30
Nov 11

“As Aventuras de Pinóquio”
Edição Arte Plural e Círculo de Leitores.

http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=4222

Quero, simplesmente, falar sobre um amigo de infância. O seu nome é Pinóquio, e tenho a certeza de que o conhecem

O livro “As aventuras de Pinóquio”, editado pelo Círculo de Leitores/Arte Plural, obrigou-me a interromper o texto que estava a preparar para esta crónica. A magistral história de Carlo Collodi encontrou as ilustrações que merece. Zdenco Basic fez um trabalho extraordinário.
Há personagens que sobrevivem ao tempo e ultrapassam, inclusive, o nome dos próprios autores. Lembramo-nos de Pinóquio e de Peter Pan. Lembramo-nos também, embora com um enorme desvio interpretativo, de Alice e de Moby Dick. Menos pessoas lembram-se ou sabem os nomes dos seus criadores. E o que será mais importante? Estas personagens habitam o nosso imaginário de crianças, continuam a viver connosco na idade adulta e, certamente, já entraram ou irão entrar no imaginário dos nossos filhos.
Ao olhar para a capa, vejo que, na verdade, a partir do momento em que peguei no livro não mais tive hipótese de deixar de o ler, de o sentir nos meus dedos e encantar-me com as palavras e os seus desenhos. E isto porque Pinóquio não deixa de olhar para mim. O seu olhar triste, a sua mão estendida enquanto se mantém sentado, no teatro de marionetas, de perna flectida, é um pedido irrecusável para o levar para casa.
As cordas que o prendem são as nossas e a liberdade que ele almeja é a nossa também. Talvez por isso ele tenha ficado connosco à espera que nos libertemos dessas amarras e nos deixemos ser …crianças. Há muito pouco a ganhar quando se perde a ingenuidade.
Gepeto, o velho e humilde carpinteiro, é uma figura paternal, criadora, que projecta, de alguma forma, os seus defeitos naquele boneco de madeira. A sociedade faz o resto. E é ao percorrer essas dores de crescimento que Pinóquio nos emociona, nos faz acompanhá-lo porque, talvez, sejamos nós no seu corpo, ou os nossos filhos que esperam a nossa ajuda. Eu gosto do Pinóquio e não me interessa a crítica literária para nada, quando revejo um amigo que não cresce, um amigo que sempre esteve comigo para me ajudar a percorrer outras palavras, outras imagens, outros mundos mais libertos da ditadura imposta pelas limitações dos nossos olhos.
Eu ia escrever sobre campos de concentração…mas o Natal está a chegar e vou convidar o menino Pinóquio a sentar-se junto dos presentes e dos chocolates. Ficará ali sentado, enquanto uma criança anda a tentar perceber o conteúdo dos embrulhos e a comer, clandestinamente, as bolas de chocolate penduradas na árvore de Natal. Estará connosco até porque nunca deixou de estar.
Zdenko Basic construiu imagens que honram o texto. Tudo é magnífico dentro do livro. Há uma presumível influência de Tim Burton nos seus desenhos: a obscuridade, a expressão corporal, a capacidade de as figuras emanciparem-se das palavras e, por si, contarem a história. A imagética remete para várias influências. Se a capa nos transmite um pungente pedido de acolhimento, a contracapa é sublime: Gepeto, tal como em “Criação de Adão”, de Michelangelo Buonarroti (baseado em Genesis, 1:27, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança), aproxima o seu indicador da sua criação.
Por estas razões, “ As aventuras de Pinóquio” oferecem vários pontos de abordagem: a leitura da adaptação do texto de Collodi por Stella Gurney, a fruição das ilustrações de Zdenko Basic ou…tudo em simultâneo. Assim, qualquer criança, ou qualquer adulto que ainda seja uma criança, pode adoptar este Pinóquio e acompanhá-lo da forma que quiser.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com





publicado por oplanetalivro às 10:29

25
Nov 11

Pulseira Electrónica





Eu não seria mais feliz sem pulseira electrónica. Afastei as pessoas, fechando-as do lado de fora.
Gosto da inércia. É com ela que me dou bem e a ela sou militantemente fiel. A inércia permite poupar palavras, economizar movimentos.
A minha liberdade existe fora do espaço público.
Em casa, o murmúrio de um casal e o guinchar, semanal, da cama no andar do lado atravessa a parede do meu quarto. Quando o marido está no emprego, deito-me na minha cama e ouço a experiência religiosa e tão maternal daquela esposa, tão devota, quando chama por Deus e pela mãe em gritos anunciadores.
A minha janela é uma tela de cinema, onde vejo a estéril comédia inquieta das pessoas. Dentro de casa, mantenho-me exterior a tudo o que é mundano. Mas foi o que fiz lá fora que me permite estar aqui dentro.
Naquele dia, algo se rasgou em mim. Tinha acendido um cigarro enquanto olhava para a rua. A janela do apartamento dela oferecia uma vista ampla. Estava muito transpirado e não vesti mais do que as calças. Ela levantou-se, satisfeita, passou as mãos pelo meu peito e beijou-me no pescoço. Um arrepio assaltou-me o sossego e escorregou pelo meu corpo.
«Não fumes aqui»
«E se eu abrir a janela?»
«Não sejas tonto. Está frio e sabes que o cheiro fica dentro de casa»
«És castradora»
«Hum…», as mãos deslizaram pela minha barriga, «não me parece faltar nenhum bocado»
Vesti-me enquanto ela estava na casa de banho e saí com o cigarro na mão.
Há nos elevadores antigos uma incompatibilidade entre a saída e a entrada. Entra-se por uma porta, dá-se meia volta e sai-se por outra. Os elevadores modernos são mais económicos. Saímos pela porta por onde entramos.
Carreguei no botão de chamada, carreguei novamente, bati na porta do elevador, mas não havia qualquer intenção de o mesmo subir. Resolvi descer as escadas e, sem esperar mais, acendi o cigarro ainda dentro do prédio.
A grade, que tem de ser puxada depois de a porta fechar, ainda deveria estar aberta. O elevador nunca subiria. Desci até ao rés-do-chão e quando me preparava para fechar a grade, assustei-me com o velho que estava lá dentro. De perfil para mim carregava insistentemente no botão sem surtir qualquer efeito.
«Desculpe…»
Ele não ouviu e julguei ser impossível não me ter visto.
«Desculpe…»
«DESCULPE», gritei e toquei-lhe no braço.
Virou-se muito devagar e encostou os óculos ao rosto. Um tubo no nariz permitia que respirasse. O outro braço ficou imóvel, sem vontade, ao longo do corpo. Reparei numa pequena bilha de oxigénio que ele deveria transportar como se de um cachorro se tratasse.
«A GRADE ESTAVA ABERTA». E puxei-a com força. A porta do elevador fechou-se. Fiquei a aguardar que subisse. O silêncio permitia ouvir a pesada respiração. Esperei. Quando ia abrir a porta para ver o que se passava, o elevador soluçou e subiu. O cigarro fora comido pelo lume até ao filtro. Esmaguei-o num canto da parede, deitei-o no lixo e acendi outro. Chovia. Não estava com vontade de me molhar por causa de um cigarro, mas não queria deixar de o fumar. Subi dois lanços de escada e refugiei-me no escuro.
A ponta do cigarro iluminava-me o rosto e a mão cada vez que o levava à boca. Ritualmente, nascia no escuro uma fugaz auréola de luz. Depois, a penumbra escondia-me, outra vez. A porta da rua foi aberta e bateu com estrondo quando se fechou. Espreitei e vi um homem de fato, sem o rosto visível, e percebi que haveria problemas. Subi mais um ou dois degraus, mantendo-me sentado. Ouvi alguns passos enquanto subiam as escadas…
«Cheira a tabaco»
…para depois deixarem de se ouvir. Reconheci aquela voz. Era o marido. Se não fosse pelo cigarro, teria sido apanhado em casa dela e na cama dele ainda a cheirar a sexo e ao corpo da sua mulher. O cigarro salvou a minha integridade física.
Se cumprisse com as suas funções, eu não seria obrigado a cumpri-las por ele. As relações abrem brechas, e é nelas que eu entro. Todas têm os seus pontos fracos. Eu aproveito o melhor de todas, sem obrigações, sem fidelidade, emprestando o corpo em troca de outro corpo. E fim. Nada mais do que isso. As obrigações são para os maridos e não para mim. Quando todos as cumprirem, eu sou aliviado desse trabalho.
Assim que ele entrasse no elevador, eu sairia do prédio. Tinha deixado o telemóvel e carteira dentro casaco, ainda pendurado numa cadeira da sala. Ser apanhado implica drama, gritos, ameaças e, possivelmente, confronto físico. Dá muito trabalho. Não estava e não estou para isso.
O elevador subiu e imediatamente desceu. Escondi o cigarro para não espalhar muito cheiro. Não ouvia nada a não ser o soluçar metálico do elevador. A porta foi aberta, a grade puxada, mas não o ouvi a entrar. Esperei e concentrei-me em decifrar os sons. Duas pessoas. Os sons eram distintos. Um guinchar de rodas, um cumprimento, um compasso de espera, a grade a fechar e o elevador a subir.
Levantei-me e espiei o Hall de entrada do prédio. O velho estava novamente no mesmo sítio. Parecia confuso, apoiado no carrinho que transportava a bilha de oxigénio.
A bilha estava à sua frente e ele apoiava as mãos no carrinho, tentando perceber o que havia acontecido. Olhou à sua volta, encostou os óculos à cara, a sua mão tremia muito e a sua boca continuava amordaçada pelo silêncio. A sua cabeça inclinou-se em desistência. A mão direita desceu o rosto e parou sobre o nariz.
Ele não conseguiu sair no seu andar e caminhar para sua casa. Mal tinha chegado, o elevador desceu sem ele perceber que estava a voltar ao ponto de partida. A sua mão estava sobre o seu nariz, sobre o tubo. Puxou e arrancou-o das narinas. A bilha estava no limiar da primeira escada.
Fiquei inquieto. Teria de o socorrer, mas isso implicaria ser detectado pelo marido.
O peito estava ansioso devido à falta de ar.
Sentei-me, novamente, nas escadas. Pensei em correr e sair antes de ele cair puxado pelo carrinho.
Fechou os olhos. As mãos apoiaram-se nas pegas metálicas.
Apaguei o cigarro.
As rodas estavam quase a cair.
Levantei-me para correr.
Arrastou os pés para trás, meteu o tubo no nariz, o peito acalmou.
Não conseguiu quebrar a forçada ligação que o mantinha agarrado pela vida. Era um movimento que haveria de romper com um estado lastimável para entrar num período de descanso. Ele procurava quebrar a visceral inércia do corpo em tomar nas mãos a decisão de se soltar. O velho estava preso em si mesmo.
Corri escada acima para perceber em que andar morava. Um, dois, corri mais um pouco, três, continuei a subir, até pararmos no andar imediatamente inferior àquele de onde eu tinha saído e o marido entrado.
Escondi-me e esperei que o velho abrisse a porta. Apareci rapidamente junto dele e agarrei-o pelo braço. O meu peito arfava mais do que o dele. O que estava eu a fazer? O que é que pretendia com aquilo? Entrámos e fechámos a porta. Do hall consegui ver o quarto. Dirigimo-nos para lá. Ele largou o oxigénio. Fui eu quem empurrou o carrinho. Deitei-o na cama com muito cuidado. Não queria que se magoasse. Não ofereceu resistência.
Fiquei a olhar para ele, sem sentir o tempo a passar e sem saber o que fazer. Sobre a sua mesa-de-cabeceira, estava uma fotografia do casamento e outra do que presumi ser do seu filho. Pediu-as. Eu coloquei-as sobre o seu peito. Fechou os olhos, arrancou o tubo do nariz e agarrou as fotos com ambas as mãos. Eu teria de cumprir com a minha parte. Tirei o tubo que passava por cima de ambas as orelhas, puxei-o e pousei-o sobre a bilha de oxigénio. Toquei-lhe nas mãos, mas ele não abriu os olhos. Empurrei o carrinho para a divisória mais distante do quarto. Voltei para ver o seu corpo imóvel sobre a cama e saí de sua casa.
Ainda não tinha fechado a porta quando ela apareceu com o meu casaco e o meu telemóvel nas mãos. Descera as escadas empurrada pelo medo. Eu não disse nada: Ela não disse nada. Entrei no elevador, já com o casado vestido e o telemóvel no bolso, mas ainda a vi entrar em casa do velho. Caminhei para aqui, acendi outro cigarro e esperei que a polícia aparecesse.
Eu gosto da polícia. Foram eles que me ajudaram a estar aqui. Gosto dos juízes, também. Foram eles que me ofereceram esta pulseira.
Chove. Adoro tempestades quando estou em casa.


Mário Rufino
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23
Nov 11

“Não Humano”
Osamu Dazai (pseudónimo de Tsushima Shuji)
Eucleia Editores

I
“A minha vida é vergonhosa.
Não consigo sequer imaginar como deve ser viver como um ser humano” pag.13

Osamu Dazai criou em “Não Humano” (e em outros livros) um mundo estranho e inóspito. Yozo, personagem principal, representa o que mais há de primário no ser humano. Ao entrarmos em “Não Humano” partilhamos os medos e obsessões do próprio autor. A sua vivência pessoal, a tentação contínua que o puxava para a morte (concretizado num duplo suicídio com a sua amante), as drogas, o álcool, sexo, tudo é exorcizado perante o leitor de uma forma honesta e, em consequência, cruel. Este tipo de ficção dita confessional levou a que o autor seja considerado um dos principais autores japoneses do século XX.
O que mais impressiona em “Não Humano” não é a descrição de violência física ou mesmo a tortura psicológica. O que mais impressiona neste livro é a indiferença à dor própria e alheia. A estrutura moral e social é outra, se é que existe. Yozo está sempre à margem das emoções (excepto de um medo primário de animal), não se envolve socialmente e vê o sentimento como um sintoma de doença.
“ (…) alguns anos mais tarde, observei, em silêncio a violação da minha própria esposa.
Tentei, na medida do possível, evitar envolver-me nas complicações sórdidas do ser humano.” Pag. 61
A personalidade é escondida atrás de inúmeras brincadeiras, palhaçadas segundo o próprio, impedindo o “outro” de o observar, de o conhecer. É uma vida representada, irreal.
O suicídio é uma obsessão pela qual se deixa seduzir por duas vezes. A primeira vez que se tenta suicidar, Yozo/Osamu é resgatado por um barco de pesca. Não o tentou sozinho. Uma mulher saltou com ele e afogou-se. Ele jamais conseguiu ultrapassar o sentimento de culpa. A necessidade/capacidade do autor se desnudar emocionalmente perante o leitor é autêntica e mostra a singularidade deste livro. “Não Humano” é um mundo à parte.
 A simbiose entre ficção e realidade proporciona uma viagem da qual não queremos sair.
O percurso de Yozo é, em essência e nos principais acontecimentos, paralelo ao de Osamu Dazai.
É importante mencionar que, ao analisar a estrutura do romance (confessional), o narrador não chega a conhecer a personagem. Ao sabermos que o enredo é muito moldado aos acontecimentos da sua vida, podemos especular que há, pelo menos, duas perspectivas no autor: Aquele que sofre e o que se analisa. E a separação entre ambos é dramática: “Nunca tinha visto tão impenetrável rosto num homem” pag 12

Poucos autores conseguem criar mundos diferentes, livros que causam impacto no leitor.
 O mundo “Não Humano” de Osamu Dazai é um desses mundos literários criados para nos abanar e, estranhamente, seduzir-nos a percorrê-lo e acabar a viagem.
“Tudo passa.
Essa é a única coisa que achei assemelhar-se a uma verdade na sociedade dos seres humanos onde até agora vivi como se num inferno.
Tudo passa” pag. 122

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com



Não HumanoNão Humano by Osamu Dazai
My rating: 5 of 5 stars


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publicado por oplanetalivro às 10:13


“Por Este Mundo Acima”
I
“A amizade é um amor transfigurador e potente. É uma arma.”
Pag. 127
Patrícia Reis oferece-nos um livro optimista, onde a amizade é a verdadeira reconstrução num mundo destruído. No seu 6º romance, transporta-nos para um mundo pós apocalipse e arruinado em estruturas e emoções. A sobrevivência é imperiosa e o Homem regride à sua condição de animal.
Nas primeiras páginas, a autora demonstra que existem relações produtivas e explícitas (intertexto) com outros textos. Neste caso, existem relações identificadas com textos de Fausto, «Por este rio acima», e com Brecht, «Do pobre B.B.». Por ser um livro que aborda directamente o papel da literatura na sociedade, existem outras aproximações a outros autores com a subtileza exigida, ou não, pela própria autora. “Por este mundo acima” é um livro que dialoga com a literatura; não é fechado em si mesmo, mas antes abre possibilidades de leituras a outros livros. De outra forma, pode-se afirmar que existe abertura do texto ao pensamento sobre a historicidade e sociedade onde o Homem se insere e influencia.
A narração é sobretudo psicológica e não pude deixar de me lembrar de “Fome” de Knut Hamsun e de “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago (Saramago começa, no entanto, com uma impossibilidade, ao contrário de Patrícia Reis). Assim sendo, a narração ocorre na 1ª pessoa do singular. Esta perspectiva confere uma maior proximidade do leitor ao pensamento do personagem Eduardo (principal narrador). A sua visão sobre as outras personagens será a nossa, também, uma vez que não existe uma entidade omnisciente e concretizada numa 3ª pessoa. No entanto, através da estratégia narrativa de uso de cartas/apontamentos (aqui temos o diferimento da mensagem que abordaremos mais à frente) a autora dá-nos a oportunidade de estarmos mais próximos das emoções e ideias de uma entidade essencial no livro: Sofia. É sobre ela, não exclusivamente mas principalmente, que incide o espírito de tolerância das outras personagens, individualmente e como grupo. É por este meio que descobrimos os acontecimentos da sua vida que influenciaram a sua formação emocional. A aceitação das suas características e o amor que todos sentem por ela é a chave de leitura deste texto. É este tipo de amor que pode levar o Homem à sua salvação. A relação entre eles é de longa data: “ Há mais de trinta e tal anos que falamos das listas do Eduardo” pag.79. E a interdependência emocional é partilhada por todos.
Mais do que um texto musical, construído com frases mais longas interrompidas por frases mais curtas originando mudanças de ritmos, diria que o texto é, sobretudo, fílmico devido à construção de imagens fortes e sugestivas.
A nível temático, o texto relaciona-se com os factores externos (contexto) a si próprio, fundamentando a sua produção, recepção e interpretação em acontecimentos possíveis. Nunca ficamos a saber o que realmente aconteceu. Nem é importante. O que o texto nos transmite é a ruptura com um passado (contexto situacional), um apocalipse que reduz o ser humano à sua essência, ao seu instinto de sobrevivência (universo simbólico).
“O meu corpo estremece. Não o controlo. Vejo as mãos suadas e tento continuar. Sou um animal. Regresso a isso” pag. 126
“É fundamental deixar de pensar”pag.124
Posteriormente, é sobre este movimento niilista que se constrói a salvação, a aceitação e, essencialmente, a elevação do melhor do Homem: A amizade como amor, como dedicação ao próximo em detrimento das próprias necessidades (visão do mundo). Segundo Levinas, o altruísmo, a decisão de colocar o Outro em primeiro lugar pode atenuar o terror da existência. Essa é a nossa transcendência. É esse terror que existe ao longo do livro de Patrícia Reis e é o amor, composto por altruísmo e inclinação para o Outro, que o pode atenuar, sem o derrotar.

II
O homem constrói, permanentemente, narrativas. o Homem constrói um texto narrativo quando fala do seu percurso de vida, da história clínica, ou quando conta algo a alguém. Assim sendo, não pode viver sem a produção e recepção desses mesmos textos. Eduardo tem essa percepção e insiste, permanentemente, em recordar/narrar os acontecimentos passados e, principalmente, dar a conhecer a sua memória, os acontecimentos que o marcaram, a Pedro.
“ Ele fazia lista de livros que era importante circular. Livros luminosos que, não sendo lamechas, nos revelavam a vasta matéria dos sentimentos que definem a condição humana”pag.164
Segundo Aguiar e Silva (1990), « a narratividade encontra-se intimamente correlacionada com o conhecimento que o homem possui e elabora sobre a realidade- o Génesis pode-se considerar, sob esta perspectiva, como a narrativa paradigmática e primordial -, devendo ser sublinhado que lexemas como “narrar”, “narrativa” e “narrador” derivam do vocábulo narro, verbo que significa “ dar a conhecer”, “tornar conhecido”, o quel provém do adjectivo gnarus, que significa “sabedor”, “que conhece”, por sua vez relacionado com o verbo gnosco(pp. 201

A narração é indissociável do tempo. Uma característica interessante de “Por este mundo acima” é o facto de a narração ocorrer no futuro, no espaço de um mundo possível, viajando entre o passado (tempo presente do leitor) e o presente do narrador (tempo futuro do leitor). Entre os vários marcadores temporais que nos fornecem essa informação, além do sistema verbal, há um que pretendo sublinhar: A referência ao próprio livro de Patrícia Reis remete-nos à actualidade e indica que ele narra no futuro. E este aspecto é intrigante porque um texto escrito é uma forma de diferimento da mensagem. Através da escrita pode-se perpetuar, ou pelo menos assegurar a permanência no tempo, da mensagem. O personagem adjectiva o livro de “datado”, isto num diálogo sobre o Facebook , o MSN e o Youtube. Ou seja, podemos utilizar esta referência como “ a leitura do texto”, necessariamente mais próxima desse futuro possível; ou como a “edição do texto”, mais afastado desse futuro apocalíptico.
A narração situada no futuro levanta uma outra característica importante e coerente com a temática de “Por este mundo acima”: A presença do verbo “Ser” no futuro é uma vitória, ainda que escassa e ténue, sobre a morte. E o texto é isso mesmo: uma narração no futuro que encontra os seus alicerces no passado para, com esperança e renovação, continuar a adiar a morte definitiva dos valores culturais do Homem e, por fim, dele próprio.
A morte da memória ou a ignorância invalida a continuação da história. Analise-se a conjugação verbal da seguinte frase: “O homem da gabardina bege terá uma história e eu gostaria que alguém me contasse tudo em pormenor” pág. 93
A probabilidade desce do futuro imperfeito até ao imperfeito do conjuntivo… porque não há ninguém para contar.

III
“Voltámos ao princípio e até temos um livro para nos guiar” pág. 157
A reorganização social começa quando Eduardo encontra uma criança: Pedro. E devido ao poder transformador deste personagem, a autora divide o tempo em antes e depois do apocalipse:
“O caos aconteceu quando ele andava pelos quatro anos de idade, quase cinco. Fizera os 8 há dois meses”. Pag.114
Pedro é um recomeço, é um exemplo de generosidade num mundo destruído pela falta de comida, de água, de higiene e falido de cooperação e altruísmo: “Ele parte outra bolacha em quatro, desajeitado, e oferece-me dois pedaços” Pag. 119
Pedro incentiva Eduardo a quebrar o seu medo de convivência, de partilha de um espaço e diálogo com outros sobreviventes. E assim conhecem Miguel, jornalista, que vagueia pela Península Ibérica transportando notícias. Este personagem, aparentemente secundário, tem um papel importantíssimo na história: Ele é o responsável pela interacção entre os povos, pois é ele que transporta as notícias sobre os outros, os sobreviventes. Miguel é o mensageiro (apóstolo?).
“ A sua vida resume-se a ter estado sozinho, a recolher histórias para depois partilhar. Não criou raízes, não se deixou ficar num qualquer outro lugar. Partiu à procura de algo de melhor que possa, um dia, trazer de volta uma certa ideia de humanidade” pág. 161,162
A reorganização vai-se consolidando. Os anos passaram e com eles veio a capacidade da sociedade se organizar. São mencionados progressos em países distantes.
Pedro descobre as caixas com as recordações escritas de Eduardo. A memória de Eduardo sobrevive, através de várias caixas com textos que foi armazenando desde a infância, na interpretação e na memória de uma criança. A memória individual é transmitida, desta forma, para as mãos e memória individual de Pedro. Mas não chega. Era imperativo a sociedade, que tem a força de uma personagem, manter a sua memória colectiva de forma a não repetir os erros do passado:
“ Decidiram passar a biblioteca da avó de Eduardo para um centro cultural, para estar sempre disponível, para ser a memória de todos” pag.180.
Pedro começa a recriar o alfabeto, primeiro passo para a impressão em papel, e, além do livro de Sebastião, outros livros foram escritos e difundidos pela nova sociedade que emergia dos escombros. Miguel, o jornalista, fala com Eduardo sobre a escrita de um novo manuscrito, uma história sobre o presente, a nobreza, onde a linha do Bem e do Mal se distingue (O Novo Livro/Testamento). A revisão do livro foi a última tarefa de Eduardo.
- O livro como salvação
 Na cultura judaico-cristã, como afirma Victor Aguiar e Silva (1990), texto significa obra escrita, o livro, obras religiosas detentoras de autoridade. Na idade média, texto significa a obra do autor, ou seja, obra da pessoa que exerce autoridade. Até ao século XXI, o termo texto não apresenta uma mudança de significado, embora tenha ganhado alguma ambiguidade semântica.
A autoridade emana do livro de Sebastião. É uma obra-prima, segundo Eduardo, e, mais do que isso, é o livro que transporta o passado recente para o futuro. É a continuação temporal, a passagem cultural do que aconteceu antes do acidente. Pedro, já mais velho, é muito céptico em relação a esta hipótese: “Não é um livro orientador, é uma ficção e isso é claro, é uma parábola do tempo em que foi escrito e um achado futurista adequado às circunstâncias» pág. 157
E numa frase simples e ingénua interroga o leitor e o próprio texto: “Voltar ao princípio? Será possível? O que é o princípio?” pag.157
Estamos perante a dúvida a que Steiner, em “Gramáticas da criação”, responde: “Já não temos começos”. Mais: Nas palavras de Pedro, há um reflexo das dúvidas do Homem em relação aos Evangelhos, ao livro orientador e fundador da moral cristã. É no livro de Sebastião, hipotético pilar da refundação social, que incide o debate entre Pedro e Eduardo.
Este livro representa um caminho, individual e/ou colectivo, para o sentimento mais nobre do Ser Humano: Bondade.
“É urgente ensinar a partilhar, Pedro. Para não voltarmos ao mesmo. A Sofia, o Jaime e o Lourenço sabiam o que era bondade. Não por serem bondosos, repara, mas por o saberem distinguir e praticar no dia-a-dia sem se fazerem notar”
Pág. 170

Bibliografia:
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Lopes (2000) “Dicionário de Narratologia”, Coimbra, Almedina
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de (1990) “Teoria e Metodologias Literárias”, Lisboa, Universidade Aberta.






Mário Rufino



publicado por oplanetalivro às 10:08

22
Nov 11

Hollinghurst: «As crianças já não lêem romances completos»

Texto: Mário Rufino

Alan Hollinghurst fala como se estivesse a escrever. Pensa muito, escolhe as palavras com cuidado e constrói frases certeiras. A concentração que impõe na procura da melhor resposta revela-nos uma pessoa calma, educada e com grande sentido de humor. Sobre a mesa pousou uma folha e a sua pergunta revelou o seu sentido de organização: «Diário Digital, correcto?». No fim, quando lhe perguntei se tinha mais entrevistas, mostrou-me a folha e apontou as horas e o nome dos jornalistas com quem ia falar. 
«O filho do desconhecido», ditado pela Dom Quixote, é um livro onde o não-dito ocupa um espaço fulcral na interpretação da narrativa. A estrutura do romance, composta por cinco capítulos, e a contínua mudança de ponto de vista exigem a dedicação e a concentração do leitor. Os grandes temas do livro estão em fundo, dependem do silêncio e das versões contraditórias das personagens. «O filho do desconhecido» não rompe com a temática dos livros anteriores, mas vai muito além da problemática da sexualidade/homossexualidade. São abordados alguns aspectos dos quais dependem a personalidade: a memória, a aceitação, a interacção social e a ditadura do senso comum/regras da sociedade. Desta forma, Hollinghurst apresenta um texto que nos interroga sobre quem somos e qual é a base da nossa personalidade. Antes de começarmos a conversar sobre o livro, questionei-o sobre se haveria alguma pergunta que ainda não lhe tivessem feito, pois já tinha sido intensamente entrevistado. Foi a primeira gargalhada de uma conversa com boa disposição… 

O seu livro vai muito além do tema da sexualidade. Existem vários temas em «O filho do desconhecido» que são muito interessantes, principalmente a dialéctica entre memória (reinterpretação), interpretação e facto. O que é que o motivou a escrever sobre estes temas? 
Há assuntos sobre os quais tenho vindo sempre a escrever, como a vivência gay no presente e no passado, mas este livro tem uma nova dimensão de abertura e incerteza para mim. Tornou-se um assunto inevitável para mim por estar a envelhecer. Tenho pensado mais sobre a minha própria memória e é extraordinário o que pareço não ser capaz de recordar quando comparo memórias com pessoas com quem partilhei algo no passado. Nunca estive muito interessado em voltar à escola, a reuniões, mas fui a uma e as pessoas vieram repetidamente ter comigo e disseram «eu lembro-me daquele tempo em que fizeste…» isto ou aquilo. Eu tinha quase a certeza de que estavam a pensar noutra pessoa. Por vezes, eu sabia que estavam a falar de uma pessoa diferente. O que se faz com um elogio que, de facto, não se merece? Eu não tenho nenhum plano para isso, mas se eu fosse escrever as minhas «Memórias», quão confiável seria? O que colocaria lá? Houve um período da minha vida, quando estive oito anos em Oxford, em que mantive um diário detalhado, todos os dias. Foi [época em Oxford] incrivelmente aborrecido. Eu não tinha uma vida! Eu passava a maior parte da minha vida a escrever o meu diário. Quando vim viver para Londres, há alguns anos, e comecei a ter uma vida, parei de escrever o meu diário. Tenho esta situação paradoxal de ter um período muito aborrecido da minha vida muito bem documentado.
Penso no que são os materiais sobre os quais alguém decide escrever/basear as suas «Memórias»: cartas ou um diário, se o guardaram, que as pessoas moldam ou seleccionam… Em relação às próprias memórias, elas são muito falíveis e manipuláveis. Tornam-se «ossificadas» numa fase bem inicial. Ocasionalmente tem-se aquela coisa linda de se lembrar de algo absolutamente «fresco» que se havia esquecido completamente. Conforme vou envelhecendo, vou pensando nisto como uma reconstrução do passado.


A nossa personalidade depende das nossas memórias e quando elas mudam ou nós vemos que não são fiáveis então…. Quem sou eu? 
Exactamente! 

Cecil está muito além do seu tempo. Ele aceita a sua sexualidade, tal como um homem na idade moderna. Talvez seja por tudo isto que ele tenha tido uma enorme influência sobre eles. 
É interessante que diga isso. Cecil parece assim no mundo de «Dois Acres», mas no mundo de Cambridge, de onde ele veio, ele é muito mais típico; no mundo desta secreta sociedade famosa, «Os Apóstolos», para onde George é levado por Cecil. Ele fez questão de falar, candidamente, sobre a sua própria sexualidade, encorajando outros a fazer o mesmo, «explodindo» aquela mentalidade vitoriana sobre estes assuntos. Cecil era um espécimen daquela geração de Cambridge.

A certo ponto lê-se: «Tal como as profundezas da poesia de Tennyson, Cecil tinha muitas vozes». Como falámos anteriormente, ele tem um conhecimento dele mesmo que não se vê em George nem em Daphne, ainda adolescente. 
Sim. [ri-se] Provavelmente é uma questão de autoconfiança social, não é? A suposição de que tudo o que lhe apetece fazer está bem. 

Quando eles estavam a jantar [em «Dois Acres»], George estava sempre com muito medo do que Cecil poderia dizer… 
Cecil é alguém que sabe comportar-se socialmente, mas ele [George] sabe que [Cecil] tem este outro lado, que parece muito perigoso, mesmo por «baixo da superfície». 

O tempo decorrido depois de o facto que origina o poema (beijo de Cecil a Daphne) é já uma ficção? A interpretação disso já não é a verdade… 
Sim… Na noite seguinte, quando Daphne está acordada na sua cama e tenta lidar com a sua própria confusão e choque sobre o que aconteceu, já está a pôr afecto ou a «construir» o que aconteceu. A cena no jardim é vista pelo ponto de vista de Daphne e há também muita ironia a jogar com o ponto de vista do leitor que vê coisas que a própria Daphne não vê.  

A cena do cigarro [no jardim] que acende, trazendo mais luz, e se apaga, novamente, é como a técnica de pintura chiaroscuro e está em todo o livro Então, desde o pormenor até à estrutura utiliza este jogo «esconde/revela». Qual é o seu processo de escrita? Escreve muitos rascunhos? 
Não, não faço. Escrevo muito devagar. Tento fazê-lo bem logo à primeira vez; nem sempre consigo, claro, mas não escrevo muitos rascunhos. Vou devagar e corrijo até ficar bem. Estou consciente que é diferente… Escrever um rascunho e depois reescrevê-lo parece-me um desperdício de tempo. Não faço assim de forma calculada. Sempre foi assim. É penoso por vezes pelo tempo que demora. É frustrante. Eu desenvolvi maus hábitos com este livro porque sempre escrevi desde o princípio até ao fim. Neste livro, fiquei muito frustrado por ainda estar em 1926 quando esperava já estar a acabar os anos 60 [risos]! Comecei a secção seguinte e deixei algumas secções para serem completadas depois. Algumas vezes também quis prever o que iria ser requerido no livro, mais tarde; o que iria ser dito por Daphne a Sebby Stokes na biblioteca… 

…existe uma frase excelente quando ela entra na biblioteca: «(…) o clique confirmou a sensação que tivera antes em relação àquele processo: num minuto, era-se um mero observador e no seguinte já se fazia parte dele.» É o que acontece com os cinco capítulos do livro. Por vezes, eles vêem por dentro e outras vezes eles são vistos por fora. São as principais personagens em algumas partes, e secundárias noutras. 
Exactamente. 

Há muita informação no não-dito e isto pede muito do leitor. Aliás, tem muita fé no leitor. Ele tem de juntar todas peças. No entanto, Paul Bryant ajuda no quarto capítulo, quando ele começa a sua investigação. As ligações familiares fazem mais sentido, mas por vezes são difíceis de acompanhar… 
Sim, de qualquer forma não interessa. Quando Paul vai aos escritórios do TLS [Times Literary Supplement] e está a falar com o rapaz mais velho que está no TLS… não me lembro bem do que diz, mas… a meia-irmã do segundo marido da Daphne casou com o irmão do meu pai ou algo assim… Não é suposto seguir-se isto. 

Jennifer também diz algo assim na última parte. Confesso que desenhei as ligações familiares, mas depois deixei…
Sim, é verdade. O meu editor, quando foi a minha casa com o manuscrito, produziu uma bonita árvore genealógica. Não é importante… 

Estão [as personagens] ou estamos a viver sobre mentiras aceitáveis/reinterpretações aceitáveis? Por vezes [interpretação] está longe da verdade. Por exemplo, Freda, mãe de Daphne e George, recusa-se a entender o que vê e só no fim ela aceita quando lê as cartas. 
Sim, não são sempre mentiras fundamentais, mas nós continuamente ajustamos a memória para nos exonerarmos ou tornar as coisas mais confortáveis. Nós simplificamos, nós ficcionamos. A vida não é uma mentira. No livro, criamos uma mentira narrativa. Impomos simples explicações que parecem resultar.
Eu queria muito um livro onde não houvesse explicações que pusessem tudo sob uma nova luz. 


Nós moldamos a verdade, os factos…
Por vezes não o fazemos conscientemente porque partilhamos a dor de uma memória e para a tornarmos tolerável continuamos a mudá-la, a «alisá-la». Há outras situações em que, inexplicavelmente, as histórias são irreconciliáveis. 

Baseado nisso, tem muito material para escrever… 
[Risos] Sim. 

Mudando de assunto... Existe uma forte tensão sexual entre George e Cecil, Cecil e Dahphne e entre outras personagens durante o livro. De que forma a nossa visão do mundo, da sociedade, é influenciada pelas nossas escolhas sexuais? 
É claro que molda, remotamente… Se se é uma mulher, naquele período, as escolhas sexuais que se pode fazer são mais limitadas do que se se é homem. São limitadas por vários factores como classe e oportunidade social. Um forte sentimento sexual é algo que pode alterar profundamente o curso da vida das pessoas, pois baseiam-se nisso para decisões que mudam a vida. E claramente o casamento de Daphne com Duddley tornou-se uma infeliz decisão. Ela abraça a oportunidade proporcionada por este clima de «flirt» com este jovem fascinante que, provavelmente, não tem grande interesse nela. Penso que ela toma, repetidamente, más decisões. Eu pensei nisso, de alguma forma, como tendo sido influenciada pela perda do seu pai quando ainda era criança. Ela é uma vítima das escolhas sexuais que faz… ou do interesse dos homens nela, pois é a personagem fraca nestas situações…
É uma pergunta difícil.
George… a sua sexualidade parece ser aberta… mas depois ele…assustou-se, casou-se e vive uma espécie de vida em companhia, com Madeleine, e eles tornam-se narradores das histórias dos outros, sem ter uma vida própria… 


Porque escolheu contar a história através de vários pontos de vista? 
Suponho que devido ao que falámos anteriormente, o facto do nosso conhecimento da história ser feito de uma mistura de, talvez, pontos de vista irreconciliáveis. Quando comecei a escrever pensei em algo mais simples. Pensei que cada uma das cinco secções seria vista pelo ponto de vista de uma pessoa. Esta foi a minha ideia preliminar. Depois pensei que seria um problema enorme se eu fosse contar a complicada história desse primeiro fim-de-semana somente do ponto de vista de Daphne. Há tanto que deve ser permitido ao leitor ver… Então vi que realmente tinha de ser visto pelo ponto de vista de George, Hubert e da mãe. Isso preocupou-me um pouco porque eu vi que isto não ia ser só um ponto de vista, não só uma narrativa deste fim-de-semana, iriam ser todas estas narrativas diferentes e, em alguns aspectos, em conflito. Isso tornou-se um princípio para o livro todo logo na fase inicial. 

Com essa escolha conseguiu avançar no tempo, mas também em profundidade psicológica. São duas vertentes difíceis de compatibilizar num livro… 
[Risos] Ainda bem… 

Se tivesse escolhido escrever o livro com menos vozes/secções, pensa que conseguiria desenvolver as duas vertentes?
É verdade que são vozes de pessoas… Não são exactamente vozes, pois não? Está tudo escrito na terceira pessoa. É o privilégio do estilo indirecto livre. Pode observar-se o facto do exterior e entrar à vontade nos seus pensamentos. 

Sim, por vezes não sabemos se é o autor ou a personagem… 
Sim… Eu adoro esse tipo de liberdade de entrar e sair da mente das personagens; cada capítulo é o ponto de vista de uma personagem. Tudo dentro dele [capítulo] é, até certo grau, flexionado através da interpretação da personagem do que vai acontecendo. O facto de ser um romance sobre sociedade… As personagens observam-se frequentemente como interacção social. O retrato psicológico é, provavelmente, construído através de diferentes ângulos. 

Em relação a Cecil, quis captar a pluralidade de vozes dele? Foi um objectivo para a diversidade de pontos de vista? 
Não pensei nisso… Suponho que sim, por implicação. Todos nós temos várias vozes de acordo com quem falamos.

Como disse anteriormente, tem muita fé no leitor. Confia nele para preencher os espaços que deliberadamente deixa… 
Sim, bem, não sei se podem ser sempre preenchidos… 

Teve a tentação de escrever mais, de ajudar mais o leitor? 
Não. [Risos] Gostei de reter a informação e deixar cair os factos no começo de cada secção. Para mim, fez parte da escrita do livro. 

O texto «Dois Acres» ou mesmo o livro de Cecil, publicado após a sua morte, tornou-se canónico. O texto foi estudado em universidades e escolas.
Provavelmente alguns dos seus poemas apareceram em antologias, incluindo «Dois Acres», e tornaram-se muito conhecidos. Peter Rowe, na terceira secção do livro, está a ler o poema para os estudantes, em Courley Court, e mais à frente, quase no fim do livro, como que o vemos no novo mundo de teoria «queer»… Eu queria que fossem poemas como os de [Rupert] Brooke, não necessariamente muito bons, mas que entrassem na consciência do público. A minha mãe adorava e adora os poemas de Rupert Brooke. Cresci com muitas linhas e frases de Rupert Brooke. Eu tenho muita poesia na minha mente e a minha adolescência foi feita de encontros de leitura e de aprendê-la para a saber de cor. Talvez seja o meu sentido de passado. Pensei nos poemas de Cecil como se fossem desse tipo, talvez não particularmente estudados no campo académico. 

É uma postura céptica do cânone? O poema não é bom… 
Não, não é bom, mas não é absolutamente terrível… 

…mas entrou, provavelmente por causa do culto em torno de Cecil, nas vidas das pessoas. 
Exactamente! O poema é de antes da guerra e depois da guerra parece resumir algo sobre a razão pela qual as pessoas lutaram e sobre a visão nostálgica de Inglaterra. 

Pensa que os maus textos ou um mau livro pode entrar no «must read» nas escolas e universidades devido a esse tipo de culto em redor de um autor? 
Tenho de pensar em alguns exemplos… Tenho a certeza de que são muito apreciados num período particular e depois saem de moda. 

Numa outra entrevista, mencionou um ou dois autores de que gosta bastante e que só uma assembleia os lê, agora… 
Sim, existem vários autores que são negligenciados; outros que pensávamos ser maravilhosos são, agora, secundários ou desapareceram. Isso sempre me divertiu… Esse território instável do que é pensado como bom. 

As escolas e as universidades têm muito poder sobre isso. Se não são falados, não são lidos e com o tempo desaparecem, provavelmente, para aparecerem passados 50 anos.
Sim, eu penso que formam uma parte muito mais pequena dos currículos nacionais das escolas. As crianças já não lêem romances completos; lêem somente uma parte ou vêem o DVD ou o filme. É aterrorizante. Quando alguém na escola lê poemas de Ted Hughes e são os únicos poemas que lêem, torna-se a noção deles de poesia. É uma espécie de moldagem canónica, não é? É um nível muito básico… 

Voltamos a falar daqui a sete anos… [tempo decorrido entre «A linha da beleza», vencedor do Man Booker Prize 2004, e «O filho do desconhecido»]
Espero que mais cedo… 


LINK: Entrevista com Alan Hollinghurst (TV)

publicado por oplanetalivro às 12:49

14
Nov 11

“A Arte de Chorar em Coro”
Erling Jepsen
Eucleia Editora


“ Este é o destino que me calhou, penso, ser o responsável por equilibrar um pouco as coisas” pag.66

A Verdade para o rapaz de 11 anos que nos conta a sua história reside no espaço entre o facto e a observação do mesmo. Esse espaço, que podemos nomear de interpretação, é moldado pelo hábito. E esta é uma palavra-chave para a compreensão de “ A Arte de Chorar em Coro”.
A dinâmica comportamental da família (composta pelo rapaz, a irmã adolescente Sanne, o irmão mais velho Asger, o pai e a mãe) é analisada através da ingenuidade infantil do nosso narrador e de acordo com o comportamento padrão/ hábito que conhece desde que tem memória.
Erlin Jepsen mostra-nos, logo nas primeiras páginas, a perspectiva por si adoptada para contar a história de uma família disfuncional:
Quando a mãe tem dificuldades em definir com sucesso a palavra “hábito”, o filho diz que o pai explicará melhor. Quando o ouve, sente-se mais seguro.
“ Levanto-me e sinto que percebi tudo, e que qualquer coisa neste mundo é boa desde que tenha o pai para ma explicar. O pai com as suas grandes mãos e quentes.” Pag. 13
A satisfação do pai é o motivo de preocupação de todos. O sucesso nos negócios (mercearia), a aceitação social (funerais) e o respeito da família perante a figura patriarcal são os motivos que levam à acção ou apatia dos seus elementos. No entanto, ao longo do livro vamos percebendo que as ligações entre eles são dúbias.
Na dinâmica familiar, as mulheres (mãe e filha) sofrem também devido à sua própria passividade. A mãe está sempre ausente em momentos fulcrais e a filha é definida e tratada como louca quando, na verdade, é uma vítima amarrada pelo silêncio de todos.
As palavras na boca do homem são opostas aos seus gestos… paternais. No entanto, as duas vertentes têm uma consequência em comum: O choro torna-se um facto doloroso partilhado por muitos e, em “A Arte de Chorar em Coro”, são os lamentos não ouvidos, os gemidos por averiguar, que provocam a maior agonia nas personagens e o maior impacto no leitor. Os discursos fúnebres são um sucesso quantificado pelas lágrimas vertidas. Mesmo sem conhecer bem o falecido, o pai é capaz de elevar as hipotéticas qualidades e sublinhar a dor da ausência até ao choro convulsivo. O objectivo é ultrapassar o esperado, chegar às pessoas com menos probabilidades de chorar a partida do morto.
“ (…) há, por fim, um ataque de choro, mas é o da mãe da falecida, e essa iria chorar de qualquer forma, portanto não conta” pag. 29
Ironicamente, devido ao dom da retórica e por conseguir sublinhar virtudes que, muitas vezes, não existem, ele é convidado a seguir a carreira política. De acordo com o filho mais novo, tudo corre bem quando o pai está bem. Os elogios fúnebres promovem a ascensão social e um certo apaziguamento. Para conseguir manter a harmonia, o narrador elabora um plano. Ele faz uma lista de pessoas a matar para o pai continuar a fazer discursos fúnebres. Inclui-se nessa lista, mas elimina-se pois percebe que não poderia ver o sucesso do pai caso fosse assassinado.
A intimidade com a sua irmã permite-lhe confessar os seus desejos de ver algumas pessoas morrerem. Ela, no entanto, reage como se de uma brincadeira se tratasse.
Sem a sua ajuda, ele recorre à divindade criada por si: uma mistura do seu herói (Tarzan) com uma proeminente figura do catolicismo (Arcanjo Gabriel).
Surpreendentemente, as hipotéticas vítimas começam a morrer em condições suspeitas e ele pensa que as suas preces foram atendidas.
A polícia considera as mortes como acidentais.
O pai e a irmã Sanne aparentam estar muito nervosos devido a todos estes acontecimentos e à presença da polícia. Insistindo em manter a paz, o filho aconselha-os a dormir juntos como por vezes fazem.
Ele gosta muito de ter a mãe ao seu lado quando adormece e de saber que a irmã está segura nos braços do pai. Sanne, contudo, não partilha esse sentimento. Quando dorme com o pai, acorda a tremer e muito agitada. A mãe cala-se, o irmão mostra a sua incompreensão e o pai leva-a, repetidamente, ao psiquiatra para ela levar um sedativo.
O incesto é um segredo muito mal guardado. Quando Asger, o irmão mais velho, vem da cidade onde estuda para os visitar, ouve, numa conversa ao jantar, que Sanne, a irmã, tem dormido com o pai. Todos se calam porque todos, excepto o nosso narrador, sabem o que estava a acontecer.
“ (…) o que é isso do incesto? Sei bem o que é uma vítima, e isso do incesto soa a algo contagioso, como uma espécie de piolho. Não me estranharia que lho tivesse pegado o pai depois de o apanhar no sofá da avó alemã. Oxalá não tivéssemos ficado com o sofá, não trouxe nada para além de desgostos” pág. 76

O livro de Jepsen não é um livro divertido. E no entanto é inevitável sorrirmos perante tanta ingenuidade que vai diminuindo com o avançar da idade. O amor que ele sente principalmente pelo pai (o seu exemplo masculino) resulta em atropelos a uma moralidade que para ele ainda não existe. A bondade só é bondade quando em si reside a sabedoria. E é o que ele não tem nem pode ter com 11 anos, apenas. É esta perspectiva tão afastada dos valores que enriquece a narração. Como podemos julgar duas crianças (ele e a irmã) que, por apego ao hábito e amor ao pai, cometem atrocidades com objectivo de o fazer feliz?
A luta pela harmonia é hipotecada pela ingenuidade que não permite avaliar correctamente os factos. O campo de interpretação é estreito porque o narrador não tem as ferramentas necessárias para observar os acontecimentos. Erling Jepsen consegue manter eficazmente esta perspectiva e com esta “limitação” consegue sublinhar a já falada interpretação ingénua. Neste jogo de perdas, o autor enriquece o texto ao adoptar o prisma de uma criança de onze anos que demonstra, assim, a incapacidade de simbiose entre o dito e o facto. É neste espaço interpretativo que o autor sugere, não finaliza, e deixa espaço à dedução do leitor.

A voz individual, com a sua dor e incompreensão, procura a validação de um coro.

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com



A Arte de Chorar em CoroA Arte de Chorar em Coro by Erling Jepsen
My rating: 3 of 5 stars

publicado por oplanetalivro às 09:08

10
Nov 11

Conversa com Ruta Sepetys sobre “O longo inverno”

Ruta Sepetys escolheu um caminho difícil na sua estreia literária. A investigação para o livro foi penosa, extensa e envolveu grande sacrifício físico e emocional. “O longo inverno” é a história de um povo, simbolizado pelas personagens existentes, sob o discurso de violência de Estaline. Mas é também a história de Ruta Sepetys, do que ela ouviu e do que ela própria sofreu ao longo da investigação. Essa emoção está presente desde a primeira até à última página.
O ambiente histórico é verídico. Durante o período em que Estaline esteve no poder morreram milhares de pessoas. A autora recolheu testemunhos, visitou locais e, como se poderá ler na entrevista, algumas situações escritas foram, de facto, vividas pelos sobreviventes.
 A entrevista possibilita uma análise mais profunda do texto, do drama de um povo e do objectivo da autora. Ruta Sepetys desenterra as histórias de sofrimento e provações a que milhares de lituanos, letões, finlandeses, e não só, foram sujeitos, para nos mostrar, através destes exemplos, a indomável vontade de viver do ser humano.
Durante a entrevista, publicada em duas partes, poderemos conferir o impacto que a história teve na escritora e o impacto que poderá causar, também, no leitor.
A autora quis passar o testemunho de sofrimento de um povo. Foi bem-sucedida.

I parte


MR- Quando estava a preparar esta entrevista, li uma frase de Faulkner que capta a essência do seu livro: “ (…) o homem é indestrutível devido ao seu simples desejo de liberdade[1]”.

RS- Verdade! Em relação a estas pessoas, como eu descrevo no livro, a única coisa que não lhes conseguiram tirar foi o desejo de liberdade. Tiraram-lhes a bandeira, a língua e tiraram o país deles, literalmente, do mapa.

 Fez pesquisa, viajou para a Lituânia, conheceu sobreviventes, membros da família, membros do parlamento e esteve algum tempo numa prisão soviética. Conheceu Irena (sobrevivente). Ela contou-lhe histórias muito dolorosas.
Foi capaz de manter a distância emocional para escrever o livro? Quis manter essa distância emocional? Na primeira versão matou toda a gente…
 Eu fiz isso porque decidi não separar a investigação do processo de escrita e fazer tudo em simultâneo. Se eu fizesse a pesquisa e só depois a escrevesse talvez houvesse demasiada separação e eu queria que houvesse um efeito imediato no livro para que o leitor sentisse que estava realmente lá. Quando os sobreviventes estavam a contar-me o que se passava, [a informação] vinha tão depressa que eu, literalmente, [fez uma expressão de horror e admiração]. Então pensei: “ Eu quero que o leitor sinta desta forma” Eu pesquisava durante o dia e depois escrevia. Era duro, muito duro, mas a emoção estava lá porque eu ainda a sentia, como você disse. Eu estava chateada. Eu estava tão zangada! Quem faz isto? Quem consegue fazer isto a outro ser humano? Valeria uma vida humana tão pouco?
“…nós não queremos a vossa morte, nós queremos o vosso sofrimento” [testemunho de Elena no “Booktrailer”] Isto é o inferno?
Foi o inferno! E mantem-me acordada à noite pensando “ como é que isto aconteceu? Como é que nos tornámos tão cruéis e tão egoístas?” Na pesquisa, eu tive um breve vislumbre disso em mim mesma e nunca pensei que eu teria isso. Entrei neste processo pensando “Claro! Eu sou uma pessoa corajosa.” Se houvesse um ataque terrorista no hotel, eu assegurava-me que vocês saíssem primeiro e então eu sairia em último. Era o que eu pensava de mim mesma. Quando fiz esta pesquisa, percebi que somente não vos deixaria ir primeiro como passaria por cima de vocês para sair pela porta.
Quando eu estava na prisão, que era uma simulação, - uma simulação de 24 horas e era só isso- para nos levarem ao mesmo nível dos prisioneiros reais (eles não nos podiam fazer passar fome ou privação do sono porque eram só 24 horas), usaram a força física para nos «quebrar». Felizmente, eu nunca tinha sido espancada antes. Esta foi a 1ª vez na minha vida. Esta foi a 1ª vez que alguém me bateu ou me pontapeou. Nunca tinha passado por isso! Quando entrei nunca tive consciência, como americana estúpida, que tinha assinado [termo de responsabilidade] que podia partir uma perna… nunca me ocorreu que alguém me podia bater. Nunca! E quando aconteceu, eu estava tão chocada, aterrorizada e em pânico, porque tinha assinado que não podia sair…que mudei! Eu entrei no modo de auto-preservação. Pensei “Como é que vou sair disto? Como é que vou sobreviver? Eu não quero ser agredida novamente!”
…e eram só 24 horas…
Isto aconteceu nos primeiros cinco minutos! Nos primeiros cinco minutos, eu mudei e entrei em modo… “eu não quero ser agredida, novamente! Parem de me bater! Parem de me bater!” E estavam a agredir os outros estudantes, também. Estava um rapaz deitado no chão e ele disse-me “por favor” e… Mário…eu fingi que não o ouvia. Consegue imaginar?
…é uma reacção normal de um ser humano, penso…
Não, não para toda a gente. Foi o que aprendi. Não é para toda a gente. Como pai… você criou uma nova vida e tem uma nova identidade e psicologia. Acho que a coragem é instintiva em si e noutras pessoas, também. Eu pensava que era instintiva em mim, mas aprendi que não é. Isso é assustador.
Viu os seus limites e isso é assustador.
… Vi os meus limites em 5 minutos! 5 minutos!
A mãe de Lina era um exemplo de compaixão. Porque é que ela teve de morrer?
Na 1ª versão do livro, eu matei todos excepto Lina. Depois li e reflecti sobre a pesquisa que tinha feito, as conversas com os sobreviventes e pensei “espera um minuto! Eu falei com pessoas que sobreviveram! Porque é que estou a focar-me no horror? O que é isso diz sobre mim? Porque é que o escrevi tão negro?”
Elena, a mãe, representa um espírito que eu vi em tanta gente. Fez-me pensar na identidade de um pai/mãe e o que isso significa. O facto de as pessoas que eu entrevistei terem sido pais, mudou-lhes a consciência e a capacidade para a coragem. Eu quis que o leitor sentisse essa capacidade para a coragem e integridade da miraculosa natureza do espírito humano.
O coração de Lina estava cheio de ódio, no princípio, mas, no fim, ela muda…
Sim, Estaline falou num discurso de violência e estas pessoas estavam a sofrer estas horríveis atrocidades, mas algumas recusaram responder com violência. Quando chegou a altura, ela foi incapaz de cometer um acto de raiva. (…) Nikolay [guarda soviético] representa “Between Shades of Gray” [título original do livro]. Nós tentamos categorizar as coisas no extremo, é bom ou mau, mas nem sempre é assim.
Existem várias mudanças nas personagens; elas não se mantêm boas ou más…
Exactamente! Quando falei com os sobreviventes, eles disseram-me que essa dinâmica existia, especialmente com as pessoas como o “homem calvo” [personagem do livro], porque existia a população lituana e os lituanos judeus. Primeiro, os soviéticos ocuparam [Lituânia], depois os alemães, depois os soviéticos, outra vez, e foi por esta tripla tragédia, que muitos dos lituanos, quando chegaram os alemães, mostraram animosidade face aos judeus porque sentiram que eles tinham ajudado a entrega-los aos soviéticos. Então, alguns dos lituanos tornaram-se colaboradores nazis. É uma reacção humana, mas as pessoas que eu conheci estão agora a carregar essa culpa por terem jugado mal… no medo deles, esta dinâmica tão complexa…eles não podem voltar atrás e pedir desculpa”
Interpretei a existência do “homem Calvo” e de Ulyushka como o exemplo de pragmatismo e de uma forma fria de resistência aos soviéticos. No lado oposto, existia a ilusão, o amor e a compaixão. O que acha mais importante: o lado pragmático ou a ilusão?
O sentimento patriótico de quando algo é retirado… há certos aspectos que não podem ser retirados. Havia uma unidade e quando estas pessoas foram colocadas juntas, elas não se conheciam e viviam juntas e de repetente o “eu “dissolve-se e torna-se “nós”. Demorou muito tempo a muitas pessoas como o “homem calvo” e Ulyushka, mas aconteceu. De alguma forma, segurar a mão de um desconhecido e dizer “ Nós conseguiremos ultrapassar as dificuldades” foi muito poderoso e penso que foi essa unidade que lhes deu um objectivo. Sentir-se sozinho é muito vulnerável, sentimo-nos muito vulneráveis, mas ficamos com mais força quando em grupo.

…eles comungaram o sentimento de ilusão. O “homem calvo” queria suicidar-se, mas tinha medo de o fazer. No fim, ele já tinha um objectivo para continuar a viver…
Exactamente! E ele teve a oportunidade de se redimir. Os soviéticos pediram-lhe para escrever as listas, mas, no último minuto, ele recusou a fazê-lo. E deportaram-no. Ele podia ter ajudado os soviéticos, mas não o fez e agora estava a ser castigado por isso. Estas pessoas fizeram sacrifícios, independentemente dos diferentes motivos, e houve estas hipóteses de se redimirem. Nem toda a gente fez isso, mas as pessoas com quem falei disseram que quem era egoísta e individualista morreu rapidamente. Quando alguém estava doente, todos retiravam um pouco da própria ração. Quando se está sozinho e se afasta do grupo, não só fisicamente, mas emocionalmente, mentalmente, espiritualmente…



Entrevista a Ruta Sepetys
II parte (continuação)
O processo de escrita, situações verídicas, a nova geração de lituanos…


MR- Uma pergunta mais específica: Dividiu o livro em capítulos pequenos como se fossem cenas de um filme. Porquê?
RS- Primeiro, porque eu pensei que fosse mais imediato e a minha experiência como leitora… se há muitas passagens descritivas, apesar de gostar e ajudar a criar um cenário para mim, pode interromper o ritmo. Então, eu talvez escolha interromper a leitura. Se é um capítulo curto, tenho mais tendência em dizer “Ok. Mais um…”. Para mim, foi um «mecanismo rítmico» para manter o leitor focado. Eu sou uma leitora impaciente. Gosto sempre de avançar.
A 2ª razão é eu não ter estudado literatura. De certa forma é bom porque sou, definitivamente, uma seguidora das regras e se eu tivesse tido aulas sobre gramática ou para escrever literatura, provavelmente paralisava-me. Eu escrevo como se visse um filme. Para mim, é algo muito visual…
…esteve lá. Deve ser uma das razões, provavelmente. Vê as imagens…
…em vez de dizer “eu penso que esta personagem vai dizer isto ou isto, eu literalmente olho para o espaço vazio e imagino… eu vejo muitos filmes… imagino a interacção e os diálogos. Não penso “Ok. John diz…” Eu estou a ver como se de um filme se tratasse e transcrevo-o.
Porquê uma rapariga de 15 anos [a narrar]?
Por algumas razões:
Quando estava a entrevistar alguns sobreviventes e estava a rever a minha pesquisa, notei que a maioria das pessoas tinha exactamente a mesma idade quando estiveram na Sibéria. E isto é muito estranho. Porque é que eles tinham entre 14 e 24 anos? Porque é que não podia ser 7 anos de idade? Porque é que eles estavam todos na adolescência? Eles explicaram-me que as crianças mais novas, em muitos casos, eram demasiado fracas para sobreviver. Os adultos e as pessoas mais velhas não tinham a vontade de viver. Mas estes adolescentes, o espírito adolescente… tinham espírito de luta, eram teimosos. Os adultos haveriam de olhar à volta e dizer “Nós nunca sobreviveremos a isto!”
Quando vou visitar escolas eu pergunto: “ Se fossem deportados para a Sibéria, quantos de vocês sobreviveriam? E todos, entre os 14 e 13 anos… [levanta o braço], mas quando eu falo para adultos, num clube de leitura, eles, ainda antes de eu perguntar, dizem “Não sobreviveria a isto! Nunca sobreviveria!” É uma mentalidade! Aquela dinâmica fascina-me. Algumas coisas que me contaram, como adolescentes… aquilo era o inferno e o horror. Eles estão numa estação de comboios a ser separados das suas famílias, há pessoas a morrer e, no entanto, houve elementos da existência adolescente que permaneceram intactos. Uma rapariga contou-me que tinha conhecido um rapaz na estação de comboios, quem ela conhecia de vista de um clube em que eles estavam, e falaram na estação de comboios e tiveram uma ligação…
…Andrius [personagem do livro]?
Foi isso que inspirou! Ela disse que o tempo todo no comboio, pensou “ Em que carruagem estará ele?” Todas as vezes que o comboio parava e eles iam buscar um balde, ela procurava-o.
Ela escapou do comboio, não foi? E viu o pai dela.
Essa é uma história verdadeira de uma mulher chamada Irena. Ela contou-me que saltou do comboio para procurar o seu pai. Ela encontrou-o e ele deu-lhe um pedaço de presunto e a sua aliança de casamento. Enquanto me contava isto, eu chorava… Ela contava-me matéria de facto, esta trágica história, e a última vez que viu o seu pai foi através daquele buraco que servia de casa de banho. Eu tinha de pôr no livro! Isto eram coisas reais e ela era uma adolescente e para ela experienciar daquela forma…
A 2ª razão para escrever através do ponto de vista de uma adolescente foi… eu tenho este sonho de que o livro possa encontrar o seu caminho até às escolas e talvez os adolescentes possam ler e estudar esta parte da história.
Pensa que a geração mais recente foi moldada por este passado?
Eles não querem ser definidos pelo seu passado. Sentem que é uma âncora. Durante muitos anos viveram sob ocupação e agora não querem que a sua história os domine. A liberdade deles é tão frágil e estão a aprender a viver nela. Eles querem avançar tecnologicamente e economicamente.
Mas eles conhecem o passado?
Sim, eles conhecem o passado, mas a geração mais antiga sente que a geração mais nova está demasiado ansiosa em viver numa “nova pele” e que devem manter a referência de onde vieram. As pessoas mais novas dizem que se fizerem isso, estarão sempre ocupados de alma e espírito. ““Isto” aconteceu”, dizem, “ mas não nos define. Temos que ter fé em nós para avançarmos no futuro”
Sobre a nova geração, há uma frase de [Edvard] Munch, no livro…
…antes de ler, você foi a primeira pessoa que, ao longo de um ano, mencionou Munch. “Passei” 33 pinturas de Munch para o texto. Você foi a primeira pessoa que abordou e eu pensava que, por alguma razão, não tinha impressionado as pessoas. Por isso estou muito feliz!!
A frase é esta: “ Do meu corpo putrefacto germinarão flores, e eu viverei nelas e a isso se chama eternidade” . Por isto, eu perguntei sobre as novas gerações. Elas são as flores que nascem do passado.
Absolutamente! A bandeira lituana representa isso. É uma lista amarela para o sol dourado; uma lista verde para os lindos campos; e uma lista vermelha para o sangue. Sob o campo há gerações de pessoas que perderam as suas vidas e se sacrificaram pelo país. Concordo absolutamente consigo. É um pequeno país com grandes lições dentro dele.
Há uma linda frase dita pela mãe de Lina :” Uma maldade não nos dá o direito de retribuir com outra maldade”
Isso foi algo que um sobrevivente me disse quando eu perguntei “Nunca quis, se tivesse oportunidade, de matar e escapar? Ou roubar alguma coisa para lhes criar dificuldades?” Ele disse “Porque é que haveríamos de nos querer tornar como os nossos opressores? Porque é que haveríamos de querer perpetuar o mal dessa forma? Temos de quebrar esse ciclo de ódio”
Lina conta-nos a história. Ela escreve e nos seus desenhos captura, como Munch, a essência do que vê. Como autora, quem é a Ruta Sepetys? É a Lina que escreveu e escondeu os textos dentro de uma caixa ou as pessoas que desenterraram e mostraram a história ao mundo?
Ambas as opções são muito nobres. Eu gostaria de ser uma das duas… Eu sei que não sou Lina! Lina é quem eu gostaria de ser. Não me vejo como nenhuma… talvez eu seja apenas a porta que balança aberta para que as pessoas de um lado possam ver o outro lado e atravessem… Eu espero que, no futuro, como escritora, eu possa ser uma das duas hipóteses. Vamos ver nos próximos livros… Eu sei que serão sempre sobre amor…

Mário Rufino
mariorufino.textos@gmail.com




 Sobre o Livro em "Última Edição" de Luís Caetano (Link)










[1]William Faulkner in “ Entrevistas da Paris Review” (2009), Lisboa, Edições Tinta da China.





Between Shades of GrayBetween Shades of Gray by Ruta Sepetys
My rating: 4 of 5 stars




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publicado por oplanetalivro às 15:26

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