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Fev 12
“A Curva do Rio” de V.S. Naipaul - Quetzal Editores


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“A escrita não está a serviço de um pensamento, como cenário realista bem conseguido que estivesse justaposto a pintura de uma subclasse social; ela representa realmente o mergulho na opacidade viscosa da condição que descreve” BARTHES, Roland “ O grau zero da escrita” pp. 67-68; 1997

 A narração, através de um “eu narrativo”, adopta uma postura analítica sobre o desenvolvimento do personagem/narrador, da sua relação com o meio que o envolve, e da sociedade em constante convulsão. Salim, o nosso narrador, tem uma visão tanto intrínseca como extrínseca sobre os acontecimentos que interferem, de forma directa e indirecta, na sua realidade. Ele é um inadaptado. E é a partir dessa condição que nos vai contando a sua experiência perante o “desconhecido próximo”:
“ A África era a minha terra, fora a terra da minha família durante séculos. Mas nós éramos da costa leste, e isso fazia a diferença. A costa não era verdadeiramente africana, ela era simultaneamente árabe, indiana, persa e portuguesa, e nós que vivíamos na costa, éramos na realidade gente do Oceano Índico. (..) Mas já não podíamos dizer que éramos árabes, indianos ou persas; quando nos comparávamos com esses povos, sentíamos que éramos gente de África” Pág. 21
Salim comporta-se como colonizado, apesar de ser africano e de se ter transferido, de modo voluntário, com o objectivo de prosperar numa nova geografia. Ele adapta-se às relações sociais já existentes e, de uma forma mais ou menos passiva, é nelas que tenta encontrar sentido e identificação. O ambiente tem mais efeito sobre ele do que ele consegue ter sobre o que o rodeia. Ao longo da narrativa, acompanhamos a imposição intrínseca e extrínseca da inadaptação psicológica, social e cultural. A sua personalidade sofre alterações devido a pressões exteriores. As constantes convulsões sociais, a violência, a corrupção, fazem emergir características psicológicas que, até ali, haviam permanecido longe da superfície. Assim, o nosso narrador debate-se com factos imprevistos que o levam a agir contrariamente ao que acredita. Uma nova realidade física obriga a uma nova realidade emocional. E a adaptação a ambas nunca chega a concluir-se. Salim depara-se com dilemas morais numa sociedade em demanda da sua própria psicologia colectiva.
Toda a complexidade inerente à interactividade social implica transformações de perspectiva e obriga a adaptações constantes com o objectivo de assegurar a mera sobrevivência.
A força colonizadora da Europa manifesta-se nas ruínas de pedestais sem estátuas e em edifícios decadentes. Apesar de não terem passado muitos anos sobre o fim da colonização, a deterioração da memória sobre presença europeia é muito rápida. E sem memória, sem história, os problemas repetem-se.
“ As pessoas viviam como sempre tinham vivido; não havia qualquer rutura entre passado e presente. Tudo o que acontecera no passado se eclipsara; só o presente existia; sempre o presente” Pág. 24
 A África de “A Curva do Rio” adopta a superficialidade dos costumes europeus e quer eliminar as ideias europeias enquanto tenta a aceitação do mundo ocidental. É nesta intensa e contraditória relação que acontecem guerras e revoltas.
“Ninguém usava os novos nomes [das ruas] porque ninguém se preocupava especialmente com eles. Aquele povo quisera apenas libertar-se dos nomes antigos, varrer para sempre a memória do intruso. Fazia medo, a violência daquela raiva africana, o desejo de destruir, sem levar em conta as consequências” Pág. 43

A proposta de Fanon[1] está presente na narrativa de Naipaul.

Fanon propõe-nos 3 fases na complexa relação entre as implicações culturais provenientes do colonialismo e os comprometimentos da luta anticolonialista:

-A fase da assimilação acontece quando o nativo assimila (hipoteticamente) a cultura do poder colonizador. A construção de “BigBurguer”, por parte de Mahesh, é um sintoma da absorção da cultura ocidental (neste caso, norte-americana). Enquanto Mahesh importava todas as máquinas, decorações, mesas e cadeiras dos Estados Unidos, lembrando McDonalds, um turista norte-americano saqueava um conjunto de máscaras características da região.

O estrangeiro leva o produto autêntico da região e traz o que é típico da sua cultura. Desta forma, cumpre-se o que o padre Huismans tinha afirmado: o fim da África africana e o êxito das influências exteriores.
Naipaul menciona muitas vezes a existência de o jacinto-de-Água no rio que banha a cidade. Esta espécie, oriunda da bacia amazónica, é caracterizada como sendo uma das piores espécies invasoras em todo o mundo. Quando em rios, como acontece neste caso, prejudica o fluxo natural da corrente, traz alterações bioquímicas, e prejudica todo o ecossistema. O rio adjacente à cidade do padre Huismans e do nosso narrador foi invadido por esta espécie aquática. As suas flores são lindíssimas, mas o prejuízo que traz é enorme. A ornamentação prejudica o equilíbrio natural da região.

-A fase da cultura nacionalista materializa-se através da procura da autenticidade nativa e reacção contra o colonizador.

Numa fase de expansão, orientada pelo “Grande Chefe”, presidente daquela parte de África (nunca nomeada), é construída a Cidade Nova, zona de apartamentos para os professores e um politécnico, onde estudava o africano do futuro. Esta cidade equivalia quase a um outro país: “Na nossa cidade, «africano» podia ser um termo injurioso ou que denotava desprezo; na Cidade Nova, porém, era uma palavra grandiosa. Aí, um «africano» era um homem novo, um homem a cuja construção todos se dedicavam afanosamente, um homem prestes a nascer (…)” Pág. 101

- Por último, a fase revolucionária e nacionalista. Aqui, o intelectual tenta inflamar o povo e despertá-lo para o que há de “primordial” na sua cultura. É a fase em que a “raiva africana” se transforma em violência. A mescla entre o que se pensa verdadeiramente africano e a imagética do povo colonizador, imposta ao longo dos séculos, é difícil (ou impossível) de ser clarificada. A confusão manifesta-se e o que realmente impera não é a cultura nativa nem a colonizadora, mas a tal raiva, a violência que sempre procura uma forma de se manifestar.
“Determinadas pessoas haviam perdido poder e tinham sido fisicamente destruídas. Isso em África não era novo; aliás, era mesmo a mais velha das leis da terra” Pág. 47
Paralelamente ao percurso colectivo, o caminho (individual) de Salim tem outras etapas[2]: Utopia – Distopia (desencantamento) – Atopia (reencantamento). Naipaul, no entanto, oferece uma saída deste círculo vicioso e acrescenta uma nova etapa: Fuga.
A utopia começa quando ele decide fugir a um casamento prometido e tenta concretizar aquilo que adivinhava para si mesmo:
“ O meu anseio não era ser bom, como mandava a tradição, mas ter êxito na vida”. Pág. 34
Ele compra a loja de Nazrudin, amigo da família, situada numa cidade (destruída) na curva do rio. Depois de um período de encantamento, a burocracia, a corrupção, a violência latente deterioram o seu optimismo e ele vê-se como um prisioneiro, e alguém, como muitos dos que ali moram, que tem a sua vida suspensa, interrompida.
É nesta fase que conhece Ferdinand, filho da feiticeira Zabeth, que fica aos seus cuidados para aprender inglês, a ler e a escrever.
Sem saber como educá-lo, será o seu criado (Metty) a ter influência decisiva na formação emocional e intelectual do rapaz.
O desenvolvimento do filho da feiticeira (oriundo de uma aldeia bem no interior do território) sugere o paralelismo com a nova geração africana e Salim pressente que os tempos vindouros serão muito maus. A atitude de Ferdinand não era compatível com a sua:
“O seu aspecto, naquele instante, era de fato terrível, assustador. Ocorreu-me então esta ideia: «Este há-de ser o seu inimigo a morrer.» E, associada a essa ideia, uma outra: «Esta foi a era que arrasou a cidade» ” Pág. 88
Ferdinand viria a ter uma acção decisiva no futuro.
A esperança ressurge com o crescimento da Cidade Nova, a poucos quilómetros da cidade onde vivia. Indar, amigo de infância, é destacado para o politécnico para ali leccionar e será o guia do narrador, tanto pela Cidade Nova como por uma forma nova de pensar. Quando Indar se vai embora, Salim já não é o mesmo.
A instável paz vai se deteriorando e aquele que fora a figura patriarcal da população é visto, cada vez mais, como um tirano igual a tantos outros. E o ciclo completa-se: paz, desencanto, revolta, destruição.
Salim, perante isto, toma uma decisão.

V.S. Naipaul, Prémio Nobel da Literatura (2001), desenha as características sociais e psicológicas da população da cidade situada na curva do rio que, por especulação e metonímia, podemos considerar comuns a populações em diferentes países africanos.

“A Curva do Rio” merece bem o tempo que lhe dispensamos.




Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com

[1] Fanon, Frantz “ The Wretched of the Earth”; pp. 178-179; 1990

[2] Mata, Inocência “ A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares comuns”; pp.50; 2003




A Bend in the RiverA Bend in the River by V.S. Naipaul
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publicado por oplanetalivro às 15:35

O meu texto sobre o novo livro de Helena Vasconcelos: "Humilhação e Glória"




Humilhação e Glória
Helena Vasconcelos
Quetzal Editores

O estudo de Helena Vasconcelos sobre a condição feminina, ao longo dos séculos, baseia-se numa considerável estrutura bibliográfica, na cultura da autora e na sua paixão pelo tema a que se propôs estudar.
A investigação elaborada procura fundamentar uma ideia concebida antes da própria pesquisa: A secundarização (humilhação) do papel da mulher na sociedade e a posterior emancipação e contribuição (glória) social.
As questões essenciais e merecedoras de análise são: “porque é que as mulheres demoraram tanto a tomar as rédeas das suas existências? O que é as impediu de mostrarem, em pleno, todos os seus dons e capacidades? Porque se deixaram humilhar e dominar?” Pág.14
O material recolhido é sujeito a uma interpretação apaixonada que filia conclusões vinculadas a uma causa.
“No entanto, a força de trabalho em Portugal é predominantemente feminina. Se, à semelhança de Lisístrata e das mulheres de Atenas no famoso texto de Aristófanes, escrito em 400 anos a. C., as mulheres, para além de greve ao sexo, se abstivessem de trabalhar, de tomar conta da casa e dos filhos, de tratar dos pais, mães e outros familiares a seu cargo, se decidissem cruzar os braços nem que fosse por uns minutos, o País, pura e simplesmente, pararia com elas. Convém que não esqueçamos este facto. Pág. 22”
Esta característica é compatível com os objectivos da autora. Segundo as suas palavras, não houve intenção de construir um texto académico. Desta forma, opta por apresentar o estudo numa “1ª pessoa próxima”. O leitor ou investigador entra no livro sabendo a perspectiva que foi adoptada na análise da documentação.
A construção do texto tem o seu logos em dois centros: diacrónico (história) e sincrónico (presenças que tiveram influência decisiva nos acontecimentos). A interdisciplinaridade é uma característica comum.
O leitor tem oportunidade de acompanhar a evolução da condição feminina ao longo de vários séculos, durante várias correntes filosóficas/literárias (Classicismo, Romantismo, Realismo, Modernismo/estruturalismo) assim como conhecer/aprofundar os conhecimentos sobre figuras tão importantes e diferentes como Woolstonecraft, Gertrudes Margarida de Jesus (“Primeira Carta Apologética em favor, e defesa das mulheres” antecipou “Vindication” de Woolstonecraft), Camille Paglia (contraponto de muitas teorias mais radicais), Virgínia Woolf…; na ciência, desde Hipácia de Alexandria a Madame Curie; em Portugal, destacam-se várias figuras (Maria Teresa Horta, Isabel Barreno, Maria Velho da Costa, Vieira da Silva… entre tantas outras) em diferentes épocas, contextos políticos e em diversas áreas.
Na construção de um cânone inserido no que se denomina “Estudos Femininos” foram excluídos, inevitavelmente, outros nomes importantes. A construção canónica é isso mesmo: um movimento de exclusão. No entanto, “Humilhação e Glória” é uma obra que não se encerra em si mesma, consegue ser abrangente e constrói várias pontes para outros autores e diferentes áreas.
Helena Vasconcelos propõe, com sucesso, um estudo interdisciplinar, diacrónico, onde consegue reconstituir a complexa interacção entre as características sociais inerentes à condição feminina e o relacionamento dessa condição com os movimentos culturais e espirituais de cada época. As individualidades sublinhadas ao longo do texto proporcionam ao leitor uma visão sobre movimentos de individualidade e de ruptura com o senso ou realidade vigente.
Poderemos estar presente, pela qualidade da argumentação e análise sociocrítica, perante um livro importante no âmbito dos “Estudos Femininos”

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com




Entrevista a "Força das Coisas":
RTP - A FORÇA DAS COISAS







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publicado por oplanetalivro às 15:21

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