É impossível abandonar o passado quando, diariamente, ele olha para nós.
Empurramos tudo para trás, escondemos as imagens lodosas, enterramos as palavras no silêncio, e vivemos os dias, os meses e os anos que nos permitem adocicar ou azedar as memórias. Quando se pensa que estão esquecidas, elas voltam e misturam o passado com o presente e transformam a vida num tempo único. A língua ao expulsar o verbo permite-nos observar a falência da ilusão do tempo.
Ter visto a minha mãe junto ao Duncan foi como observar o passado encostar-se e socorrer-se no presente. Ambos olhavam para o tapete rolante enquanto esperavam que a bagagem surgisse da boca negra de um armazém. Ele aguardava pelas malas dela para ajudar a carregar o conteúdo de uma memória pesada e frágil. Tudo o que ela tinha ficou nas mãos do Duncan que puxava o peso dos anos arrumados e fechados numa mala de viagem.
«Já tens a tua bagagem, filho?»
«Sim, não te preocupes»
Carregámos o peso de tudo o que trazíamos e procurámos a saída. Já fora da sala de desembarque, ele indicou o caminho por entre os corredores. Eu via a minha mãe como um vulto negro pairando sobre o chão em direcção à luz. Atrasei-me um pouco e eles pararam junto à porta para o exterior. Abriu ao meio, afastando as suas margens de vidro, e permitiu o sol de Dublin iluminar a cara da minha mãe.
Ela entrava num mundo novo.
«Bem-vinda, mãe»
"O Engano"
MR