem efeitos sobre os Valores, sobre a Tradição e sobre a Moral A questão debatida ao longo de “Garman & Worse” encontra-se, ainda hoje, na actualidade. Apesar de em alguns aspectos poder ser considerado um livro datado, a universalidade em si existente permite que um século depois ainda seja uma obra de grande qualidade.
“ Todos se debatem cegamente em conjunto, enquanto a sociedade se entrelaça com um tecido de hostilidade, desconfiança, falsidade e hipocrisia” pag. 157
Madeleine volta a Bratvold e depara-se com o mar e, por consequência, consigo mesma…
“ Parecia que uma mancha de impureza repousara em si durante todo o tempo que estivera afastada de Bratvold; e agora que se encontrava novamente cara a cara com o oceano, parecia quase envergonhada por regressar” Pag.171
…enquanto Jacob Worse apela à emancipação da mulher.
“Não é muito fácil dizer antecipadamente qual deve ser o seu tema –disse ele- ; mas está claro que há infindáveis coisas que o mundo pode apenas descobrir com uma mulher, e que parece estar à espera de ouvir. Só lhe resta ter vontade” Pag.114
É difícil compreender como foi possível ter de esperar tanto tempo por uma tradução de “Garman & Worse” para português. Felizmente, essa espera terminou.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

publicado por oplanetalivro às 08:56

10
Abr 12


“Encontro à Beira-Rio”
Christopher Isherwood


Isherwood convida-nos, em “Encontro à Beira-Rio”,a observar o jogo de máscaras que ocorre durante o caminho de autodescoberta dos irmãos Patrick e Oliver.
A comunicação epistolar entre várias personagens permite-nos observar a condição de emissor e receptor dos dois irmãos, mas deduzir, somente, as possíveis reacções da mãe, mulher e amante de Patrick (irmão mais velho). Cabe ao leitor preencher as lacunas propositadamente deixadas pelo autor ao não dotar outras personagens de “voz” própria.
Apesar da diferença entre Oliver e o seu irmão, o caminho tem um fim comum, embora não declarado no primogénito: o autoconhecimento/ a auto-aceitação.
Oliver, visto pela sua família como um eterno inquieto, é seduzido a evoluir espiritualmente através de um percurso distinto do esperado na sociedade ocidental. Ao optar por uma educação ou formação classicista de Mestre-discípulo, dentro do hinduísmo, ele contraria a educação modular e complementar imposta pela contemporaneidade. A renúncia do “Ego” e, em consequência, do prazer físico, contrasta com a filosofia hedonista do seu irmão. A clivagem entre filosofias e respectivas condutas de ambos revela os obstáculos num caminho que, objectivamente, leva ao conhecimento do “self” e do respectivo relacionamento com a sociedade. O autor expõe, desta forma, a complexidade em si existente. Patrick e Oliver são manifestações, em certo grau, do seu próprio debate emocional e intelectual.
“Fujo de me comportar como Patrick, digo para mim mesmo que o seu comportamento é o mal, retiro-me à pressa para aquela triste e farisaica parte de mim que nada tem a ver com ele, é só minha, e congelo as ligações entre nós com o ódio. Patrick pode perturbar-me terrivelmente, porque pode fazer-me pôr em questão a forma como levo a minha vida” pág. 104
O que talvez seja o mais surpreendente é a manipulação do expectável e a confluição de diferentes posturas numa posição epicurista da vida.
Através de cartas e também, no caso de Oliver, de um diário conseguimos diagnosticar a precária construção emocional de ambos. Conforme o destinatário da mensagem escrita, a visão sobre o mesmo facto diverge e assiste-se à adaptação contraditória de perspectivas e emoções por parte da mesma pessoa.
A distância cínica da visão ocidental sobre o misticismo oriental, tão visível na perspectiva de Patrick, é prenunciadora da secundarização a que esta obra foi sujeita.
Através de uma estrutura narrativa simples, assente em duas vozes e sempre apresentadas como “eu narrativo”, Isherwood expressou em “Encontro à Beira-Rio”, sua última obra, as próprias convicções e dilemas emocionais e intelectuais.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com
publicado por oplanetalivro às 10:45

02
Abr 12

“Glória”

Vladimir Nabokov
Teorema


Vladimir Nabokov expõe em “Glória”, um dos primeiros romances do autor, a sua própria tragédia pessoal provocada pelas mudanças políticas que haveriam de mudar drasticamente o rumo social e político da “sua” Rússia. A revolução bolchevique obrigou-o e à sua família a sair da União Soviética. Posteriormente, ele viria a estudar em Cambridge e viver em Berlim, cidade onde haveria de escrever algumas das suas obras.
Estas experiências foram aproveitadas e transformadas em condições essenciais na caracterização biográfica e emocional do personagem principal, Martin.
O leitor está perante um romance de personagens, psicológico, e (deliberadamente?) escasso em dinâmica. A narrativa é habitada por personalidades (Sónia, Darwin…) que não intensificam, por contraste, as particularidades emocionais do personagem principal.
A evolução das características psicológicas de Martin poderia ganhar outro relevo caso fosse contrariada por acções ou personagens capazes de rivalizar na atenção que lhe é dirigida por parte do narrador. No entanto, esta situação é atenuada com a presença de Sónia, que vai ganhando relevo na “segunda metade” do romance.
Martin sonha com ela quando está longe, mas quando se aproxima, quando entra em contacto com Sónia, sente-se diminuído. No sentido inverso, rejuvenesce quando dela se afasta. O romantismo não se compatibiliza com a realidade.
Estruturalmente, a narrativa é dotada de uma constante mudança temporal, devido às persistentes analepses; suporta suspensões da realidade através do sonho, e assenta na irrequietude e cíclica movimentação física de Martin, que viaja de comboio para diferentes cidades e países. É nessa suspensão da realidade que as características de um certo romantismo se notam mais.
“Por vezes, quando contamos um sonho, amaciamo-lo, arredondamo-lo, embelezamo-lo aqui e além para o elevar, pelo menos ao nível do absurdo plausível (…)” Pág. 33
Um dos aspectos mais interessantes de “Glória” é a possibilidade dada ao leitor de se aproximar da percepção que Nabokov tem do mundo. Se pensarmos na língua russa como a sua língua materna, mas na língua inglesa como “matéria-prima” dos seus principais romances, deparamo-nos com diferentes perspectivas do mundo onde o próprio se debate. Se virmos a língua como um hábito imprescindível ao comportamento social, uma forma de representar o mundo e de moldar o pensamento, ou mesmo uma articulação de princípios cognitivos, podemos captar neste livro uma profundidade psicológica que irá ganhar ainda mais importância nas obras seguintes. E, de facto, a uniformidade é uma característica da ficção de Nabokov. O autor, sobre a homogeneidade temática, afirma que alguns autores são adjectivados de versáteis porque imitam diferentes autores. A originalidade artística só tem a si própria para se copiar[i].
Na verdade, há em “Glória” uma abordagem psicológica e uma deslocação física do tipo de personagens que voltaremos a ver, com maior complexidade e aprofundamento, no incontornável “Lolita”.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com



[i] In “The Art of Fiction” Nº 40
publicado por oplanetalivro às 09:18

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